27 Abril 2017
"Manter o regime norte-coreano tem um valor estratégico essencial, pois o exército norte-coreano proporciona para China e Rússia um nível de segurança inestimável, em caso de crise. Quase todas as bases dos Estados Unidos na Coreia do Sul estão ao alcance de sua artilharia e as tropas norte-coreanas estão a 55 km de Seul e seus 25 milhões de habitantes. Esta realidade faz com que a Coreia do Sul seja a maior aliada de fato da China, no momento de contrapesar delírios militaristas. Há consenso em que, mesmo que a Coreia do Norte possua armamento obsoleto e sua força nuclear não seja sofisticada, poderia barrar a Coreia do Sul e criar um cenário de pesadelo na península. E ainda que também exista o consenso que os Estados Unidos poderiam, por sua vez, barrar a Coreia do Norte, assim como fez em 1950, outro consenso aponta que nada garante que, nesse cenário, China e Rússia não voltem a intervir, em cuja conjuntura, Estados Unidos poderiam sofrer uma derrota pior e mais humilhante que a do Vietnã", escreve Augusto Zamora R., professor de direito internacional e relações internacionais na Universidade Autónoma de Madri, em artigo publicado por Rebelión, 26-04-2017. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
A cada certo tempo, a Coreia do Norte ocupa as primeiras páginas dos meios de comunicação, em uma mescla de gozação e notícia, que deixa a impressão que o regime norte-coreano é formado por palhaços histéricos com mísseis atômicos. Uma visão distante da realidade, ainda que o hermetismo do regime deixe pouco espaço para a análise ou o contraste informativo. Mas, a Coreia do Norte é algo muito mais pesado e sério que a família Kim, que governa o país desde 1945. É um hinterland, um limes que separa o território controlado pelos Estados Unidos – Coreia do Sul e Japão – do território das outras duas grandes potências mundiais de hoje, China e Rússia (antes, a URSS).
É ingenuidade infantil acreditar que o desenvolvimento militar e a subsistência econômica da Coreia do Norte teria sido – e continua sendo – possível sem o sinal verde de Beijing e Moscou, sobretudo de Beijing. A China absorve quase 60% das exportações do país e lhe proporciona 90% do combustível que consome e 57% de suas importações. Sem a China, o regime cairia em meses e o caos se apoderaria da Coreia do Norte.
A China é o país menos interessado em um caos, pois, caso ocorra, milhões de norte-coreanos buscariam refúgio no país mais povoado do mundo. Obviamente, aproveitando a oportunidade, os Estados Unidos tentariam conquistar o que não puderam com a Guerra da Coreia (1950-1953), que é colocar toda a península coreana sob seu controle. Como se pode deduzir, sem a necessidade de ser estrategista, nem China e nem Rússia aceitariam esse controle.
A Guerra da Coreia foi provocada pela tentativa das forças comunistas em reunificar o país e prolongada pela tentativa dos Estados Unidos em aproveitar a situação para se apoderar do norte. A derrota das forças norte-coreanas provocou a entrada da China na guerra e fez com que a União Soviética enviasse seus mais experimentados pilotos para combater contra os Estados Unidos. A guerra terminou em empate e com a fronteira mais militarizada do mundo.
Mudaram substantivamente os interesses, desde 1953? Não, ocorreu o oposto. Dentro de seu projeto de Guerra das Galáxias, os Estados Unidos estão instalando na Coreia do Sul o sistema de mísseis THADD, feito que foi denunciado por China e Rússia como uma ameaça direta a sua segurança nacional. Em inícios o último mês de março, Beijing afirmou que “haverá consequências”, caso os Estados Unidos e a Coreia do Sul instalem os THADD, ao quais a China “se opõe firmemente”.
Para a Rússia, os mísseis THADD são um “desafio” que contará com “medidas de resposta”. Os Estados Unidos justificaram a instalação desses mísseis como “medida de defesa” frente a Coreia do Norte, mas todos sabemos que não há ameaça real de ataque do norte sobre o sul e que Pyongyang usa seu desfile de mísseis mais com finalidades econômicas e propagandísticas do que com propósitos militares. Também lhe serve para recordar, urbi et orbi, que se Iraque e Líbia tivessem possuído bombas atômicas, a OTAN não teria ousado agredi-los. Tampouco Iraque e Líbia tinham por trás um escudo tão poderoso como a China.
Os Estados Unidos assentam sua projeção imperial no Extremo Oriente sobre dois países, que são, ao mesmo tempo, vitais e insubstituíveis: Japão e Coreia do Sul. A ilha de Taiwan conta pouco, pois, ao ser considerada território inseparável da China, não cabe dentro dos desenhos geoestratégicos de uma região que é – hoje – o coração econômico do mundo. O valor militar do eixo Japão-Coreia do Sul é melhor entendido, caso se faça uma leitura política da costa pacífica da Ásia. Da Rússia ao Vietnã, esta extensíssima zona costeira pertence a países adversos aos Estados Unidos. Dois deles (Coreia e Vietnã) foram cenários de guerras entre as potências comunistas de então e os Estados Unidos, com resultados negativos para este país. Na Coreia, precisou aceitar o empate e no Vietnã sofreu sua mais humilhante e dolorosa derrota militar, tendo que abandonar toda a Indochina. No momento da guerra da Coreia, os Estados Unidos estavam no apogeu de sua hegemonia mundial, pois representavam 50% da economia mundial. A guerra do Vietnã correspondeu ao domínio monetário do dólar e a supremacia econômica e financeira do Ocidente.
A atual crise mundial ocorre em um cenário diametralmente distinto. A China é hoje a primeira potência comercial do mundo e a maior credora dos Estados Unidos, que é, por sua vez, o país mais endividado do planeta. O suicídio da União Soviética deixou um vazio de poder enorme, mas esse vazio resultou mais transitório do que o esperado pelos estrategistas de Washington.
A Rússia não pode rivalizar economicamente com os Estados Unidos, mas, sim, militarmente, ao ponto que se converteu no principal provedor de armas e tecnologia da China. A soma de Rússia e China multiplica o poder que a URSS teve e os dois países sabem que necessitam um do outro, em uma relação simbiótica refletida no crescente número de seus intercâmbios de todos os tipos, incluindo as periódicas reuniões de dirigentes, em todos os níveis (Putin visitará a China, em maio, e Xi Jinping a Rússia, em julho).
A Rússia possui quase toda a energia que a China necessita e a China o dinheiro que a Rússia requer. A China enfrenta os Estados Unidos do mar do Japão ao mar da China Meridional, a Rússia a OTAN, do mar Báltico ao mar Negro. A segurança de um é a segurança do outro e a derrota de um pode significar a ruína do outro. Em setembro de 2016, Xi declarou que China e Rússia deveriam cooperar “para proteger suas soberanias”.
A Coreia do Sul é o único aliado continental dos Estados Unidos, ou seja, o único país de terra firme na vertente pacífica deste continente. Todo o seu cordão de aliados e bases militares são arquipélagos e ilhas, distantes do território terrestre, exceto o Japão. Alcançar a China, desde os Estados Unidos, leva dezesseis horas e de Guam, cinco horas. Alcançar a China, desde a Coreia do Sul, são minutos e de Okinawa, sua maior base islenha, são duas horas. Para os Estados Unidos, o valor militar da Coreia do Sul e do Japão é simplesmente inestimável e perdê-los seria fatal em seu confronto com China e Rússia.
Para Rússia e China ocorre o inverso. A proximidade das bases estadunidenses é uma grave ameaça a sua segurança, agravada pela intimação dos THADD. Há 30.000 soldados dos Estados Unidos na Coreia do Sul e 35.000 no Japão. Para se opor à proximidade estratégica dos Estados Unidos, a China vem construindo, há vários anos, bases militares em ilhas artificiais do disputado arquipélago de Spratly, no mar da China Meridional, de onde conseguiria alcançar mais facilmente as bases dos Estados Unidos nas Filipinas e Guam. Calcula-se que cerca de 1.500 mísseis chineses apontam para as bases na Coreia do Sul e Japão. A Rússia, por sua parte, em 2016, iniciou a construção de uma base naval nas ilhas Curilas, ao mesmo tempo em que o Ministério de Defesa russa anunciou “medidas sem precedentes” para desenvolver infraestruturas militares na ilha Sacalina e nas Curilas.
Em setembro de 2016, Rússia e China realizaram manobras navais no mar do Sul da China, em uma mensagem clara aos Estados Unidos e seus aliados. É preciso recordar, além disso, que Rússia e Japão não ratificaram a paz, desde 1945, pela demanda japonesa sobre quatro ilhas das Curilas, próximas ao Japão, tanto é que a ilha Kunashir fica a apenas 16 km de Hokkaido. Também existe a disputa chino-japonesa sobre as ilhas Diaoyu ou Senkaku. Não falamos de uma região em paz. O triângulo Coreia-Curilas-Japão é um dos pontos mais voláteis do planeta e, com a Polônia e o Báltico, um dos lugares onde pode explodir as contradições entre os Estados Unidos, China e Rússia.
Contemplando esse panorama, é possível ter uma ideia mais aproximada da importância geoestratégica da Coreia do Norte. Não só como limes ou hinterland da China e, em menor medida, da Rússia. A Coreia do Norte possui um papel semelhante – mutatis mutantis – ao que Israel desempenha no Oriente Próximo. Como Israel, a Coreia do Norte é um Estado militar-religioso (um da Torá, outra da ideia suche). É um povo armado (Pyongyang conta com 1,2 milhão de soldados, com possibilidade de mobilizar 7 milhões de habitantes). Assim como em Israel, o poder militar significa tudo para a sua existência. A diferença é marcada pelo nível tecnológico.
Os Estados Unidos e Europa fazem o que podem para dotar Israel da melhor tecnologia militar de ponta; o exército norte-coreano é obsoleto, ainda que mitigue seu atraso com a superabundância de material militar e a maior rede de construções subterrâneas e túneis do mundo, para resistir um bombardeio massivo dos Estados Unidos.
Há outra diferença que é determinante. Israel carece de retaguarda estratégica e está cercado por inimigos. Sua existência depende do auxílio massivo que possa receber dos Estados Unidos e da OTAN. A Coreia do Norte conta com a China e teria a Rússia, seus vizinhos. A Coreia do Norte não é o Iraque, nem a Líbia. Seria como o Vietnã, mas com armas atômicas.
Manter o regime norte-coreano tem um valor estratégico essencial, pois o exército norte-coreano proporciona para China e Rússia um nível de segurança inestimável, em caso de crise. Quase todas as bases dos Estados Unidos na Coreia do Sul estão ao alcance de sua artilharia e as tropas norte-coreanas estão a 55 km de Seul e seus 25 milhões de habitantes. Esta realidade faz com que a Coreia do Sul seja a maior aliada de fato da China, no momento de contrapesar delírios militaristas. Há consenso em que, mesmo que a Coreia do Norte possua armamento obsoleto e sua força nuclear não seja sofisticada, poderia barrar a Coreia do Sul e criar um cenário de pesadelo na península. E ainda que também exista o consenso que os Estados Unidos poderiam, por sua vez, barrar a Coreia do Norte, assim como fez em 1950, outro consenso aponta que nada garante que, nesse cenário, China e Rússia não voltem a intervir, em cuja conjuntura, Estados Unidos poderiam sofrer uma derrota pior e mais humilhante que a do Vietnã.
Também é preciso considerar que Trump teve que dar a Xi, em seu recente encontro, garantias sobre Pyongyang. Se as deu e não a cumpre, ruim. Se não as deu, pior. Não, não haverá guerra na península coreana. Não agora. Rússia e China precisam de cinco a oito anos para terminar de modernizar suas forças armadas e situa-las à altura média dos Estados Unidos. Também precisam desse tempo para completar a acumulação de ouro, o único que valerá, caso exploda a festa. Quando alcançarem o nível desejado em armas e ouro, a dinâmica mundial será outra. Tempo há, enquanto isso, para refletir um pouco.
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Coreia do Norte, um Israel no Pacífico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU