Por: João Vitor Santos | 12 Mai 2018
No final de 2017, a passagem da filósofa norte-americana Judith Butler pelo Brasil trouxe para o plano das ações muitos dos pontos que servem de reflexão para ela. O que deveria ser apenas agenda de atividades – como a divulgação de seu mais recente livro, Caminhos divergentes: judaicidade e crítica do sionismo (Boitempo), e a participação no seminário Os Fins da Democracia, realizado em São Paulo – se tornou matéria-prima para protestos e demonstrações de ódio e intolerância de quem não aceita suas abordagens sobre Teoria de Gênero e Teoria Queer. Refletindo sobre esses episódios, a própria filósofa destacou que os protestos partiram de uma compreensão equivocada do que ela reflete acerca do gênero, que é um “campo vasto e vibrante, buscando entender desigualdades sociais, marginalização, violência”. Isso sem levar em conta a violência de tentar calar o outro, aquele que pensa diferente. “Esses ataques a ela falam muitas coisas sobre o que estamos vivendo aqui no país, sobre a obscuridade do debate político”, avalia a psicóloga, mestra e doutora em Antropologia Social Paula Sandrine Machado.
O episódio com Butler foi referido por Paula na abertura da conferência em que apresentou o livro da filósofa Problemas de Gênero. Feminismo e subversão da identidade (São Paulo: Civilização Brasileira, 2015), realizada na quinta-feira (10-5). A palestra integra o ciclo A Contemporaneidade em Debate – Intérpretes e obras, realizado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Paula Sandrine Machado (Foto: João Vitor Santos/IHU)
Para Paula, o que está por trás de quem combate as ideias da autora demonstra “como o debate político tem recebido e colocado em centralidade as discussões sobre gênero e sexualidade”. Revelam um não entendimento do que a própria Butler reflete, algo que vai além da chamada Teoria de Gênero, que, inclusive, apresenta muitos insights para se pensar o espaço político. “E essa obra é um marco na obra dela e nesse campo de estudos”, destaca.
Paula percorre o livro para detalhar a forma como a filósofa estrutura seu pensamento. “Ela apresenta um pensamento muito complexo, pois é autora de muitas influências que, numa primeira vista, podem parecer não muito articuláveis”, avalia. A professora refere o fato de a filósofa trazer autores da psicanálise, como Sigmund Freud e Jacques Lacan, e também de outras vertentes, como Friedrich Hegel, Michel Foucault, John Austin e Jacques Derrida.
“É difícil situá-la numa linha teórica muito específica. Algumas pessoas até brincam que faz uma análise psicanalítica das ideias de Foucault e olha para a psicanálise com um olhar foucaultiano”, afirma. Tudo porque, nesse livro em específico, Butler quer tensionar e pensar sobre o sujeito do feminismo.
Paula demonstra como a autora vai na origem do que são os estudos de gênero e de sua raiz comum com o feminismo. Aliás, movimento que nasce com o intuito de buscar mais igualdade para as mulheres. Elas são, inicialmente, esse sujeito do feminismo. Buscava-se direitos iguais para homens e mulheres. “E nesse movimento, vai fazendo uma espécie de genealogia foucaultiana das Teorias de Gênero e vai entendendo que sexo, gênero e desejo não são funcionais, são anteriores ao discurso. São efeitos da ação específica do poder”, explica. Assim, trazendo outras vozes, Butler vai pensando além da causa. “Vai vendo os sujeitos como constituídos no e pelo discurso”, completa.
É nesse instante da obra que formulações de teóricas feministas, como Simone de Beauvoir, são trazidas pela filósofa. “É na década de 1930 que se começa a pensar nos papéis de homens e mulheres, mostrando que o sexo biológico não tem a ver com o pensamento.” É assim que se chega à célebre frase de Beauvoir, de que não se nasce mulher, mas se faz mulher. Nos percursos de processos históricos, vai se percebendo que as ideias de determinismos biológicos não servem mais como caminhos. Começa a se pensar, então, no papel da cultura e na forma como ela vai incidindo na construção desses sujeitos. Por outra forma, não é mais a biologia que determina o que é o sujeito, homem ou mulher, e sim as afetações culturais.
Segundo Paula, é nesse momento que Butler começa a inscrever sua crítica à construção do sujeito. Afinal, de uma forma bem reduzida, podemos afirmar que se rompe com as armadilhas dos determinismos biológicos para cair noutros determinismos, os culturais. “Butler aponta que a categorização entre homens e mulheres é uma operação discursiva e indica que é preciso desconstruir essas categorias dicotômicas”, explica. “Ela critica a universalidade do gênero e como a criação da categoria de mulher vai impedindo que se olhe para as múltiplas interações do sujeito.”
O que Paula aponta é que a autora quer repensar para além das dicotomias. Afinal, não se pode dividir o mundo entre homens e mulheres. Pensar nesses padrões do que é ser mulher como uma única forma de ser fêmea, pois os sujeitos podem ser muito mais do que femininos ou masculinos, machos ou fêmeas. E mesmo o movimento feminista, quando elenca um sujeito para sua defesa, acaba acachapando outras tantas possibilidades. É como se o feminismo produzisse um efeito totalizante no ser mulher. “Butler vai se afastar dessa ideia de denúncia do patriarcado para pensar nas dicotomias que também vão produzir diferenças entre homens e mulheres”, acrescenta Paula. “É uma proposta de pensar o sexo não como algo natural e pensar como esses discursos também fazem o sexo parecer algo natural.”
Em alguma medida, Butler faz uma tensão para que se fique atento que movimentos como o feminista, que lutam por uma ideia de igualdade, curiosamente podem, ao mesmo tempo, produzir outras formas de desigualdades. “É pensar que identidade é mais do que se faz, do que se é. Ou seja, o ser não é anterior ao próprio ato que produz. O gênero é o que se faz, e não o que se vê”, reflete Paula.
Ainda na sua passagem pelo Brasil em 2017, diante de tantos protestos e demonstrações de intolerância, Judith Butler tentou compreender o que vivia como uma manifestação da associação que pessoas fazem de gênero à negação de diferenças biológicas entre os sexos. E essas mesmas pessoas querem que a diferença sexual, a heterossexualidade e o casamento sejam naturais, porque isso dá uma ideia de estabilidade e porque confirma ensinamentos religiosos. Ou seja, uma forma de encaixar sujeitos em padrões normativos – que também são repressivos. Mas os sujeitos nem sempre têm esse encaixe, há sempre a possibilidade de escapar à regra.
Paula Sandrine Machado aponta que essa perspectiva aparece em Problemas de Gênero. Feminismo e subversão da identidade. Para ela, é o viés político que Butler apresenta no livro. “Sempre vai haver corpos que vão fazer atos subversivos e que vão fugir à regra”, pontua. A partir disso, Paula pensa na ideia da política de coalizão, mas não de adesões absolutas. “As identificações podem ser provisórias. O que num determinado momento liga sujeitos, em outro já pode não ligar mais e abrir para outro sujeito”, reflete.
Assim, pela perspectiva de Paula, é emergente a desconstrução das identidades. E isso não tem nada a ver com a desconstrução da política. Talvez, mais do que uma ideia de crise política, pode se pensar em crise da representação, num rápido atravessamento das ideias de Butler do campo dos estudos de gênero para a ciência política. “É ver na política não a luta por uma representação, mas pensar na própria articulação da política. Precisamos apostar nas impossibilidades e nas ininteligibilidades das representações. Butler aponta que é aí que pode residir a potência”, detalha. Ou seja, não seria possível transpor essa lógica da filósofa para desconstruir esse sujeito do feminismo para os sujeitos da política? Talvez seja uma forma de repensar a crise como da política representativa, e não da ação política.
Nascida no ano de 1956, em Cleveland, Ohio, Estados Unidos, é uma filósofa com amplo diálogo pós-estruturalista. Considerada uma das principais teóricas da questão contemporânea do feminismo, teoria queer, filosofia política e ética, é professora do Departamento de Retórica e Literatura Comparada da Universidade da Califórnia em Berkeley. Obteve seu Ph.D. em Filosofia na Yale University, em 1984, com a tese Subjects of Desire: Hegelian Reflections in Twentieth-Century France. Em fins da década de 1980, entre diversas designações de ensino e pesquisa, envolveu-se nos esforços de crítica ao estruturalismo presente na teoria feminista ocidental, questionando os “termos pressuposicionais” vigentes no feminismo.
Judith Butler assume também genealogicamente os preceitos de autores/as que trabalham com o giro linguístico, tanto da escola inglesa (Austin, Searle) quanto da francesa (Derrida, Deleuze), e adota algumas posturas da fenomenologia existencialista de Sartre e Merleau-Ponty. Butler aponta a falsa estabilidade da categoria mulher e propõe buscar um modo de interrogação da constituição do sujeito que não requeira uma identificação normativa com o 'sexo' binário.
Entre suas obras traduzidas para português, destacamos, além de Problemas de Gênero. Feminismo e Subversão da Identidade (São Paulo: Civilização Brasileira, 2015), Quadros de Guerra. Quando a Vida É Passível de Luto? (São Paulo: Civilização Brasileira, 2015), Relatar a Si Mesmo (São Paulo: Autêntica, 2015) e A Vida Psíquica do Poder. Teorias da Sujeição (São Paulo: Autêntica, 2017).
Em Problemas de Gênero. Feminismo e Subversão da Identidade, Butler apresenta uma crítica contundente a um dos principais fundamentos do movimento feminista: a identidade. Para ela, não é possível que exista apenas uma identidade, que deve ser pensada no plural, e não no singular. Assim, acredita que não é possível que haja a libertação da mulher, a menos que primeiro se subverta a identidade de mulher. Butler ainda interroga a categoria de heterossexualidade, de forma a relançar a oposição sexo e gênero em novas coordenadas e em outras linhas de força, nas quais podemos nos aprofundar em perguntas como: o que é ser homem e o que é ser mulher?; o que faz um homem ser homem e o que faz de uma mulher uma mulher?
Imagem: Editora Civilização Brasileira
Problemas de Gênero é o primeiro livro de Butler publicado no Brasil. Lançado na década de 1990 nos Estados Unidos, o livro foi escrito de forma provocativa e pouco usual no meio acadêmico. Nisso consiste uma de suas contribuições para a renovação crítica do pensamento feminista na atualidade.
Paula: “Butler aponta que a categorização entre homens e mulheres é uma operação discursiva e indica que é preciso desconstruir essas categorias dicotômicas”
(Foto: João Vitor Santos/IHU)
Possui graduação em Psicologia e mestrado e doutorado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. É professora adjunta do Departamento de Psicologia Social e Institucional do Instituto de Psicologia da UFRGS, professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional - PPGPSI/UFRGS e professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - PPGAS/UFRGS. Coordenadora adjunta do Núcleo de Pesquisa em Sexualidade e Relações de Gênero - NUPSEX/UFRGS e do Centro de Referência em Direitos Humanos: Relações de Gênero, Diversidade Sexual e Raça - CRDH/UFRGS. Integrante do Núcleo de Pesquisa em Antropologia do Corpo e da Saúde - NUPACS/UFRGS. Entre suas publicações, estão No fio da navalha: reflexões em torno da interface entre intersexualidade, (bio)ética e direitos humanos (In: Miriam Pillar Grossi; Maria Luiza Heilborn; Lia Zanotta Machado. (Org.), Antropologia e Direitos Humanos, Blumenau: Nova Letra, 2006) e Intersexualidade e Direitos Sexuais: análise acerca de um contexto hospitalar (In: Dis/organized pleasures. Changing bodies, rights and cultures, 2007, Lima. Culture, Health & Sexuality. IASSCS Conference 2007 dis/organised pleasures. Abstract book. Londres: Routledge, 2007. v. 9).
A próxima atividade do ciclo A Contemporaneidade em Debate – Intérpretes e obras, realizado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU será no dia 5 de junho. O Prof. Dr. José Roque Junges apresentará Dos. La máquina de la teología política y el lugar del pensamiento, de Roberto Esposito. Saiba detalhes da programação.
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Butler, tensões do feminismo e uma política muito além das dicotomias - Instituto Humanitas Unisinos - IHU