21 Junho 2016
O antropólogo, cientista político e especialista em segurança pública Luiz Eduardo Soares é um dos mais notáveis defensores da necessidade de se desmilitarizar a Polícia no Brasil. O coautor dos livros Elite da Tropa 1 e 2 (Que deram origem aos filmes Tropa de Elite) defende uma reforma que em sua avaliação não é simples, mas necessária, para que a polícia brasileira seja menos letal e, ao mesmo tempo, cumpra melhor seu papel. Esta questão está intimamente relacionada à superlotação das prisões e à sua falência em recuperar os criminosos, segundo ele.
A entrevista é de Débora Fogliatto, publicada por Sul21, 21-06-2016.
Carioca, Soares veio a Porto Alegre para participar do evento “Porto Alegre sem medo – Construindo uma cidade mais segura“, promovido pela pré-candidata à prefeitura pelo PSOL, Luciana Genro, que acontece nesta terça-feira (21) na Assembleia Legislativa. Em entrevista exclusiva ao Sul21, ele fala sobre a questão da desmilitarização da polícia, a necessidade de haver uma carreira única para os policiais e o papel que os municípios podem ter para melhorar a segurança pública. “A ideologia que rege as instituições militares policiais é a da guerra. E se cumpre um mandado da sociedade para eliminar, liquidar fisicamente os inimigos, o que é absolutamente incompatível à atividade de uma polícia”, afirma.
Eis a entrevista
O senhor defende a desmilitarização da polícia como uma possível solução para a violência policial. De que forma isso beneficiaria a sociedade e mudaria a forma como as polícias agem?
Não necessariamente mudaria, mas é um pré-requisito para que mude. Então é uma condição necessária, mas não suficiente. Se pensarmos no Brasil, nós temos 56 mil homicídios dolosos por ano, dos quais só 8% são investigados. E a partir daí muita gente deduz que seja o país da impunidade, quando temos a quarta população carcerária do mundo, a que mais cresce desde 2002. Então isso pode parecer um enigma, mas é simples de desvendar. Há uma polícia, que é a mais numerosa, que está nas ruas todos os dias, durante as 24 horas. E essa polícia é proibida de investigar, é a Polícia Militar. Então a polícia que não pode investigar é instada, é provocada a produzir. E qual é a produtividade da PM, como ela define essa efetividade enquanto instituição? Prendendo. E apreendendo armas e drogas. Se ela não pode investigar, está proibida constitucionalmente de fazê-lo, ela é pressionada pelos governos, mídia e população a fazer prisões em flagrante. E quais os crimes passíveis de prisão em flagrante? Os que são acessíveis aos cinco sentidos. Isso significa um filtro seletivo que faz com que a ideia de aplicação da lei seja absolutamente distorcida.
Qual lei é instrumentalmente mais útil para o trabalho da PM? É a lei de drogas, porque é possível identificar os aviõezinhos, aqueles rapazes em geral que se dedicam à comercialização das substâncias ilícitas. E portanto, você encontra nos territórios mais pobres, mais vulneráveis, nas periferias, vilas e favelas, a presença policial que vai à caça de seus presos prediletos: os presos possíveis. Que não por acaso são negros, pobres e jovens, que estão entupidos as penitenciárias, sendo induzidos a buscar um vínculo com uma organização criminosa. Em geral, quando são presos eles não apresentam vínculos sólidos com organizações criminosas, não portam armas e não cometeram violências. Então você está prendendo varejistas do comércio de substâncias ilícitas, entupindo as prisões e arruinando a vida desses jovens por um preço muito alto. Isso tudo por conta de um casamento perverso entre o modelo policial e a lei de drogas.
A lei de drogas também precisaria ser mudada, então?
É, eu estou focalizando num aspecto que é importante, mas não é o único. Porque então pode-se dizer que se deve conceder à Polícia Militar a possibilidade de investigar também. Mas como seria possível para agentes que são organizados hierarquicamente, que seguem o comando superior sem pestanejar – porque a disciplina militar exige isso – aplicar a lei civil, se responsabilizar por investigações? Parece incompatível a natureza militar com esse tipo de prática.
Qual é a melhor forma de organização? É uma pergunta que não pode ser respondida, depende da instituição. A organização adapta uma certa entidade ao cumprimento de suas finalidades. Então começamos identificando o objetivo. O Exército, que é o modelo copiado pela PM, se organiza para cumprir sua tarefa, que é garantir a soberania do território, recorrendo inclusive a recursos bélicos quando necessário. Por isso, se centraliza de forma muito rigorosa, com uma hierarquia vertical muito rígida, porque o seu método de ação para cumprir sua finalidade se define pelo pronto-emprego, que é a capacidade de deslocar grandes contingentes humanos de forma eficiente e rápida. Portanto, se justifica, ainda que tenha havido muitas mudanças, com sofisticação, meios eletrônicos, os exércitos estão mais organizados. Mas de qualquer forma, compreende-se plenamente o formato. Uma polícia só deveria imitar essa estrutura do exército se a finalidade fosse a mesma. Mas não é essa a finalidade. A polícia tem como finalidade a garantia de direitos, prover meios para que se pratique a garantia de direitos. E se é assim, como vai se organizar como se fosse um exército? Claro que há confrontos que são bélicos, mas esses momentos correspondem a um número muito reduzido diante da complexidade e da magnitude das tarefas que se impõem às polícias militares do Brasil. Você não vai organizar uma instituição inteira para atender 1% da necessidade. Poderia ter unidades formadas especificamente para essa finalidade.
E por isso a polícia é tão letal?
Sim, isso nos conduz à questão do comportamento. A violência policial letal é uma tragédia nacional, a polícia do Brasil é uma das que mais matam no mundo, pelo menos entre os países que fornecem essas informações. E os dados são subestimados. No Rio de Janeiro, que talvez seja um dos estados com melhor registro desses fatos, tivemos entre 2003 e 2015, 11.343 mortes provocadas por ações policiais. Policiais muitas vezes morrem também, a situação de enfrentamento bélico é negativa também para eles. A ideologia que rege as instituições militares policiais é a da guerra. E se cumpre um mandado da sociedade para eliminar, liquidar fisicamente os inimigos, o que é absolutamente incompatível à atividade de uma polícia, porque não há inimigos, há cidadãos que são suspeitos ou que estão colocando em risco a vida de terceiros e devem ser contidos a partir da escala das ameaças. Isso nada tem a ver com a guerra propriamente dita, ainda que ações sejam similares. Quando toda a polícia é treinada para eliminar um inimigo, o suspeito passa a ser alvo de um ataque de destruição. Isso é escandaloso. Claro que seria possível tentar mudar essa cultura corporativa tão violenta e tão brutal mesmo sem a mudança estrutural, mas seria muito difícil. Não valeria a pena todo o empenho cujos resultados seriam improváveis mantendo um sistema organizacional que de qualquer forma é incongruente e incompatível às necessidades constitucionais.
A atitude das Polícias Militares em relação às repressões de movimentos sociais também segue essa lógica da guerra?
Sim, tem a ver com a estrutura organizacional, com a militarização. Até porque os policiais na ponta são máquinas de reprodução das ordens superiores, não são agentes treinados para refletir e tomar decisões com alguma dose de autonomia, o que seria o ideal. Eles são instruídos para obliterar o pensamento e agir como máquinas que obedecem e cumprem ordens. Por isso vemos cenas terríveis, tristes, em que jovens, pobres, frequentemente negros, entram em confronto com outros jovens, pobres, frequentemente negros, oriundos dos mesmos territórios vulneráveis, alguns uniformizados. Quando não haveria nenhuma razão para que se matassem mutuamente, sobretudo no campo dos movimentos sociais.
Ao mesmo tempo, o senhor mencionou os homicídios que são poucas vezes desvendados. A Polícia Civil também precisaria passar por uma reforma?
Sim, e essa própria distinção entre civil e militar é parte do problema. Toda polícia, como em qualquer parte do mundo, deveria cumprir todas as atribuições. A Polícia Civil enfrenta problemas enormes e é muito deficiente no cumprimento do seu mandato constitucional. Oito por cento de crimes resolvidos significa 92% de impunidade. Qualquer instituição que se proponha a cumprir um objetivo e não consiga em 92% dos casos diria que é preciso parar e começar de novo. Isso não é culpa de uma pessoa, é um problema estrutural. Assim como a brutalidade da Polícia Militar, não é necessariamente passível de atribuição a um ou outro indivíduo, já tem um padrão que vai se reproduzindo independente da vontade do próprio corpo profissional. Portanto, temos, na área da investigação, problemas na relação com a perícia, problemas organizativos, de investimentos, há o problema do inquérito policial, que é burocratizado, não flui. Então temos um desastre, uma falência desse modelo. Prendemos muitíssimo, temos mais de 700 mil presos no Brasil, dos quais só 12% cumprem penas por homicídio, 2/3 estão lá por crimes contra o patrimônio. Não é preciso dizer que, num país racista como o nosso, a maioria é negra, além de jovem e do sexo masculino. Prendemos muito e mal, arruinamos vidas de jovens e abdicamos de controlar a violência letal. E pior, o Estado acaba por reproduzi-la com seus braços institucionais. Então o Estado é parte do problema, assim como as polícias, independente das vontades individuais.
E ainda por cima, há muitos presos que aguardam julgamento dentre os que lotam as prisões, certo?
Exato. Eram 40% até dois anos atrás e houve um esforço muito grande do CNJ, houve uma queda expressiva, embora ainda seja um grande número. Mas a diferença é de classe, o que no caso brasileiro acaba sendo também de cor. Porque quem tem advogado não fica preso, salvo exceções. E as defensorias públicas não existem em número suficiente para atender essa massa de suspeitos, réus, inclusive porque há mais de 300 mil mandados de prisão esperando cumprimento no Brasil.
Existem projetos de lei já pensando em mudar essa questão das polícias militarizadas?
Há dezenas de PECs (propostas de emenda à constitucional) circulando ou tramitando no Congresso Nacional sobre a polícia. Mas, a respeito da desmilitarização, eu acho que são poucas. A mais elaborada, do meu ponto de vista, seria a PEC 51/2013, de autoria do senador Lindbergh Farias (PT-RJ), cuja elaboração eu até participei. Ela resulta de conversas com profissionais, pessoas das corporações, diálogos e experiências diversas. Não há proposta perfeita, mas essa é talvez a que pode ir mais longe, de forma sistêmica, com o mínimo de resistência. É um meio-termo entre o avanço e a capacidade de agregação. Os pontos principais são a desmilitarização e a realização do ciclo completo com atribuição de todas as instituições policiais. Com a desmilitarização, a PM deixaria de existir e a nova polícia iria investigar, mas de outro modo. A carreira única é outra grande bandeira de agentes e oficiais da Polícia Civil, Federal e de boa parte dos trabalhadores da Polícia Militar [incluída na PEC]. Há alguma resistência na cúpula das instituições, mas, particularmente na Polícia Civil, os oficiais são mais abertos em relação a isso.
Porque hoje, na prática, temos quatro polícias. A Civil se divide em delegados e agentes. Basicamente os agentes, embora tenham várias funções, não podem ascender até se tornarem delegados, que é uma função de comando. E, na Polícia Militar, há os oficiais e praças, são duas entradas diferentes, o que acaba formando castas que viram problemas internos. Esse tipo de arranjo não estimula a coesão interna e barra o acesso às posições superiores de muitos profissionais que poderiam ascender com base no mérito, no tempo de experiência. Quem entra como praça, precisaria fazer um novo concurso para conseguir chegar às posições mais altas. E não se leva em conta na prova a experiência prévia.
Importante também falar que isso não é suficiente. Essas mudanças todas são, a meu juízo e segundo avaliação da maioria dos envolvidos nessa área, indispensáveis, mas não são suficientes, porque podemos ter estruturas organizacionais muito melhores, mais suscetíveis a controles externos, mais permeáveis a políticas de transparência, mais indutoras de políticas de segurança e mais capazes de respeitarem direitos humanos. Mas as estruturas por si mesmas, ainda que facilitem, não garantem que políticas de segurança aplicadas sejam adequadas. Isso depende de autorização política, da formação, do governo do Estado, e depende da autorização popular. A brutalidade policial não existiria sem autorização social.
Sobre essa autorização social, percebe-se que o discurso do “bandido bom é bandido morto” se acentua conforme a violência aumenta. A mudança teria que vir a nível cultural também?
Sem dúvida. Só que devemos pensar nisso tudo como uma realidade pluridimensional, com muitas camadas diferentes. Se nós agirmos em todas as dimensões, cujas temporalidades são muito diferentes, vamos contribuir para que esse processo estabeleça uma química interna e gere um agregado mais favorável. A mudança da sensibilidade da cultura acontece sem que a gente possa controlar, mas se a gente investir em uma educação com sensibilidade para os direitos humanos, vamos estimular esse resultado, embora não possamos garantir. Se a mídia e as linguagens de comunicação incorporassem um pouco mais esses valores, isso ajudaria. Se as escolas constituíssem força de valorização dessas atitudes, avançaríamos numa direção mais positiva. São processos que precisam existir paralelamente. Isoladamente, essas medidas não são suficientes, mas são imprescindíveis e devemos investir em cada uma delas de acordo com as possibilidades e com as resistências que enfrentamos. Esses são processos muito complexos, não podemos resolver em um só momento todos os problemas.
Nesse sentido, o que se pode fazer no âmbito municipal para tornar as cidades mais seguras?
Pergunta fácil essa, né? (Rindo). Na nossa constituição, no artigo 144, que organiza a segurança pública, os municípios não têm nenhum lugar. Há uma menção rápida de que podem ter uma guarda civil, que podem cuidar dos patrimônios municipais, como parques. E isso inclusive é uma contradição com todo o desenho da constituição brasileira, que em 1988 estimulou a participação do município como ente federado importante, no cumprimento das grandes políticas sociais, como educação, saúde e assistência. Há uma tripartição de funções e de destinação de recursos, há uma composição articulada no SUS, mesmo na educação, nunca vi esse modelo sendo criticado, foi até modelo de conquista. Isso não se aplica à segurança pública, o município não tem função nesse sentido. A União tem a Polícia Federal, a Rodoviária Federal e ponto final. Isso é muito pouco diante das responsabilidades que poderiam ser atribuídas. Todas as responsabilidades caem nos ombros dos estados. E os municípios não têm responsabilidades do ponto de vista de segurança pública. Não há politica nacional, orientação sobre o que devem ser as guardas municipais. A segurança municipal é uma grande possibilidade da reinvenção da segurança pública no Brasil, a despeito de todos os limites.
A partir de investimentos em assistência social, por exemplo?
Falar em assistência é muito genérico. Para que haja resultados, é preciso que haja diagnóstico. A gente tem que observar cada situação em cada bairro, território, entender que processos estão em curso. Isso exige pesquisa, escuta e diálogo com a comunidade. Por exemplo, por que em determinado lugar as pessoas se armam para vender substancias ilícitas, por que acontece esse crescimento? Temos que descobrir que tipos de trajetória estão tendo esses jovens, quais as características desse processo. Se entender em cada região o porquê de acontecer um crescimento desse tipo de formação armada, pode-se atuar sobre os dispositivos geradores desses processos. O que se obtém no tráfico é reconhecimento, valorização, acesso a recursos simbólicos e financeiros. Isso são condições para que a autoestima se fortaleça, mesmo que essas generalizações sejam complicadas. Jovens que são invisíveis, que não são reconhecidos, vivem um esmagamento da autoestima, enfrentam problemas em casa, familiares, comunitários e vagando pelas ruas se sentem desprezados ou desprezíveis. Quando lhes é oferecida uma arma para que ingressem em um grupo poderoso, percebem que isso é uma espécie de passaporte para a visibilidade e o pertencimento. E a experiência do pertencimento é muito gratificante. Isso tudo explica em parte porque se está disposto inclusive a arriscar a própria vida ingressando ali muitas vezes por pagamentos diminutos. Em geral, o recurso material não é a principal razão.
Se esse diagnóstico foi razoavelmente preciso, podemos extrair que, ao invés de montar uma máquina de guerra e invadir esse território para liquidar essas pessoas, com as implicações desastrosas que estamos cansados de ver, você pode montar um processo paralelo que seja capaz de oferecer a esses jovens o mesmo que o tráfico oferece, com o sinal invertido: reconhecimento, valorização, pertencimento e possibilidade de redefinição dos seus horizontes de vida. Se você monta um dispositivo capaz de competir com essas outras fontes de recrutamento, você pode recrutar aqueles que estão vulneráveis a irem para o tráfico.
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‘A brutalidade policial não existiria sem autorização social’. Entrevista com Luiz Eduardo Soares - Instituto Humanitas Unisinos - IHU