18 Janeiro 2018
STF não detalha procedimentos que definem o sorteio de processos entre ministros; levantamento de dados da última década revela equilíbrio, mas não há como descartar possíveis manipulações.
A reportagem é de Adriano Belisário, publicado por Agência Pública, 16-01-2018.
Acionado diariamente para dar destino às ações que chegam à instância superior da Justiça brasileira, o sistema de sorteio do Supremo Tribunal Federal é tão polêmico, quanto obscuro. Para tentar entender seu funcionamento, a Pública realizou uma análise inédita de mais de meio milhão de processos distribuídos entre os ministros do STF na última década (2007-2017). Com os dados, foi possível verificar que, aparentemente, há um relativo equilíbrio no resultado do sorteio. Mas isto não descarta possíveis manipulações, nem prova que o sistema é de fato aleatório, como explicam os especialistas consultados pela Pública.
A escolha do relator responsável por cada caso é crucial, já que provavelmente será ele o responsável pelo encaminhamento do julgamento. A fim de garantir a imparcialidade, esta escolha é – ou deveria ser – feita ao acaso, na maioria das vezes. Porém, apesar de sua importância, poucos conhecem exatamente os critérios de distribuição deste sorteio.
Pairam dúvidas inclusive dentro do próprio STF. Ao assumir o cargo, a presidente Cármen Lúcia prometeu uma auditoria externa no sistema, até hoje não realizada. E, na definição do relator da Lava Jato, acompanhou pessoalmente a inserção dos dados no sistema de sorteio, como se necessário ver para crer.
Já que o Supremo nega detalhes sobre como o sistema funciona por dentro, analisamos então como ele se parece “por fora”. Ou seja, quais foram os resultados desta distribuição em retrospectiva. A partir de 589.455 processos distribuídos entre 2007 e 2017, identificamos que, aparentemente, há uma distribuição equilibrada entre as 11 vagas do STF.
Extraímos automaticamente as Atas de Distribuição do site do Supremo Tribunal Federal, organizando os dados publicados em uma grande tabela com os detalhes de cada distribuição realizada. Abaixo, vemos o total acumulado de processos distribuídos para cada vaga do Supremo, representadas em linhas/cores distintas.
Ainda que existam diferenças no total, é possível observar que a evolução se dá de forma semelhante, exceto em períodos nos quais o ministro assume a presidência ou quando sua cadeira fica vaga, deixando-o fora do sorteio. É o caso, por exemplo, da vaga de Joaquim Barbosa e Edson Fachin (em marrom claro) no período entre final de 2012 e meados de 2015.
Cada processo que chega ao Supremo se enquadra em uma “classe”: por exemplo, Mandados de Segurança, Habeas Corpus, Ações Diretas de Inconstitucionalidade, etc. Checamos também se o padrão de distribuição entre os ministros se mantinha equilibrada em cada uma das 35 classes e, no geral, não encontramos grandes discrepâncias.
Com foco nas distribuições entre 2014 e 2017, o cientista de dados Marcelo Alves também analisou as informações coletadas pela Pública para tentar elucidar se há algum tipo de tendência na distribuição. “Após normalizar a quantidade de processos recebida em relação ao total de dias de atuação no STF, os testes sugerem concentrações muito parecidas entre os ministros, tanto no total, quanto para cada classe de processo. Há uma correlação muito forte entre o tempo de casa e a quantidade de processos recebidos. Isso pode ser um indício da aleatoriedade do mecanismo, porém, apenas com uma investigação transparente do código responsável pelo sorteio, poderíamos afirmar como ele de fato funciona”, explica.
Em meio à pesquisa para sua tese sobre o Supremo, o cientista político Júlio Canello fez uma análise similar sobre a distribuição de Ações Constitucionais entre 1988 e 2015. Ele também encontrou uma distribuição “homogênea”. “O resultado sugere que o volume de trabalho é equilibrado entre os ministros, mas isso não resolve a questão de saber se o sistema de sorteio funciona de maneira aleatória”, pontua.
O sorteio digital é o destino de quase todos processos que alcançam o degrau máximo da Justiça brasileira. Mas há exceções. Quando algum ministro já tomou alguma decisão anterior sobre o mesmo objeto da ação ou tema relacionado, a relatoria é atribuída diretamente para ele, por meio do mecanismo conhecido como “prevenção”. De acordo com os dados apurados pela Pública, a prevenção se aplica a apenas 8% dos processos do Supremo.
“O critério aleatório de distribuição é necessário para preservar os princípios constitucionais que garantem julgamentos imparciais. Ninguém pode escolher um juiz, nem o juiz pode escolher causas. Já a prevenção atende a outra necessidade, que é a de prestar a Justiça com coerência e o mínimo conflito entre as decisões”, comenta Silvana Battini, professora da Fundação Getúlio Vargas.
Vale ressaltar que a distribuição determinada pelo sorteio nem sempre é definitiva. É possível que o mesmo processo seja sorteado e depois distribuído por prevenção, alterando assim seu relator. Foi o caso de um dos habeas corpus do empresário Jacob Barata Filho, inicialmente enviado por sorteio para a ministra Rosa Weber. Uma semana depois, “redistribuído por prevenção” , o processo mudou para a mesa de Gilmar Mendes, relator da Operação Calicute, investigação que atingiu a cúpula do transporte carioca. No mesmo dia em que recebeu o caso, o ministro providenciou a liberdade do “Rei do Ônibus“. Devido à proximidade de Gilmar Mendes com o réu, o Ministério Público questionou a distribuição, mas o pedido de suspeição ainda não foi levado a julgamento pela presidência.
Ex-vice-procuradora-geral da República, Ela Wiecko explica que, em geral, cabe ao relator se declarar prevento ou não. A presidência intervem apenas nos raros casos onde há divergência entre os juízes. “De alguma forma, isso dá ao relator um certo poder de vulnerar a distribuição ou porque usa critério pessoal ou porque afirma sua competência e ninguém se opõe”, analisa.
A Lava Jato é outro exemplo que mescla prevenção e sorteio. Quando faleceu o ministro Teori Zavascki, o sistema de distribuição automática foi acionado e Edson Fachin foi sorteado como relator do “processo-mãe” da Operação. A partir de então, todos os outros casos relacionados a esta investigação são encaminhados a ele, por prevenção.
Há ainda os chamados “processos ocultos”, que sequer constam no sistema oficial e cujos mecanismos de distribuição são ainda mais opacos. Em 2016, o então presidente Lewandowski assinou resolução proibindo o sigilo, mas há quem duvide sobre o quão eficaz é a decisão. “A extinção é bem controversa. Certamente, há coisas tramitando às escondidas. Nunca deixou de existir”, afirma um ex-assessor, que trabalhou por mais de 15 anos no Supremo e hoje atua na iniciativa privada.
O regimento interno dá diretrizes gerais sobre o sorteio, por exemplo, descrevendo casos onde os ministros estão impedidos de participar, como quando assumem a presidência, deixam o cargo ou realizam missão oficial por mais de trinta dias. Nestes casos, o próprio regimento determina uma compensação futura, a fim de manter o equilíbrio na distribuição.
Em meio às expectativas com o sorteio da Lava Jato, o STF confirmou que fatores como a classe e quantidade de processos já distribuídos para seus gabinetes alteram as compensações e, por consequência, a chance de cada nome ser sorteado. Estes pequenos ajustes serviriam para compensar eventuais desequilíbrios e manter uma distribuição justa. Mas os pesos de cada um destes fatores e a forma como isto é implementado na prática segue sendo um segredo.
“A visibilidade sobre essas formas de compensação, inclusive pro âmbito interno, é inexistente. Mesmo para os gabinetes. A ata de distribuição é praticamente como resultado da loteria. Vai dizer quais números foram sorteados, mas não justifica porque foi A ou B. Certifica o resultado dessa distribuição, mas não a motivação ou como houve essa compensação. Não há clareza. Antes fosse um algoritmo, nem isso. É uma coisa meio estranha”, comenta o ex-assessor, que conversou com a Pública sob garantia de anonimato.
Já o procurador Felipe Fonte apresenta outra perspectiva, assegurando que percebeu uma distribuição “equânime” dos processos entre os ministros do STF. “A impressão era realmente a de um sorteio”, relata o professor em Direito, que foi assessor do ministro Marco Aurélio entre 2011 e 2013.
Júlio Canello ressalta que a compensação não descaracteriza a aleatoriedade do sorteio. “Isso é uma confusão recorrente. Estes fatores alteram a chance de cada um ganhar, mas a escolha não deixaria de ser aleatória. O ajuste por acervo muda apenas a probabilidade de cada ministro ser escolhido”, sublinha.
Observando os dados de distribuição, é possível identificar alguns efeitos deste fator de compensação, especialmente no caso dos ministros que assumem a presidência ou acabam de entrar na Corte. Ao se tornar presidente, o juiz deixa de ser sorteado, porém, seu gabinete tende a receber posteriormente uma carga maior de processos que os demais companheiros.
Visualizando a média de processos sorteados para cada ministro recentemente, por exemplo, observamos que o ministro Edson Fachin se destaca desde sua entrada. No último trimestre de 2015, ele bateu o recorde com folga: teve uma média de 41 processos distribuídos por dia. No segundo lugar, Luiz Fux ficou com 30 e, por último, Marco Aurélio com 26.
Nos meses seguintes, permanece uma diferença considerável entre Fachin e os demais colegas de tribunal. Isto provavelmente acontece devido ao “fator de compensação” e o longo período no qual seu gabinete deixou de receber processos.
Antes de Fachin tomar posse em junho de 2015, a cadeira ficou vazia durante quase um ano por conta da demora da presidente Dilma em indicar o substituto de Joaquim Barbosa, que se aposentou em julho do ano anterior. E, por ser presidente do tribunal entre 2012 e 2014, Barbosa já estava há tempos sem participar do sorteio. Este largo intervalo fez seu gabinete receber bem menos processos que seus colegas, de modo que a compensação buscaria um equilíbrio.
Solicitamos detalhes sobre o algoritmo e o procedimento do sorteio, com base na Lei de Acesso à Informação (LAI). Contudo, o STF ignorou os prazos legais e não forneceu respostas. A assessoria de imprensa também foi contatada e informou que o órgão não iria prestar esclarecimentos sobre nenhuma das questões enviadas.
Em 2016, em resposta a uma requisição de um cidadão via LAI, o Supremo alegou falta de previsão legal para fornecer o algoritmo do sorteio, a despeito de seu próprio regimento interno determinar que “o sistema informatizado de distribuição automática e aleatória de processos é público”. Na ocasião, especialistas criticaram a falta de transparência e apontaram que a divulgação do algoritmo tornaria o sistema mais confiável.
Para Ivar Hartmann, coordenador do projeto Supremo em Números da Fundação Getúlio Vargas, é fundamental dar mais transparência para o sorteio. “O Supremo deveria divulgar em detalhes as regras e respectivos critérios utilizados pelo algoritmo, normatizando isso em resolução oficial do tribunal”, defende.
A divulgação do código-fonte é um tema importante, mas por si só também não torna os resultados do sorteio imunes a manipulações. Mesmo que a distribuição seja feita por um computador, o sistema é operado por pessoas. Conhecendo como funciona algoritmo, seus fatores de ajustes e os dados das distribuições passadas, é possível fazer previsões realistas sobre quais ministros possuem mais chances de serem sorteados em determinado processo, prejudicando a imprevisibilidade do sorteio. De fato, após a morte de Teori Zavascki, por exemplo, a imprensa noticiou que funcionários do STF esperavam que Edson Fachin fosse sorteado relator da Lava Jato, o que se concretizou posteriormente.
A distribuição aleatória dos processos entre os ministros é responsabilidade da Presidência do Supremo Tribunal Federal. Sob seu comando, a Secretaria Judiciária cuida do sorteio informatizado, utilizando um sistema que, segundo o STF, foi desenvolvido por funcionários da casa.
Assim que assumiu a presidência da Corte, a ministra Cármen Lúcia anunciou a realização de uma auditoria externa no sistema eletrônico de distribuição de processos. A inspeção foi prevista para meados de 2017, durante o recesso parlamentar, mas até o momento não foi realizada. Apesar das promessas, ao que parece, Cármen Lúcia entregará este ano o cargo de presidente do Supremo sem avanços sobre o tema.
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Sorteio do Supremo é caixa preta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU