01 Junho 2017
“O trabalho mudou, e a cultura do trabalho evoluiu. E somos sobreviventes de uma longa fase de desregulação econômica. Mas, justamente por isso, o chamado de Francisco se propõe como pertinente e provocativo.”
A opinião é do ex-senador italiano Domenico Rosati, que também foi presidente da Associação Cristã dos Trabalhadores Italianos (Acli), em artigo publicado por Settimana News, 30-05-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Papa Francisco falou aos operários. Os da Ilva, em Gênova. E recapitulou com eles as principais passagens da sua doutrina. Que não se desvia do ensinamento da Igreja no campo social, mas dele fornece uma leitura peculiar e... provocativa.
Eu tive a sorte de ouvir ao vivo o diálogo de Francisco com aqueles trabalhadores, com os clamores que marcavam as suas passagens mais significativas. E me dei conta de que, na linguagem desse papa, sempre há um alvo profético.
Era assim na Evangelii gaudium e era assim nos discursos aos movimentos populares. Em Gênova, havia, além disso, o fascínio da transmissão ao vivo, do estilo das respostas que abalava a formalidade das perguntas e mostrava o quão poderosa era uma sugestão evangélica em relação com a condição humana do tempo presente.
Enquanto os sociólogos certificam que a classe operária já desapareceu, o papa recupera a tradição humanista do movimento operário, colocando novamente o trabalho no centro do desenvolvimento econômico e civil da sociedade.
E ele faz isso, na Itália, citando justamente o artigo 1 da Constituição, que estabelece uma conexão profunda entre o trabalho e a democracia: “Se não fosse fundada sobre o trabalho, a República italiana não seria uma democracia”.
Um assunto caro aos pais constituintes e, particularmente, a Fanfani, que defendeu que a indicação do trabalho como fundamento da República significava excluir do seu horizonte os privilégios, as castas, as rendas.
Aqui, o papa entra em rota de colisão com as teses daqueles que, no perene debate sobre os fundamentos do agir político, teriam preferido uma república “fundada sobre a liberdade” ou, melhor, “sobre o mercado”. Em toda a sua ampla exposição genovesa, nunca se encontra a palavra “mercado”, sozinha ou acoplada ao adjetivo “social”.
Não parece realmente uma abertura às posições que, também no mundo católico, sustentaram a possibilidade de que um mercado “bom” expulse, ou derrote, ou ponha em minoria o mercado “ruim”.
Em vez disso, há uma passagem do discurso papal que poderia ser intitulada “A parábola do bom empresário”, que conecta a qualidade da economia à qualidade subjetiva do empresário: “Quando a economia é habitada por bons empresários, as empresas são amigas do povo”.
O mesmo não acontece, em vez disso, quando o empresário se transforma em especulador, já que, então, “tudo se arruína”: é uma economia sem rostos, “porque por trás das decisões do especulador, não existem pessoas, e, portanto, não se veem as pessoas a serem demitidas ou cortadas”.
Tudo isso a jusante de uma condenação sem apelo: “Quem pensa que pode resolver o problema da sua empresa demitindo pessoas não é um empresário, é um comerciante”.
É útil sublinhar que o papa desenvolveu tais considerações sobre a contraposição entre empresário e especulador justamente em Gênova, uma diocese na qual, desde os tempos do cardeal Siri, floresceu uma escola de empresários católicos (Ucid), que se engajou muito nos temas da ética empresarial, sem, contudo, chegar à hegemonia do mundo industrial italiano, nem mesmo quando, na cúpula da Confindustria, sentava-se um católico como Angelo Costa. Durante cuja presidência estava em uso o envio de informativos à Santa Sé sobre... transgressões dos padres (das Acli) que iam rezar missa nas fábricas ocupadas dos trabalhadores.
A outra passagem relevante da intervenção papal em Gênova diz respeito à alternativa entre manutenção e protagonismo: “Não se resignar à ideologia que imagina um mundo onde talvez metade ou dois terços dos trabalhadores vão trabalhar, e os outros serão mantidos por um subsídio social”.
Para o papa, “deve ficar claro que o objetivo social a ser alcançado não é a renda para todos, mas o trabalho para todos. Porque, sem trabalho para todos, não haverá dignidade para todos”.
Alguns comentaristas escreveram que o papa rejeitava a posição de Beppe Grillo sobre a renda de cidadania e defendia a oposta. Mas isso não é visível hoje no panorama político italiano e europeu, onde foi apagada até mesmo a eventualidade da realização do pleno emprego, com base no critério, alternativo, pelo qual a máxima ocupação é aquela que o mercado permite.
Para encontrar ênfases tão pontuais e eficazes sobre o tema do pleno emprego, é preciso se referir ao Giorgio La Pira de L’attesa della povera gente [A expectativa da pobre gente] (1952), o livro no qual, no dia seguinte à guerra e às grandes investigações sobre a miséria e sobre o desemprego, identificava-se a solução em “um governo com um único objetivo: o pleno emprego”.
É totalmente pacífico que tal discurso é hoje muito mais difícil. O trabalho mudou, e a cultura do trabalho evoluiu. E somos sobreviventes de uma longa fase de desregulação econômica. Mas, justamente por isso, o chamado de Francisco se propõe como pertinente e provocativo.
Não buscar o caminho... cômodo da manutenção de quem não trabalha, mas fazer com que todos possam trabalhar. Sabendo que tal desafio envolve uma forçação das regras do mercado e uma assunção de responsabilidade por parte do Estado não só como agregador e dispensador de recursos, mas também como promotor de iniciativas econômicas em âmbitos de comum utilidade.
A última anotação diz respeito à duríssima condenação da “meritocracia”, como fruto da cultura competitiva em voga nas empresas: “O novo capitalismo mediante a meritocracia dá uma veste moral à desigualdade, porque interpreta os talentos das pessoas não como um dom, mas como um mérito. Nenhuma concessão da versão boa do termo que pode ser obtida do fato de entender o termo ‘meritocracia’ como o contrário de favoritismo, disparidade, recomendação...”.
E com um corolário inquietante, ou seja, uma “mudança da cultura da pobreza”, no sentido de que “o pobre é considerado um desmerecido e, portanto, um culpado: e, se a pobreza é culpa do pobre, os ricos são exonerados de fazer algo”.
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As notas que precedem e as citações do discurso de Gênova têm o único propósito de chamar a atenção e suscitar a vontade de conhecer o texto na sua inteireza.
Também seria útil se se pudesse desenvolver um aprofundamento das posições e dos argumentos do Papa Francisco, seja em relação ao “sistema” do seu pensamento, seja em relação ao contexto mais amplo da doutrina social cristã.
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A parábola do bom empresário. Artigo de Domenico Rosati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU