18 Julho 2019
A última entrevista de caráter testamentário concedida por Sartre ao seu secretário pessoal, Benny Lévy, pouco antes da sua morte, ocorrida no dia 15 de abril de 1980, provocou um profundo escândalo entre os seus amigos mais íntimos, a começar por Simone de Beauvoir.
O comentário é do psicanalista italiano Massimo Recalcati, professor das universidades de Pavia e de Verona, em artigo publicado por La Repubblica, 09-07-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Como era possível que o filósofo que havia defendido que “o inferno são os Outros”, que havia enfatizado a natureza necessariamente conflituosa das relações humanas, que havia zombado da moral burguesa da solidariedade e do Homem (basta lembrar o julgamento afiado sobre o romance de Camus, “A peste”, culpada de difundir uma “moral da Cruz Vermelha”), naquela entrevista reabilitasse sentimentos como a esperança, a reciprocidade, a fraternidade, a partilha? Não era, talvez, o sinal inequívoco da decadência da sua lucidez ou, pior ainda, da ação sutilmente manipuladora do seu entrevistador que não escondia sua própria pertença à cultura judaica?
Hoje, essa entrevista está disponível ao leitor italiano pelas edições Mimesis, com o título “La speranza oggi”, uma tradução eficaz e uma exaustiva introdução de Maria Russo. A questão que essa conversa levantou na época da sua primeira publicação permanece central: como é possível que o filósofo da angústia e da “condenação à liberdade”, o filósofo que havia atingido o coração da retórica humanista dos bons sentimentos e a sua má-fé fundamental, defenda agora que “a relação de fraternidade é a relação primária entre os seres humanos?”. De onde vem essa mudança de direção? Trata-se de uma abjuração? Vem, talvez, do medo da morte iminente que domina o filósofo já cego e idoso?
O que mais chama a atenção nessa entrevista é a insistência de Sartre na palavra “esperança”, que não pertence propriamente ao seu léxico filosófico. Essa palavra – eis o escândalo! –, pelo contrário, vem do logos bíblico. É esse o divisor de águas em relação ao ateísmo convicto do filósofo? Trata-se de uma aproximação – no fim da corrida – ao sentimento religioso?
Na realidade, nenhuma retórica religiosa acompanha o uso sartreano da palavra “esperança”. Pelo contrário, essa palavra coincide com o ato, a escolha, a ação, o projeto. Como que dizendo que não pode existir ação humana que não traga consigo uma esperança, uma abertura, uma transcendência. Não se trata de apagar o pessimismo ontológico da sua filosofia como a conhecemos através de “O ser e o nada”, mas sim de mostrar que a incontornabilidade do insucesso, da queda, que o caráter injustificado, “demasiadamente”, da existência não pode apagar a esperança da transcendência, mas sim a transcendência da esperança. Não se trata, de fato, de autorizar a esperança como uma “ilusão lírica” ou “religiosa”, mas sim de pensá-la em conjunto, profundamente unida ao desespero.
E é precisamente nessa conjuntura que reencontro totalmente Sartre. Não a traição de Sartre, mas verdadeiramente o mais essencial de Sartre. Se a realidade humana é um “fracasso necessário”, se é a impossibilidade de alcançar um “fim absoluto”, não obstante, essa impossibilidade não pode apagar a esperança da sua realização. É uma tensão que anima toda a filosofia de Sartre.
Não se trata de pensar religiosamente a esperança como libertação da necessidade do insucesso, mas sim de não deixar que o insucesso seja a última palavra sobre a existência. Daí a distinção entre uma “moral da esperança” e aquele “espírito de seriedade” com o qual o Sartre existencialista já define a ilusão e a mentira burguesa da existência que acredita ter o “direito de existir”. Essa “moral da esperança” continua sendo a última palavra que Sartre, antes de se despedir da vida, nos deixa de herança: é possível que o desejo do homem não seja apenas aspirado pelo desejo (impossível) de ser Deus, de ser “causa sui”, mas esteja comprometido na construção de uma comunidade nova, de uma comunidade inspirada na fraternidade.
Para o último Sartre, deve-se abandonar uma teleologia da totalidade em nome de uma moral fundada em um novo desejo de comunidade. Não perseguir uma totalização impossível, mas sim dar corpo ao princípio de esperança em uma comunidade mais solidária e justa. A tensão política se une aqui à moral: “É preciso imaginar um corpo de pessoas que lutam juntas”.
O fim último da história que o marxismo herda do hegelismo é superado não por uma perspectiva niilista, mas sim pela introdução de um “outro fim”, uma espécie de “obrigação” que nos vincula à existência do Outro. Trata-se de uma dependência que absolutamente não exclui a liberdade. Em vez disso, é preciso repensar o caráter primário da fraternidade. É o passo levinasiano do último Sartre. Onde, evidentemente, a fraternidade não contém nenhuma homogeneidade, nenhuma igualdade. No entanto, o encontro com o rosto do Outro já não suscita mais apenas a angústia medusante da alienação e do conflito infernal, mas sim uma proximidade que me concerne e me compromete: “O que é necessário para uma moral é ampliar a ideia de fraternidade até que ela se torne a relação única e evidente entre todos os homens”.
É isso que leva Sartre rumo a Lévinas e rumo ao judaísmo messiânico, ou seja, a utopia de um reino que exclui a violência e a exploração. O velho filósofo não cede, até o seu último suspiro, à tentação da destruição: “Eu resisto e sei que morrerei na esperança”.
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Há esperança! Assim Sartre mudou de ideia. Artigo de Massimo Recalcati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU