05 Setembro 2018
Repórter vai a Caarapó, no Mato Grosso do Sul, e colhe depoimentos e imagens que mostram as circunstâncias absurdas da prisão de Ambrósio, 70 anos, e a violência dos jagunços contra os Guarani-Kaiowá.
A reportagem é de Renan Antunes de Oliveira, publicada por Agência Pública, 03-09-2018.
Faz só uma semana que Ambrósio está no presídio de Caarapó, e a fama dele não para de crescer: de roceiro e de xamã de seu povo, virou herói e mártir para os 9 mil Guarani-Kaiowá da reserva Tey’i Kue, no sul do Mato Grosso do Sul.
No domingo 26 de agosto, nuns grotões quase na fronteira com o Paraguai, ele enfrentou apenas com reza forte a tropa de choque da PM: levou cinco tiros de balas de borracha e foi jogado numa cadeia, onde está incomunicável desde então.
Ambrósio é um líder espiritual. A polícia do Mato Grosso do Sul (MS) sustenta que ele, sozinho, atacou a soldadesca com um facão, quando então foi contido pelos tiros.
(Foto: Renan Antunes de Oliveira - Agência Pública)
A versão oficial balança quando se vê a sua única foto conhecida: Ambrósio cercado de alunos da rede municipal indígena, ensinando a criançada a colher, apoiado num cajado.
O xamã é um velhinho frágil, de apenas metro e meio de altura.
Só fala guarani. Quem o conhece atesta que tem dificuldades para caminhar. Brandir um facão parece fora de suas possibilidades.
O que as testemunhas indígenas da cena viram foi o velhinho ralhando com os soldados, antes de se esconder sob o trator e sair baleado.
Seria só mais uma escaramuça da permanente luta dos índios pela retomada de suas terras ancestrais, se não fosse a mão pesada das autoridades contra o xamã.
Ambrósio logo se transformou num embaraço para o governo do estado.
O Ministério Público Federal (MPF) requisitou às forças policiais estaduais imagens e documentos referentes à operação e instauração de inquérito pela Polícia Federal. “A pertinência da requisição decorre da atribuição constitucional de competência federal para apurar disputas fundiárias relacionadas aos Povos Indígenas”, diz o ofício do MPF, cobrando o governo do estado por meter sua tropa numa área de competência federal.
O incidente que levou a PM a invadir a aldeia foi uma gota no oceano. Para socorrer quatro vigias com medo dos indígenas e uma roça de melancias na sede da fazenda, o governo montou uma gigantesca operação militar.
As autoridades estaduais trataram o caso como uma invasão indígena de propriedade privada a exigir repressão imediata, despachando as tropas. O secretário de Justiça foi ao local para “dar suporte à operação” de salvar a sede da fazenda.
Detalhe: por ser uma das fazendas mais antigas da região, a sede da Santa Maria é simbólica para os produtores rurais que brigam para permanecer em terras indígenas. Eles não querem entregá-la aos Guarani, por isso esperneiam na Justiça e com a jagunçada.
Ela veio sendo reduzida de 55 mil para seus atuais 3 mil campinhos pelos próprios Guarani, que retomaram as redondezas, menos a sede.
A Funai já concluiu os estudos que reconhecem a Santa Maria como área indígena, mas desde a queda da ex-presidente Dilma Rousseff foi suspenso o processo de demarcação. No vazio, os fazendeiros foram à Justiça pedir a anulação do reconhecimento.
“Queremos retomar as casas da sede não pelo valor, mas pelo que significou em décadas de exploração”, ensina Celso, o cacique da Tey’i Kue.
A confusão começou na linha imaginária que separa a casa-grande da Santa Maria e a reserva Tey’i Kue, que a engolfa, hoje cravejada de malocas, entre elas a do xamã.
Lá pelas 9h daquele domingo, a menina Janiele, da maloca da dona Maria, estava numa roça procurando uma melancia, quando os vigias da sede da fazenda dispararam foguetes de artifício e tiros de verdade contra ela.
Janiele tem só 13 anos, mas já é calejada em enfrentar jagunços.
Ela se jogou no solo e sumiu.
Mais tarde, Janiele contou, em guarani: “Ouvi o barulho e vi alguém dando tiros por baixo de um carro Hilux, me joguei no chão e sai rastejando”.
Dona Maria estava em casa quando ouviu o primeiro “pá-pá” das armas: “Olhei na direção da Santa Maria e não vi mais a menina, achei que ela estava morta”, contou, na sexta, dia 31, ainda agitada, com a mesma emoção daquele domingo.
O ataque à menina e a gritaria de dona Maria mobilizaram centenas de indígenas.
Eles já saíram das ocas das proximidades com orelhas em pé.
Em seguida, correram para a sede da fazenda.
A essa altura a notícia da “morte” de Janiele era dada como fato consumado.
Os indígenas ficaram furiosos.
Começaram a bater boca com os jagunços: Giltinho, Milton, Márcio e Paulo (nenhum quis dar entrevista). Os indígenas não sabem qual deles atirou contra a menina.
Foi em algum momento dessa hora que Ambrósio se juntou aos seus, rezando forte.
Aí eles se moveram como uma onda para cima dos jagunços, exigindo a menina sã e salva.
Apavorados, os jagunços se trancaram na casa-grande e chamaram a Polícia Militar do MS e o temível DOF, o destacamento federal de fronteira, também mantido pelo MS, quase 200 homens.
A PM chegou em menos de 30 minutos para resgatar os quatro brancos ameaçados por um número de indígenas que varia, de acordo com a fonte, entre 20 e 50, no que seria uma tentativa de invasão.
As imagens da PM são pífias.
É Ambrósio Arcibide. Da etnia Kaiowá. Nascido em maio de 1948. Aposentado com um salário mínimo rural.
Os indígenas que tentaram resgatá-lo foram contidos por guardas armados de escopetas e protegidos por escudos, nesse caso desnecessários, porque nenhuma flecha foi lançada contra o pelotão.
O xamã baixou direto ao presídio de Caarapó, entre bandidos comuns.
Ficou incomunicável. Por sete dias, até a tarde do domingo em que escrevo esta reportagem numa lan house em Dourados, o velhinho não pode ver o irmão, Tadeu, nem os netos – nem os caciques da aldeia.
Por quê? “Se um de nós for lá sozinho, será preso e acusado dos mesmos crimes”, explica o irmão.
“Pra gente ir lá precisamos da proteção de um procurador federal, a polícia [local] não respeita ninguém. Ambrósio é o refém deles. Querem pegar mais um de nós”, explica o líder Otoniel.
Se ninguém pode ir ao Ambrósio (este repórter teve acesso negado ao presídio), fomos à casa dele.
É um barraco feito com cascas de árvores – quem se encosta na parede vê a sede da Santa Maria ao fundo.
A família está em choque com a prisão – todas as mulheres disseram em guarani que querem ele de volta no pátio, onde tomam conta dele.
Pode demorar: o delegado da Polícia Civil de Caarapó o acusou de roubo, cárcere privado e resistência à prisão.
O advogado Handerson Santos, do Conselho Indigenista Missionário (CIMI, órgão da Igreja Católica), pediu o relaxamento da prisão.
O caso foi às mãos de um juiz federal em Dourados. A Defensoria Pública estava esperando a soltura do xamã para os próximos dias.
Na segunda-feira, o batalhão de choque voltou às ocas das redondezas.
Foram à maloca do xamã em busca de qualquer coisa que pudessem recolher como prova de roubo – saíram de mãos vazias, desapontados com a pobreza franciscana de Ambrósio.
Ali perto, a tropa pegou de surpresa um bando de mulheres e crianças numa sombra. Arrombaram portas, reviraram tudo e foram embora deixando o aviso sinistro de “vamos voltar”.
O “naco Santa Maria” da aldeia está cercado por terras reconhecidas como Terra Indígena.
É questão de tempo para ser engolido.
A reserva Tey’i Kue tem 2 mil crianças em dezenas de escolas, com professores Guarani.
A nova geração está sendo educada para retomar as terras em disputa.
Uma aula de teatro tem encenação sobre o conflito.
A semana de leitura tem cartazes sobre demarcação.
A criançada sabe na ponta da língua como argumentar em defesa da causa.
A Santa Maria ainda pertence a Benedito Penteado, que vive em São Paulo.
Segundo o Sinrural, ele arrendou mil alqueires por 35 sacos de soja por alqueire, que o arrendatário transforma numa renda de R$ 500 mil anuais para o fazendeiro.
Odil Bandeira, diretor do sindicato, que congrega 250 fazendeiros, fez a conta dos alqueires e explica com simplicidade: “Quem perder a terra perde a grana”.
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Preso ancião indígena que enfrentou tropa de choque com rezas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU