19 Abril 2017
“A esquerda realmente existente se converteu em um obstáculo para que as maiorias se tornem responsáveis por suas vidas. A polarização direita-esquerda é falsa, não explica quase nada do que vem acontecendo no mundo. Mas, o pior é que a esquerda se tornou proporcional à direita em um ponto chave: a obsessão pelo poder”, escreve o jornalista e analista político uruguaio Raúl Zibechi, em artigo publicado por Rebelión, 17-04-2017. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
O que está acontecendo na Venezuela não tem a menor relação com uma “revolução” ou com o “socialismo”, nem com a “defesa da democracia”, nem sequer com a badalada “redução da pobreza”, para debulhar os argumentos que se manipulam pela direita e esquerda. Poderia se mencionar o “petróleo”, e estaríamos mais perto. Mas, os fatos indicam outras inflexões.
Estamos diante de uma luta sem trégua entre uma burguesia conservadora, que foi afastada do controle do aparelho estatal, ainda que mantenha laços com o Estado atual, e uma burguesia emergente, que utiliza o Estado como alavanca de “acumulação primitiva”.
Não é a primeira vez que isto acontece em nossas breves histórias. As guerras de independência foram isso: a luta entre os decadentes “godos” (peninsulares monárquicos) e a emergente oligarquia “crioula” que utilizou o controle do aparelho estatal para legalizar a usurpação de terras dos povos originários. Os segundos se apoiavam nas potências coloniais britânica e francesa que competiam com a decadente Espanha pelo controle das colônias independentizadas, com a mesma lógica dos progressismos que se apoiam na China, incluindo conservadores como Macri, frente à imparável decadência estadunidense.
A frágil burguesia crioula se montou com a mobilização dos povos (índios, negros e setores populares) para derrotar os poderosos peninsulares. Concedeu a emancipação dos escravos com os mesmos objetivos que hoje a nova burguesia aplica políticas sociais que reduzem a pobreza: nos dois casos, os de baixo permanecem no sótão como mão de obra barata, sem ter se movido um pingo do lugar estrutural que ocupam.
As novas elites venezuelanas, o que popularmente se denominam “boliburguesia”, são uma mistura de altos funcionários de empresas públicas e do aparelho estatal, militares de alta graduação e alguns empresários enriquecidos à sombra das instituições. Gestores incrustados no aparelho estatal. Por isso, resistem a perder o poder, já que veriam toda a estrutura cair.
Alguns já conseguiram transformar a renda apropriada em propriedade privada. Mas, uma boa parte ainda está nesse processo. Por isso, o sociólogo brasileiro Ruy Braga denomina os gestores sindicais dos fundos de pensões de seu país a nova classe emergente, como parte de uma “hegemonia frágil”.
Roland Denis sustenta que em seu país governam as máfias: “Maduro pode ter a melhor intenção, mas se impôs um lobby muito forte de máfias internas do governo” (La Razón, 27-XII-17). O filósofo e ex-vice-ministro do Planejamento e Desenvolvimento (2002-2003) afirma que várias destas máfias são banqueiras e outras vêm de velhos grupos de “chupa-renda petroleira”, instaladas há muitos anos.
Pega duro com os “intelectuais” que acobertam as máfias do poder: “Com uma linguagem de esquerda, justificam uma política que só favoreceu a banqueiros, grandes importadores, cadeias monopólicas e transnacionais. Por sua vez, é uma política que mediante a imposição de preços e corporações destruiu o pequeno produtor de açúcar e café para beneficiar os importadores. Enquanto isso, os pacotes de Café Venezuela, que vêm nas bolsas dos Comitês Locais de Abastecimento e Produção (CLAP) só servem para enganar os incautos”.
A outra visão, a chavista-madurista que culpa de tudo a outros, é a que esboça Marta Harnecker: “O tempo está a nosso favor. O que nos ajuda nesta luta contra as forças conservadoras é que o tipo de sociedade que propomos, e que estamos começando a construir, responde objetivamente ao interesse da imensa maioria da população, em contraste com as forças conservadoras que só beneficiam as elites” (Rebelión, 4-IV-17).
À luz do ocorrido na região nas duas últimas décadas, podemos chegar a uma redefinição do conceito de esquerda: é a força política que luta pelo poder, apoiando-se nos setores populares, para incrustar seus quadros nas instituições que, com os anos e o controle dos mecanismos de decisão, se convertem em uma nova elite que pode substituir as anteriores, negociar com elas ou se fundir. Ou a combinação das três.
A esquerda é parte do problema, já não a solução. Porque, a rigor, ainda que agora apareçam os limites, os progressismos são feitios da mesma trama. Olhemos para o PT de Lula. Negam a corrupção que é evidente há uma década, quando Frei Betto escreveu A Mosca Azul, após renunciar a seu cargo no primeiro governo Lula, quando se descobriu o escândalo do mensalão. “A picada da mosca azul inocula nas pessoas doses concentradas de ambição pelo poder. As pessoas, então, são mais receptivas ao veneno da mosca quando vivem situações nas quais dispõem, de fato, de possibilidades mais concretas de exercer um poder maior. Isto é, quando as condições objetivas são favoráveis aos impulsos que estão sendo estimulados no plano subjetivo”.
Quais tipos de pessoas (militantes, ativistas, dirigentes) surgiriam em um projeto político que não se proponha tomar o poder? Esta pergunta foi formulada, mais ou menos com estas palavras, pelos zapatistas, já há certo tempo. Como denominaríamos uma força que se proponha, “apenas”, transformar a sociedade a partir da vida cotidiana?
Não sabemos porque o imaginário construído durante dois séculos aponta em direção ao poder estatal. Como se o que houvesse que transformar fosse algo externo e não passasse, em primeiríssimo lugar, pelas próprias pessoas que se dizem militantes. O que, sim, sabemos, é que a esquerda realmente existente se converteu em um obstáculo para que as maiorias se tornem responsáveis por suas vidas. A polarização direita-esquerda é falsa, não explica quase nada do que vem acontecendo no mundo. Mas, o pior é que a esquerda se tornou proporcional à direita em um ponto chave: a obsessão pelo poder.
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Quando a esquerda é o problema. Artigo de Raúl Zibechi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU