12 Janeiro 2018
A cultura do século XX se afastou da religião, mas manteve alta a atenção à espiritualidade. De Russell a Borges, de Wittgenstein a Gould: Cristo, para muitos intelectuais, é uma “tentação”. Então, é importante voltar às fontes mais autênticas de uma experiência que, certamente, é afetiva, mas não irracional; é interior, mas não abstrata; é incorpóreo, mas também “carnal”; é mistério, mas também epifania; é silêncio, mas não afonia.
Em Spiritualità e Bibbia [Espiritualidade e Bíblia] (Ed. Queriniana, 264 páginas) – do qual o jornal Avvenire, 11-01-2018, publicou o trecho que segue abaixo – o cardeal Gianfranco Ravasi percorre as Sagradas Escrituras entre exegese detalhada e amplas panorâmicas, para dar substância bíblica ao atual reavivamento da espiritualidade, criando não só um guia para a mística, mas também uma síntese essencial da teologia bíblica. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Filósofo, matemático, escritor (Prêmio Nobel de Literatura de 1950), mas principalmente agnóstico, tanto que pôde intitular um ensaio seu de 1927 como “Por que não sou cristão”: seria justamente Bertrand Russell o autor, em 1918, de um texto surpreendente desde o título, “Mística e lógica”. Naquelas páginas, sem hesitação ou constrangimentos, ele asseverava que “os maiores filósofos sentiram a necessidade tanto da ciência quanto da mística”.
E tentava também uma definição essa realidade aparentemente tão fluida e alérgica a todos os moldes classificatórios: “A mística é, substancialmente, pouco mais do que uma certa intensidade e profundidade de sentimento em relação àquilo que se pensa sobre o universo”.
O fato é que a espiritualidade, com a sua gramática móvel original, muitas vezes conquistou personagens à primeira vista arredios em relação à religião, talvez por alguma experiência decepcionante da juventude.
É o caso, por exemplo, de outro Nobel literário (1947), André Gide, em contínuo duelo com a sua matriz huguenote, como se evidencia a partir das frequentes referências bíblicas dos títulos das suas obras: “A volta do filho pródigo”, “Se o grão não morre”, “A porta estreita”, “Saul”, “Numquid et tu?”, “O imoralista” e assim por diante.
Em um dos seus primeiros romances, “Os moedeiros falsos” (1925-1926), exploração dos segredos contraditórios da alma perfurando os véus da hipocrisia puritana, ele não hesitava em escrever: “Sem a mística, nada de grande pode ser alcançado”.
E o frêmito da espiritualidade permeava o autobiográfico “Numquid et tu?”: “Penso que não se trata tanto de crer nas palavras de Cristo por ser Cristo e o filho de Deus, mas sim de compreender que ele é o filho de Deus porque a sua palavra é bela acima de toda palavra humana, e nisso eu reconheço que tu és o filho de Deus”.
É por isso que, antes de percorrer as páginas bíblicas de acordo com o recorte específico da interioridade espiritual, gostaríamos de abrir apenas um vislumbre nesse horizonte, assim como foi abordado por figuras à primeira vista estranhas a ele. É também um modo de sublinhar o destaque de que se reveste a espiritualidade na própria cultura atual aparentemente tão secularizada e alérgica a esses temas.
Certamente, o tema foi abordado também por intelectuais crentes. Apenas para evocar alguns exemplos, pensamos no debate em 1925 entre os filósofos Maurice Blondel e Jacques Maritain em torno do “problema da mística”, ou em outro grande pensador como Henri Bergson com as reflexões presentes na sua obra-prima “As duas fontes da moral e da religião” (1932), enquanto o jesuíta Joseph Maréchal tentava fazer a psicologia e a espiritualidade dialogarem com a sua obra La psychologie des mystiques (1924).
Nós, porém, deveremos ampliar muito o leque dos agnósticos tentados por essa mesma experiência, começando pelo extraordinário olhar “de olho fechado” (mas essa locução hebraica, aplicada ao mago Balaão em Números 24, 3, significa, na realidade, “de olho penetrante”) do escritor argentino Jorge L. Borges, para remontar a Voltaire, admirador da “Imitação de Cristo”, um dos clássicos da espiritualidade, cujas “palavras são como fogo escondido na pedra”, para chegar até o renomado ensaísta e crítico francês Roland Barthes, que considerava os Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola um excepcional palimpsesto da alma, segundo o qual “não é preciso ser nem católico, nem cristão, nem crente, nem humanista para se interessar por essa obra” (assim ele afirma no seu Sade, Fourier, Loyola, de 1971).
Neste ponto, pode-se perguntar qual é o ímã que às vezes atrai pessoas distantes da prática religiosa e até mesmo indivíduos apáticos em relação a temas religiosos, prontos, porém, para se agarrarem aos lábios de um guru mistificante exótico ou, mais seriamente, a se interrogarem sobre o vento do Espírito que sopra onde quer (cf. Jo 3, 8).
Não é possível isolar uma resposta homogênea, até porque – apesar do oceano bibliográfico crítico dedicado a um mar textual igualmente vasto –, como já se repetiu, é difícil elaborar uma definição desse fenômeno das iridescências infinitas. Não por acaso, por exemplo, a palavra “mística’ tem na sua raiz o verbo grego myêin, que exige um fechar dos lábios ou dos olhos, calando-se, sendo justamente o “mistério” o objeto a se conhecer.
Um dos maiores escritores místicos, o espanhol do século XVI São João da Cruz, na sua “Subida do Monte Carmelo”, introduzia um ápice de vertigem ritmado sobre a dialética paradoxal antitética “Nada/Tudo”: “Para chegar a provar tudo, não querer o gosto de nada. Para chegar a possuir tudo, não querer possuir nada. Para chegar a ser tudo, não querer ser nada. Para chegar a saber tudo, não querer saber nada...”.
Ignorando as fronteiras étnico-culturais e religiosas, a espiritualidade também replica no Oriente essa mesma intuição apofática (mas não afônica) em um texto indiano: “Como se descobre Deus? Tornando branco o coração com a meditação silenciosa. Não tornando preto o papel com escritos religiosos. Não tornando espesso o ar com as palavras espirituais”.
A inefabilidade e o vértice místico e, precisamente por isso, como sugeria o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951), aquilo de que não se pode falar, deve ser narrado. Usando livremente o acrônimo NOMA, dos Non Overlapping Magisteria, ou seja, dos estatutos de conhecimento “não interferentes”, defendidos pelo cientista estadunidense Stephen Gould (1941-2002) para o nexo entre ciência e religião, poderíamos dizer que a mística privilegia não a definição teórica (que também às vezes está presente: pense-se no célebre autor medieval Mestre Eckhart), mas sim a descrição experiencial, a cognitio experimentalis de Deo, como já sugeriam São Tomás de Aquino e São Boaventura.
A espiritualidade é tendencialmente afetiva, baseada não no irracional, mas em uma metarracionalidade, à maneira das “razões do coração” defendidas por Pascal (pense-se, por exemplo, em Hildegard de Bingen, em Juliana de Norwich, em Matilde de Magdeburgo, e assim por diante).
Era isso que afirmava o chanceler do século XIV da Universidade de Paris, Jean Gerson, na sua “Teologia mística”: “Aqueles que nunca fizeram a experiência interior de Deus nunca poderão saber intimamente o que é a teologia mística, assim como quem nunca amou jamais poderia dizer com perfeito conhecimento de causa o que é o amor”.
Nessa frase, já temos um dos percursos mais lineares para entender aquele “magistério” não interferente na pura e simples racionalidade e na sua lógica formal.
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A inteligência fascinada pela mística. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU