05 Dezembro 2016
Talvez seja a primeira vez que, para fazer um filme, um dos atores principais, desprovido de qualquer formação cristã, fez os Exercícios Espirituais segundo o clássico método inaciano, enquanto outro, também ele distante da religião, quis participar de um retiro. A obra é Silence, de Martin Scorsese, uma realização perfeita tirada do romance de Shūsaku Endō, que será lançado no dia 23 de dezembro nos Estados Unidos. Quem conta essa história singular ao L’Osservatore Romano é James Martin, diretor da revista America. Aos 56 anos, natural da Filadélfia, o jesuíta foi consultor do diretor nova-iorquino e foi com ele para Roma e para o Vaticano para a estreia do filme.
A reportagem é do jornal L’Osservatore Romano, 04-12-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Tudo começou em 2014, “quando Scorsese e os seus colaboradores Marianne Bower e Jay Cocks me procuraram, porque precisavam entender os jesuítas”. O filme, seco e comovente, de fato, está centrado na trágica história dos missionários da Companhia de Jesus que foram ao Japão, os “padres”, e das implacáveis e ferozes perseguições que, especialmente na primeira metade do século XVII, forçaram a abjurar ou exterminaram os novos fiéis – talvez mais de 300 mil no arco de poucas décadas – originando o fenômeno heroico e singular dos “cristãos ocultos” (kakure kirishitan), que sobreviveram no silêncio, justamente, por mais de dois séculos, até a abertura do país ao mundo exterior, na segunda metade do século XIX.
Quem quis entender os jesuítas e a sua mentalidade foi especialmente Andrew Garfield, que, no filme, gravado principalmente em Taiwan, é o Pe. Rodrigues, discípulo junto com o coirmão Garupe (Adam Driver) do Pe. Ferreira (Liam Neeson), forçado a renegar o cristianismo – mas que, talvez, permaneceu fiel no silêncio do próprio coração – diante dos atrozes sofrimentos infligidos aos cristãos japoneses justamente para obrigá-lo a abjurar a Cristo.
“Por um longo tempo, escrevemo-nos por e-mail e falamos por Skype”, lembra o Pe. Martin sorrindo, “e Andrew, que fez os Exercícios mais fatigantes de acordo com o método de Santo Inácio, no fim, teve uma relação pessoal com Jesus. Eu falei sobre isso com o meu diretor espiritual, e ele me disse: ‘Foi um milagre, certamente não clamoroso, mas real, que isso tenha acontecido com um agnóstico’.”
Scorsese e Cocks, depois, foram “muito abertos às minhas sugestões” – enfatiza o jesuíta – “tanto que, quando eu lia no roteiro algo que não estava bem, eu assinalava, e eles corrigiam”.
Desse modo, o filme é historicamente muito confiável. “A meu ver, Garfield é um jesuíta no coração, assim como Neeson, enquanto Driver até fez um retiro em St Beuno’s, um centro de espiritualidade inaciana no País de Gales”, diz Martin.
Além disso, há um precedente que remonta exatamente a 30 anos, “A missão”, o filme de Roland Joffe sobre a epopeia trágica das reduções jesuítas no Paraguai que, assim que foi lançado, em 1986, ganhou a Palma de Ouro em Cannes (com Neeson no papel de um missionário da Companhia de Jesus). Desse filme, um consultor foi Daniel Berrigan, o jesuíta falecido aos 95 anos em abril passado, que o The New York Times recordou como “o padre que pregou o pacifismo” nos anos mais cruéis da Guerra do Vietnã. Com uma diferença – brinca o Pe. Martin – porque “Berrigan apareceu por um instante no filme e até contou uma piada”.
O jesuíta estadunidense, autor de livros de sucesso e populares como “A sabedoria dos jesuítas para (quase) tudo” (Sextante, 2012) e My Life with the Saints (2006), explica que viveu essa consultoria à obra-prima de Scorsese “como uma pequena parte do meu ministério na Igreja, como jesuíta, padre, jornalista e escritor, porque a grande maioria das pessoas não leem a revista America, mas vão ao cinema”.
Scorsese, “que é muito religioso, muito católico”, e os seus colaboradores quiseram, de sua parte, realizar uma obra “correta”. E o resultado é extraordinário, a tal ponto que, “quando eu a vi pela primeira vez – lembra o jesuíta – eu chorei: é uma grande história, um grande filme, a história dos meus irmãos, a história daqueles mártires, mas também dos meus amigos e dos Exercícios Espirituais de Andrew”.
A história narrada pelo diretor estadunidense, em última análise, é uma reflexão sobre a dificuldade do discernimento e das escolhas que é preciso fazer na própria vida, “também quando não está tão claro o que se deve fazer”, observa Martin: “Por isso, eu vejo no filme uma mensagem para a Igreja de hoje, com uma espiritualidade forte, que inspira a fé em Deus”.
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"Silence", de Scorsese: "Um filme para a Igreja de hoje" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU