10 Março 2019
Para juristas e políticos, fundo criado com o aval dos Estados Unidos fere a lei e é cercado de incertezas.
A reportagem é de Thaís Reis Oliveira, publicada por CartaCapital, 09-03-2019.
Cinco anos depois de uma operação que desfigurou o tabuleiro político brasileiro deste século, a força-tarefa Lava Jato deu um passo além: decidirá qual o destino de uma fatia bilionária dos recursos desviados da Petrobras que voltaram ao Brasil.
A conta bancária gerida pelo Ministério Público Federal já recebeu um aporte de 2,56 bilhões de reais, pagos graças a acordo que livrou a Petrobras das pendências com a Justiça americana. As autoridades do país autorizaram, em setembro, que 80% do valor da multa fosse revertido ao país.
Conforme o acordo, metade desse dinheiro deverá ser destinado a erguer uma fundação privada, gerida pelos procuradores, cuja missão é reforçar “a luta da sociedade brasileira contra a corrupção”. Já a outra porção irá reembolsar acionistas que eventualmente processem a empresa.
Essa generosa “doação”, vale lembrar, não teria sido possível sem a colaboração desses mesmos procuradores, que repassaram às autoridades americanas informações que deram origem à ação extinta pela multa bilionária.
Alardeada por Deltan Dallagnol como “legado permanente para a sociedade brasileira”, a iniciativa é cercada de incertezas. Se, por um lado, traz ao país um dinheiro que ficaria retido no exterior, de outro, é juridicamente questionável e abre brechas para que o poderio da República de Curitiba cresça sem limites.
Um grande risco, avaliam juristas, políticos e líderes de ONGs, é dar comando paraestatal para um movimento cujas ambições políticas são cada vez mais difíceis de esconder. Afinal, nem o principal artífice da Operação, Sergio Moro, resistiu aos encantos de uma cadeira no Planalto. E 2022 está logo ali.
Conforme o acordo e as manifestações da força-tarefa, a ideia é que a entidade, de direito privado, seja tocada por pessoas e organizações “de reputação ilibada e reconhecida trajetória e experiência” escolhidas pelos procuradores da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba.
(Foto: CartaCapital)
Além disso, o MPF e o MPE do Paraná poderão ocupar duas cadeiras no conselho deliberativo da fundação. Dezenas de milhões de reais serão aplicados, todo o ano, em projetos sociais que promovam conceitos tão genéricos quanto “controle social”, “cidadania”, “formação de lideranças” e “cultura republicana”.
Como ONG, essa fundação ficaria longe da fiscalização do Tribunal de Contas da União e do Portal da Transparência. Também não seria submetida aos ritos orçamentários do governo. Dessa forma, a Lava Jato entra na disputa pelos recursos por um caminho ausente de fiscalização e transparência.
Fato é que nunca tanto dinheiro esteve nas mãos de um ente Poder Judiciário no Brasil – o valor corresponde a mais da metade do orçamento anual de toda a Procuradoria Geral da República. E supera os 2,5 bilhões devolvidos até agora à Petrobras… que vai mais de 15 bilhões em multas dos acordos com os EUA.
“O dono desse dinheiro é o governo americano, e eles concordaram em repassá-lo ao Brasil. Mas é questionável se o MP é quem deve administrar essa verba”, explica o advogado Julio Cezar Chaves, especialista em direito administrativo.
O advogado Marcelo Mascarenhas, membro da Associação Juristas pela Democracia (ABJD), lembra que já existe um fundo público, ligado ao Ministério da Justiça e gerido via conselho gestor, que repassa o dinheiro de multas e condenações de ações civis públicas a projetos de reparação de danos.
Juristas e políticos temem que essa fundação seja o nascedouro de um Estado paralelo da Lava Jato. “Há grandes riscos de essa associação, no futuro, financiar a preço de ouro palestras e eventos de procuradores e juízes amigos”, avalia advogado André Lozano, co-coordenador do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).
A verba também poderia servir para financiar movimentos que, sob uma fachada de luta contra a corrupção, escondam ambições políticas. O exemplo mais recentes são as organizações surgidas no caldo cultural de 2013, estrelaram os atos pró-impeachment e, após a derrubada de Dilma Rousseff, surfaram essa onda conservadora nas urnas. Grupos como o MBL, o Vem pra Rua e o Nas Ruas elegeram, juntos, mais de trinta deputados.
Para o ex-senador Roberto Requião (MDB), a ideia traz o caixa 2 dentro para dentro do MP. Nas redes sociais, ele comparou as intenções dos procuradores de Curitiba à daqueles pegos no esquema da Petrobras. “Elogiei a Lava Jato no Senado, no início, porque pensei que era uma operação de limpeza. Não, não era. A natureza desses que montaram a fundação é a mesma daqueles que roubaram o erário.”
Mesmo potenciais beneficiários desses recursos veem a iniciativa com cautela. Para Manoel Galdino, presidente da Transparência Brasil, outros órgãos de controle, como a CGU, e até o próprio legislativo, deveriam participar ativamente dessa fundação.
O acordo do MPF com a Petrobras prevê ainda uma extenso manual de compliance. Prato cheio para a ação de procuradores que troquem o holerite público pela chance de ganhos mais altos no mercado. Foi o caso de Carlos Fernando dos Santos Lima, que pendurou as chuteiras para atuar como consultor.
Temendo que a bilionária fundação vire financiadora oculta de um “Partido da Lava Jato”, o PT vai ao Supremo Tribunal Federal e ao TCU (Tribunal de Contas da União) tentar barrar o acordo. A defesa de Lula também contesta a proposta, e já pediu à Justiça acesso integral às tratativas, por acreditar que os termos podem interferir em processo da Petrobras contra ele.
Conforme a decisão com a justiça americana, o pagamento deveria ser feito a “autoridades brasileiras”. (Foto: CartaCapital)
Segundo advogados do partido ouvidos por CartaCapital, o MPF está tentando usurpar o poder do Executivo. Prova disso seria o acordo original com a justiça americana que, além de não prever a criação de nenhum fundo, sequer cita nominalmente o MP – conforme a decisão, em inglês, o pagamento deveria ser feito a “autoridades brasileiras”.
A OAB também está analisando a proposta, e deve se pronunciar em breve.
A julgar pelo histórico do Supremo em casos parecidos, são grandes as chances de a ideia naufragar. Em 2016, o finado ministro Teori Zavascki barrou a tentativa da Lava Jato de decidir o destino de 20% dos 50 milhões desviados pelo ex-diretor da Petrobras, Paulo Roberto Costa. Teori considerou a manobra ilegal porque, como a Petrobras é uma sociedade mista e com pessoa jurídica independente, o patrimônio da empresa não têm relação direta com a União.
Semanas atrás, Edson Fachin negou o pedido da PGR para que 71,6 milhões recuperados em acordo com marqueteiro João Santana fossem repassados ao Ministério da Educação, destacando que é cabe à União, e não ao Poder Judiciário, definir o destino do dinheiro.
Outro crítico é o ministro Marco Aurélio Mello. Ao jornalista Tales Faria, no UOL, ele afirmou que a mistura entre público e privado proposta pela fundação, sem a devida fiscalização, não interessa a sociedade. “É pernicioso, fazendo surgir ‘super órgãos’, inviabilizando o controle fiscal financeiro. É a perda de parâmetros, é o descontrole, é a bagunça administrativa. É a babel.”
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Lava Jato: ONG bilionária com dinheiro da Petrobras é vista como “Estado paralelo” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU