30 Outubro 2018
Beneficiamento da castanha-do-pará – Parcerias entre moradores, organizações e ICMBio garantem renda digna.
A reportagem é de Leandro Melito, publicada por Agência Brasil, 26-10-2018.
O dia começa cedo para a comunidade do Rio Novo, na Reserva Extrativista (Resex) do Rio Iriri, na região sudoeste do Pará. Às 5h, Marlon Rodrigues coloca no fogo a primeira panela com castanhas in natura. Esse é o início do processo de beneficiamento da castanha-do-pará realizada na miniusina de processamento de produtos extrativistas instalada na comunidade, que alcançou este ano recorde de produção.
No ano passado, foram produzidos na miniusina 1661 quilos (kg) de castanha beneficiada. Este ano a produção deve fechar em torno de 4000 kg de castanha e o valor a ser comercializado é de R$ 40 por quilo.
Depois que sai da panela, a castanha é distribuída entre os dez trabalhadores e passa por uma máquina para quebrar a casca, que depois é retirada uma a uma com auxílio de uma faca.
As castanhas são então selecionadas e embaladas e estão prontas para a venda.
A quebra da castanha começa por volta das 7h e segue em ritmo frenético. O som das castanhas quebrando e da conversa entre os trabalhadores só para no final da tarde, às 17h.
Marlon Rodrigues passou a trabalhar na miniusina depois que seu pai adoeceu. Ele vivia da pesca e não se interessou pela atividade a princípio, mas hoje divide com sua irmã Raimunda a responsabilidade pelo beneficiamento da castanha.
“A gente mexia com pescaria e pra mexer com pescaria hoje em dia está muito ruim de peixe; tão ruim que quase não dá dinheiro nem pra comprar o alimento. Mexo aqui com castanha; meu trabalho é mexer a castanha no paiol e cozinhar castanha”, conta Marlon.
A coleta da castanha começa no mês de fevereiro e vai até março. Os extrativistas coletam a castanha na mata, quebram, limpam e levam para o paiol onde ela passa dois meses secando, para então começar o processo de beneficiamento que vai até novembro – a quebra da castanha. O beneficiamento é feito de segunda a sexta-feira durante cerca de 20 dias e então a miniusina faz uma pausa para que os moradores possam se dedicar a outras atividades.
“A gente tem outro ritmo de vida depois que começou a ter miniusina, mas a gente continua tendo roça com algumas coisas, continua pescando, vai na cidade e faz alguma compra. Passa uns dez, quinze dias sem trabalhar, aí começa de novo”, explica Raimunda Rodrigues, irmã de Marlon.
Na miniusina trabalham moradores da comunidade do Rio Novo, formada por cerca de 4 famílias e da comunidade vizinha de Boa Esperança. Uma parte das castanhas é coletada por eles e o restante é comprado de outros extrativistas da reserva por meio da cantina que funciona na comunidade, responsável por adquirir os produtos coletados pelos extrativistas.
A cantina do Rio Novo faz parte de uma rede de 22 cantinas espalhadas pela Terra do Meio, tanto em Terras Indígenas como Reservas Extrativistas da região. As cantinas são espaços de comercialização de mercadorias e produtos das florestas e funcionam como entreposto comercial entre a comunidade e o mercado externo. Possuem capital de giro administrado por um cantineiro escolhido pela comunidade – o que permite que as cantinas comprem a produção local dos extrativistas.
A rede conta com oito miniusinas de processamento e 44 paióis de estocagem, 153 estradas de seringas reabertas e nove casas de seringa construídas. Entre os produtos trabalhados pelas comunidades extrativistas da região, além da valorizada castanha-do-pará, comercializada com casca e desidratada, e derivados do produto, como óleo e farinha de castanha, estão também óleo e farinha de babaçu, sementes florestais e borracha, vendida em bloco e em manta.
De 2009 a 2017, o faturamento da rede de cantinas girou em torno de R$ 400 mil ao ano e a expectativa é fechar 2018 com R$ 1,8 milhão. As cantinas também acumularam um capital de giro superior a R$ 500 mil. Apenas nas três reservas extrativistas da região — Xingu, Iriri e Riozinho do Anfrísio, onde vivem cerca de 300 famílias -, o capital de giro chegou a quase R$ 300 mil.
A comunidade do Rio Novo, por exemplo, coleta uma média de 200 caixas de castanhas – com cerca de 22 kg cada uma – e compra o restante de outros extrativistas por meio da cantina para fazer o beneficiamento. Esse ano entraram na cantina mais de 900 caixas de castanha. Quatrocentas foram vendidas para os contratos da rede de cantinas e 510 estão em processo de beneficiamento. O capital de giro da miniusina que começou com R$ 10 mil em 2012 chegou a R$ 65 mil no ano passado.
“Nós compramos esses 65 mil e muito mais do que isso de castanha, porque a gente fez empréstimo. A rede ajuda a gente a processar, pagar as pessoas que quebram a castanha e quando a gente revende a castanha beneficiada paga todas as dívidas que ficaram com o capital de giro nas cantinas”, explica Raimunda.
O beneficiamento da castanha na miniusina que começou em outubro vai seguir sem pausa durante 33 dias para encerrar a produção anual e fazer o balanço para a reunião de cantineiros que acontece anualmente em Altamira todo ano no final de novembro, antes do início da nova coleta de castanha.
Na reunião, representantes de todas as cantinas trocam experiências sobre a produção durante o ano, os ganhos, perdas, e também discutem qual deve ser o preço da castanha com casca e da castanha beneficiada para o próximo período, valor que é adotado por todas as cantinas.
“Antigamente você vivia humilhada pelos atravessadores. Eles chegavam e falavam pra ti que iam pagar R$ 10 na caixa de castanha e você aceitava aquilo porque não tinha pra onde vender. Hoje as cantinas fecham o contrato sobre o preço da castanha e o atravessador tem que comprar naquele preço. Então, tem mais segurança pra nós, tem mais lugar pra correr atrás, não tem só aquela opção”, ressalta Raimunda.
O Rio Novo está localizado na Estação Ecológica onde começa a Reserva Extrativista (Resex) do Rio Iriri, na região da Terra do Meio, entre os rios Xingu e Iriri, formada por áreas protegidas que somam 8 milhões de hectares. Os encontros entre os cantineiros para negociar produtos e discutir preços também aproximou os moradores de diferentes áreas que ficavam muitas vezes isolados uns dos outros devido às grandes distâncias.
“O pessoal vivia muito longe. Eu nasci e me criei nesse local, não conhecia Riozinho, não conhecia ninguém que morasse pra cima do Rio, pra cima da Boa Esperança. E depois das cantinas a gente começou a entrar em contato, cantineiro com cantineiro, pessoa com pessoa, reunião, então a gente começou a conhecer mais, ficar mais próximo um do outro. E circular dentro do território”, conta Raimunda.
A utilização do capital de giro permite que os extrativistas recebam o pagamento assim que entregam a castanha na cantina. Antes eles tinham que esperar até sete meses para receber o dinheiro pelo produto coletado, devido a uma logística complexa de transporte e venda dos produtos.
Para chegar até a comunidade de Rio Novo, a reportagem da Agência Brasil percorreu cerca de 300 quilômetros (km) de carro saindo do centro de Altamira (PA), ao longo de sete horas. Foram cerca de 200 quilômetros pela Transamazônica. A parte mais demorada do trajeto foram os 90 km finais pela Transiriri, que consumiram quatro horas, devido às más condições da estrada de terra até Maribel. De lá, faz-se uma travessia de 40 minutos de barco pelo Rio Iriri até a Resex. No período de chuvas, o trajeto é todo feito de barco.
Instalada em 2011, a miniusina do Rio Novo foi a primeira experiência do tipo na Terra do Meio. Os primeiros elementos processados na usina foram o óleo e o mesocarpo do babaçu, além de experiências com manteiga de cacau e óleos de andiroba, castanha e mamona.
O início dessa atividade foi impulsionado pela atuação do Instituto Socioambiental (ISA) em uma das ações para incentivar o aproveitamento integral do fruto do babaçu na região. Essas ações fazem parte de um trabalho desenvolvido pelo ISA em parceria com as associações de extrativistas da Terra do Meio para a estruturação de cadeias de valor de produtos florestais não madeireiros – um arranjo local para extrativismo e comercialização dos produtos da floresta.
Essa atuação partiu de uma demanda dos beiradeiros pelo direito a uma renda digna feita às organizações que atuam na região por meio da Rede Terra do Meio (RTM), articulação entre associações locais, sociedade civil, academia e poder público, com o objetivo de constituir o primeiro espaço de ações no território após a demarcação das Unidades de Conservação (UCs) na região.
Em 2008, partiu da Rede a criação de um Grupo de Trabalho (GT) de Produção e Comercialização com o objetivo de atender a essa demanda específica da população local. Participaram do GT além do ISA o Instituto de Pesquisa da Amazônia (Ipam), Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), Instituto Floresta Tropical (IFT), Instituto de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Fundação Nacional do Índio (Funai), Instituto de Desenvolvimento Florestal do Pará (Ideflor) e Fundação Viver, Produzir e Preservar (FVPP).
A partir daí, foram realizados os primeiros diagnósticos de alternativas produtivas para a região junto com os beiradeiros - moradores das margens dos rios - , trabalho que se estendeu até 2011, quando teve início a implementação das cadeias produtivas na região, com busca de mercado diferenciado para os produtos e a gestão da produção dentro das Reservas Extrativitas (Resex), por meio do modelo da rede de cantinas que recebem a produção extrativista e o beneficiamento dos produtos nas miniusinas para agregar valor.
“Teve a implantação; agora é consolidação. O modelo está provado, funciona, tem os contratos, tem capital de giro, tem responsáveis, tem produto e mercado. Então, aqui o ISA começa seu processo de retirada para o modelo ficar em pé com as associações. As cantinas conseguiram se comprometer já com volumes maiores, conseguiram contrair empréstimos e mandaram ver. Hoje há uma dinâmica instalada que independe do ISA”, considera Marcelo Salazar, coordenador do componente Terra do Meio do Programa Xingu do ISA.
Dos contratos assinados com grandes compradores da Rede de Cantinas, um total de 3,7 toneladas de farinha de babaçu foram vendidas para as merendas de escolas de municípios na região de Altamira; 1,5 tonelada de óleo de copaíba para a empresa de perfumaria Firmenich e mais de 8 toneladas de borracha para a empresa Mercur. Além disso, em ano de safra de castanhas, 330 toneladas do produto foram vendidas para a Wickbold, Fundação Somos Um e o mercado local.
A primeira parceria comercial de longo prazo estabelecida na Terra do Meio foi feita em 2010 com a empresa gaúcha Mercur para a compra de borracha produzida nas Resex. A parceria resultou no primeiro termo de cooperação da região, um contrato que define as condições da relação comercial e o papel dos atores envolvidos na promoção e monitoramento das cadeias de valor.
Participaram do termo além da empresa compradora Mercur e a empresa responsável por beneficiar a borracha, QR Borrachas Quirino, as comunidades das Resex Riozinho do Anfrísio, Iriri e Xingu, por meio de suas associações de moradores. As organizações ISA, Imaflora, FVPP e ICMBio foram as responsáveis pelo acompanhamento da relação entre as empresas e a comunidade de extrativistas.
A segunda parceria teve início em 2011, com a empresa de perfumaria suíça Firmenich, interessada na compra do óleo de copaíba produzido pelos extrativistas da Resex Riozinho do Anfrísio. A empresa aceitou a proposta das famílias responsáveis pela coleta da copaíba e extração do óleo sobre a necessidade de adquirir previamente as mercadorias necessárias para o seu trabalho e receber pela produção no momento em que entregasse o produto. A Firmenich realizou um aporte financeiro de R$ 10 mil para a comunidade e iniciou, dessa forma, a modalidade do capital de giro na cadeia produtiva das Resex.
“Ela fez uma doação para as comunidades por meio de um fundo interno da empresa. A cada contrato novo que foi sendo feito, os extrativistas colocavam essa necessidade e isso foi crescendo e hoje está batendo quase R$ 500 mil de capital de giro próprio nas comunidades, sem depender de empréstimo, de governo, de ninguém. O capital ou está na cantina ou está em produto. Isso dá mais confiança ao produtor porque garante que ele receba na hora da entrega do produto”, explica Salazar.
Em 2012, a comercialização do látex produzido nas reservas girava em torno de quatro toneladas e a de copaíba cerca de 1,2 toneladas, enquanto a castanha, um dos principais produtos extrativistas da região, tinha potencial para alcançar 500 toneladas, segundo um levantamento feito pelo ISA. Nesse ano foi realizada a terceira parceria entre as comunidades e uma empresa compradora, a primeira no ramo da castanha. O acordo foi firmado entre os extrativistas e a empresa Ouro Verde, uma processadora de castanha-do-pará em Alta Floresta, Mato Grosso, que resultou na compra das safras de castanha pela empresa.
A partir do modelo estabelecido com a copaíba na cantina do Alto Riozinho do Anfrísio, o ISA proporcionou adiantamentos de mercadoria para os castanheiros fazerem o pagamento da coleta e encaminhar o produto à cidade. Em 2014, foi iniciada a parceria mais recente com a empresa Wickbold, também relacionada à produção de castanha. O acordo foi finalizado em 2015 na Resex do Iriri e possibilitou a expansão das cantinas no território que, além das Resex, passaram a envolver também as Terras Indígenas (TIs) Xipaya e Kuruaya.
Em 2013, a miniusina da Resex do Iriri localizada no Rio Novo passou por uma adaptação de tecnologia para trabalhar no beneficiamento da castanha desidratada. Na safra de 2016, após o acordo comercial fechado com a empresa Wickbold, foram processados no Rio Novo 1.880 quilos de castanha, 84 quilos de farinha de castanha, 309 quilos de óleo de castanha e 100 quilos de mesocarpo de babaçu, além da produção de bolsas e sacos produzidos a partir do látex, vendidos localmente. Oito famílias participaram diretamente do processamento e 14 foram envolvidas na coleta dos produtos na floresta.
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Extrativismo gera emprego, renda e movimenta economia em áreas protegidas no Rio Xingu - Instituto Humanitas Unisinos - IHU