12 Fevereiro 2018
“No início do novo milênio, em 2001 – escreve o teólogo italiano Andrea Grillo em seu blog Come Se Non, 24-01-2018 –, era publicado um pequeno livro em francês, logo traduzido para o italiano (Ghislain Lafont, Eucaristia: il pasto e la parola [Eucaristia: a refeição e a palavra], Turim: LDC, 2002), que marcava uma passagem importante dentro da teologia católica. Em certos aspectos, ele pode ser considerado como um texto fundamental para um desenvolvimento que, nesses últimos 15 anos, continuou e se articulou, sobretudo em âmbito francófono.
“Proponho novamente – continua Grillo – a sua apresentação, que eu escrevi há 15 anos e que apresenta suas linhas fundamentais nos planos antropológico, teológico, litúrgico e espiritual.”
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Será que toda a nossa teologia não passa de uma cansativa reeducação para povos que se esqueceram das leis primárias da arte de viver?”
Ghislain Lafont [1]
Se é verdade que “uma certa emoção é a condição da minha objetividade” [2], é preciso admitir que este livro, justamente por ser muito emocionante, apaixonante e até mesmo surpreendente, atinge um grau surpreendentemente intenso de objetividade, propondo – com seu “belo estilo” – aquele ato de compreensão e de exposição teológica da Eucaristia cristã, que representa um dos nós mais delicados a serem desfeitos de todo o emaranhado conceitual e experiencial da fé cristã.
Emocionante, apaixonante, surpreendente: palavras grandes, exigentes, mas absolutamente pertinentes para uma obra que nunca deixa o leitor indiferente; mas palavras também unilaterais e distrativas, pois a opereta de Lafont é, na leitura, pelo menos tão surpreendentemente linear, clássica e até mesmo elementar.
Talvez essa seja precisamente uma das características mais singulares desse autor, que recentemente foi ricamente recebido em âmbito italiano com a tradução de muitas de suas obras [3]: ele sabe como manter unidos registros que, comumente, pertencem a escolas, a estilos, a experiências e até mesmo a pessoas diferentes.
Gostaria de tentar introduzir esse novo livro, tão sábio e sapiente, movendo-me paralelamente com o pensamento do seu autor: autor e obra se entrelaçarão e se encontrarão continuamente, quase aplicando a esta apresentação a regra da Aliança e da Partilha que fecha o livro.
Depois de uma breve exposição da estrutura geral do livro, tentarei entrar nele segundo quatro caminhos (reflexão antropológica, especulação dogmática, aprofundamento litúrgico, meditação espiritual), em cada um dos quais encontraremos também um aspecto particular de todo o magistério teológico de Ghislain Lafont.
O livro se destaca por uma singular originalidade, por uma brevitas e um à plomb de grande elegância, por um olhar original e profundo, por um “tato” fino e delicado, mas também por um olhar sem preconceitos e imediato, pelo modo direto e original com que ousa tratar do sujeito eucarístico.
Começa-se a partir do ser humano, de modo radical. Os dois primeiros capítulos são consagrados a duas ações que qualificam o homem na sua relação com o próximo e com Deus. O “comer e beber” e o “falar” são estudados como o horizonte humano e mais do que humano dentro do qual pode se desenvolver aquela ceia eucarística na qual – é preciso lembrar –, acima de tudo, come-se, bebe-se e fala-se.
A esses dois primeiros capítulos segue-se um terceiro, no qual é abordado o “texto-chave” da Eucaristia, a Oração Eucarística, cuja estrutura é analisada com precisão e reconduzida ao seu significado fundamental, concluindo com páginas intensas sobre a festa como condição da máxima ativação do sentido profundo das ações mais elementares do ser humano.
O quarto capítulo, em seguida, desloca a atenção do leitor para o Mistério Pascal, ou seja, para o evento da Morte e Ressurreição, do qual a Eucaristia é memória e presença atual. Mas, mais uma vez, as sutis investigações teológicas são sustentadas por um largo emprego de uma fenomenologia da morte humana, do “morrer para” e da ressurreição da comunidade junto com seu Senhor.
O último capítulo, por fim, aborda o tema do Corpo e do Sangue, no qual todos os temas anteriores são resumidos: o comer, o beber, o falar, a união conjugal e o morrer encontram aqui a sua síntese. Precisamente nesse ponto, com grande profundidade unida à singular linearidade, é discutida a noção teológica central que interpreta, ainda hoje, aquele pão e aquele vinho em relação com aquele Corpo e com aquele Sangue: ou seja, o conceito de transubstanciação.
As conclusões retomam todo o fio da argumentação, percorrendo novamente toda a transfiguração do ser humano, que, por um lado, a comida, a palavra, o sexo e a morte revelam em geral como “troca” e como “dom”, e que, por outro lado, dentro da particular dinâmica celebrativa da Eucaristia, assume toda a sua evidência.
Mas esse é, por assim dizer, apenas o aperitivo. Para entrar ainda mais na trama do pequeno volume, podem ser seguidas quatro perspectivas de leitura, e cada uma delas nos mostrará, ao mesmo tempo, um dos “interesses” fundamentais de seu autor.
Ghislain Lafont, como ele também confessa na Introdução ao nosso texto, deixou que uma palavra importante lhe fosse dita pela antropologia do século XX: também daquela menos “harmônica” com o discurso teológico. Ele não se deixou distrair por aquela desconfiança fundamental que a teologia largamente teve e continua tendo ainda em relação à produção antropológico-cultural, a ponto de assumir palavras de fogo, como as que ressoam nos lábios de um filósofo tão caro a Lafont como Emmanuel Levinas, mas que, ao contrário do nosso, expressa pensamentos muito duros contra o antropólogo Lévi-Strauss:
“O ateísmo moderno não é a negação de Deus, mas sim o indiferentismo dos Tristes Trópicos, que eu considero como o livro mais ateu escrito hoje, absolutamente desorientado e desorientador” [4].
Lafont, por sua vez, reconhece sua dívida para com as leituras antropológicas, para com Mauss e Lévi-Strauss, para com Leroi-Gouran e Bachelard, para com Camporesi ou Eliade, e ele cita a todos na sua pesquisa, como autores essenciais para captar aquele pano de fundo humano – e nunca “humano demais” – sobre o qual a Eucaristia “trabalha”.
Por outro lado, essas “fontes” não são novas no trabalho teológico de Lafont. Bastaria pensar na sua presença importante em trabalhos anteriores [5], para compreender que não se trata de uma “maquiagem” da moda ou de uma tendência à la page, mas sim de uma reivindicação teológica de fundo do trabalho sistemático do nosso autor.
Assim como não se pode fazer teologia fora da linguagem concreta da fé, e assim como a fé utiliza principalmente a linguagem das grandes simbólicas da refeição, do sexo e da morte – porque a esses símbolos foram dedicados grandíssimos estudos por parte da antropologia cultural –, assim também a teologia não pode abrir mão de interagir com essas ciências humanas: programaticamente, Lafont pode dizer o seguinte:
“No ensaio seguinte, gostaria de tentar uma leitura da Eucaristia a partir desses grandes símbolos, dos quais as ciências humanas se ocuparam tanto durante a segunda metade do século que acaba de se concluir” [6].
Concretamente, isso significa um interesse radical pelo “fenômeno” mais elementar com o qual nos deparamos na Eucaristia. Isso talvez se explique também recordando a base tomista do pensamento de Lafont, que, no seu interesse teórico pelo “sensível”, sempre o estimula a ser curioso sobre todas as releituras que a cultura contemporânea propõe dele, do “desconstrutivismo” às simbólicas do cinema [7].
Mesmo com toda sua abertura às ciências humanas, este ensaio que temos na nossa frente continua sendo o ensaio breve de um teólogo dogmático e sistemático. Esse fato não deve surpreender: o pensamento de Lafont continua sendo, acima de tudo, um “pensamento teológico”, que, em virtude do mistério central da fé – Encarnação e Mistério Pascal, Morte e Ressurreição, Corpo e Sangue, um Deus Pai, Filho e Espírito –, abre-se a toda releitura contemporânea no horizonte de pensabilidade do mistério cristão.
Em certo sentido, estamos sempre na órbita do título de uma das primeiras grandes obras do nosso autor: Peut-on connaitre Dieu en Jésus-Christ? [8]: pode-se conhecer Deus em Jesus Cristo? A Eucaristia também é um modo de “conhecer”, de conhecer o absoluto de “Deus”, mas em, com e mediante “Jesus Cristo”; portanto, com toda a humanidade e a sensibilidade, a historicidade e a afetividade que esse “Nome” implica.
Esse “Nome” não existe e não pode existir sem “vínculos”. Mesmo ao se dispor a apresentar de modo linear o sentido da Eucaristia cristã, Lafont não esquece essa sua vocação especulativa, tão autenticamente cristã, quanto necessariamente filosófica e dogmática. Também não podemos ignorar que sua síntese teológica, oferecida nos grandes volumes já citados, porém, sempre tinha um horizonte que ele mesmo não podia chamar melhor do que “eucarístico” [9].
Para o nosso livro, isso significa que a grande “desordem” da abordagem antropológica sempre encontra um “critério ordenador” primeiro e último, uma Origem e um Fim, que é radical e rigorosamente sistemático e, como tal, funciona também como princípio organizador do material e da exposição. O leitor, que também se sente puxado por estradas desconhecidas e dentro de “selvas escuras”, sempre reencontra um horizonte pacificado e uma “reta via” no fundo.
Mas não bastaria um princípio dogmático para “produzir” o texto que temos sob nossos olhos. A sua estrutura também trai um elemento adicional: a “ponte” entre a primeira parte (predominantemente antropológica) constituída pelos capítulos 1 e 2, e a segunda parte (predominantemente teológico-sistemática) dos capítulos 4 e 5, constituída por uma seção intermediária, de caráter predominantemente litúrgico, que permite precisamente a passagem da primeira para a segunda parte.
De fato, existe um terceiro componente da sensibilidade de Ghislain Lafont, que poderíamos definir justamente como “sensibilidade litúrgica”, embora ele nunca tenha sido liturgista em sentido próprio [10]. Porém, ele captou como poucos outros que é na concretude do ato celebrativo que se pode e se deve captar a riqueza teológica e antropológica do “sacramento do altar”.
Assim, a meticulosa análise da Oração Eucarística III do Missal de Paulo VI não é um exercício de filologia ou de arqueologia litúrgica, nem simplesmente um comentário teológico ao texto, mas sim a oportunidade para pôr à prova aquele entrelaçamento entre palavra e refeição, que por si só já revelava algo essencial sobre a relação entre Deus e o ser humano, mas que, nesse capítulo III, parece plenamente assumido pela lógica do texto oficial e capaz de revelar suas nuances de outra forma invisíveis.
A própria lógica com que invocação, evocação, intercessão e aclamação se sucedem apresenta de modo inextricável – ao mesmo tempo como sujeito antropológico e como princípio cristológico, sem fechamentos no primeiro e sem imposições indevidas do segundo – a coimplicação entre teológico e litúrgico, como já está cada vez mais claro também para a própria pesquisa litúrgica. O Nome é comida, e a comida é Nome: a práxis litúrgica sabe disso desde sempre, embora a teoria custe a admitir e reconhecer isso.
Precisamente essa nova conscientização do entrelaçamento profundo entre teologia e liturgia, mediada pelas simbólicas culturais analisadas pelas ciências humanas, também abre para o último nível de interesse do volume: ou seja, seu perfil de teologia espiritual, em particular mediado pela sensibilidade monástica do autor.
No pano de fundo, há precisamente a concretude simples e direta da vida monástica, da sua “regulada devoção” (Muratori) e da sua “profundidade superficial” (Wittgenstein). Se o comer eclesial não é apenas o eucarístico, mas também o do “refeitório”; se o rezar não é apenas o da celebração dominical, mas também o da “Liturgia das Horas”, até sete vezes ao dia; se o falar não é apenas o das fórmulas prescritas, mas também o da invocação e da narração, da intercessão e da aclamação na relação cotidiana, eis então a transfiguração a que a Eucaristia submete a experiência do ser humano, não importa se ligada a um “princípio monástico” ou a um “princípio doméstico” da sua experiência cristã.
Seja como for, esse horizonte espiritual talvez seja aquele sobre o qual Lafont demonstra melhor como a saída de uma teologia “clerical” só é possível quando a reconciliação com o sentido autêntico da fé ocorre sempre também através do corpo, através da refeição, através da palavra, através do sexo, através da morte.
A experiência do Espírito é uma experiência radicalmente corpórea: essa antiga verdade encontra aqui palavras novas e imagens fora do comum, mas ainda mais decisivas hoje, para que tal experiência continue sendo a experiência possível para todos os cristãos. O fato de essas experiências corpóreas – como grandes simbólicas elementares – serem as primeiras a nos anunciar a Cristo e, portanto, a “no-Lo revelar”, é o segredo do grande texto que agora estamos prestes a degustar.
O que Ghislain Lafont nos propõe nessa sua obra é realmente notável. Seu pequeno volume oferece ao leitor algumas perspectivas de releitura da experiência eucarística tão original a ponto de constituírem quase um novum absoluto dentro do panorama teológico não só de hoje, mas de sempre [11].
Nunca ninguém havia falado teologicamente do Santíssimo Sacramento utilizando como base esse entrelaçamento entre “figuras” e “formas”: a comida, o sexo, a palavra, a morte são as grandes portas através das quais Lafont nos leva não somente a revisitar o grande museu, mas também a compartilhar a grande experiência viva e vital da Eucaristia.
Um gesto simples e palavras poéticas constituem o horizonte em que se perfila e ganha carne a Aliança com Deus e a Partilha com o próximo, a paz doada e a justiça projetada. Voltar a compreender essa dimensão elementar da Eucaristia significa, acima de tudo, redescobrir a verdadeira vocação da teologia em tempos pós-modernos – uma teologia concebida como reeducação à riqueza daquilo que é elementar -, mas também significa, por isso, voltar a tornar acessível toda a delicadeza e a profundidade desses gestos rituais, nos quais está escondido o sentido original da relação com Deus e com o próximo. Porque assim Deus quis e porque assim o ser humano é feito:
“Uma única realidade está em jogo, é reunida e se amplifica através dos grandes símbolos com os quais a nossa existência está entrelaçada: obter víveres e, simplesmente, aceitá-los; trocar carícias, expandir e acolher a semente; deixar correr o próprio sangue e mudar de vida porque o Outro morreu. Com variações de intensidade, é sempre o único movimento da vida que se manifesta e se realiza” [12].
Andrea Grillo
1. Gh. Lafont. Eucharistie. Le repas et la parole. Paris: Cerf, 2001, p. 38. Para as próximas citações do livro, usaremos a abreviação ERP.
2. Lafont, ERP, p. 58.
3. Refiro-me a Storia teologica della Chiesa. Itinerario e forme della teologia (Cinisello B.: San paolo, 1997) e a Immaginare la Chiesa cattolica. Linee e approfondimenti per un nuovo ‘dire’ e un nuovo ‘fare’ della comunità Cristiana (Cinisello B.: San Paolo, 1998). Antes ainda, havia sido traduzido – infelizmente só em parte – Dio, il Tempo e l’Essere (Casale Monferrato: Piemme, 1992).
4. E. Levinas. Difficile libertà. Saggi sul giudaismo. Brescia: La Scuola, 1986, p.118.
5. Acima de todos, é preciso lembrar: Gh. Lafont. Dieu, le Temps et l’Etre (Paris: Cerf, 1986), em que toda a primeira parte sobre o “Tempo perdido e o ser inencontrável” é construída sobre fontes abundantemente antropológico-culturais.
6. Lafont, ERP, p. 9.
7. Não esquecemos o grande início teológico de: Gh. Lafont. Structures et méthode dans le Somme Theologique de Saint Thomas d’Aquin, originalmente publicado em 1961 e depois republicado por Cerf, Paris, em 1969 e, finalmente, em 1996. Por outro lado, algumas notas do nosso livro sobre a Eucaristia traem abundantemente o grande interesse de Lafont pelo cinema contemporâneo...
8. Paris, Cerf, 1969.
9. Cf. Gh. Lafont, Verso un rinnovato orientamento eucaristico del linguaggio teologico, in: Il sapere teologico e il suo metodo. Teologia, ermeneutica e verità, ed. I. Sanna, Bologna: EDB, 1993, p. 257-270.
10. Na sua bibliografia (cf. J. Driscoll, Imaginer la théologie catholique. Mélanges offerts à Ghislain Lafont. Roma: Studia Anselmiana, 2000, p. 15-20) falta um grande texto, estritamente “litúrgico”, embora estejam presentes inúmeros artigos e diversas intuições importantes nos grandes volumes. Também não podemos esquecer o longo ensinamento em Sant’Anselmo, na Especialização Dogmático-Sacramental, em estreito contato com tantos liturgistas.
11. O próprio Lafont havia antecipado o sentido desse seu último volume no artigo Eucaristia, em A. Grillo; M.Perroni; P.-R. Tragan. Corso di teologia sacramentaria, vol. II (Brescia: Queriniana, 2000, p. 188-225). Em um nível completamente diferente e com um menor interesse estritamente teológico, encontramos alguns temas semelhantes no pequeno volume de Rubem A. Alves, La cucina come parabola (Magnano, VC: Qiqajon, 1996).
12. Lafont, ERP, p. 38.
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Nova teologia eucarística: Eucaristia como refeição e como palavra em Ghislain Lafont - Instituto Humanitas Unisinos - IHU