Como entender “Pilatos mata galileus, torre de Siloé mata 18 e a parábola da figueira estéril”? Converter-se a tempo? (Lc 13,1-9). Comentário de Gilvander Moreira

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21 Março 2025

"Cabe a cada um/a de nós a opção pelo cuidado, a decisão da conversão a partir da opção incondicional pelo Reino de Deus que só se concretiza a partir dos empobrecidos, com vida e vida em abundância para todos e todas e para toda a criação!", escreve Frei Gilvander Moreira

Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte.

Eis o comentário.

Como entender de forma justa, sensata e libertadora o texto do Evangelho de Lucas (Lc 13,1-9) no qual algumas pessoas vêm contar a Jesus notícias pesadas: o governador Pilatos massacrou galileus e a torre de Siloé desabou e matou dezoito pessoas? Como compreender que Jesus conte a parábola da figueira estéril? Este evangelho propõe converter-se enquanto é tempo? Ameaça ou propõe misericórdia? Este evangelho está imediatamente depois das instruções de Jesus sobre a reconciliação com o adversário; e isso dá a este relato uma especial incisividade. São textos exclusivos do Evangelho segundo Lucas.

Este relato evangélico insere-se em uma das principais partes do Evangelho de Lucas: a subida de Jesus, com seus discípulos e discípulas, para Jerusalém (Lc 9,51-19,27). Trata-se de uma típica apresentação lucana do "êxodo" de Jesus como um grande relato de viagem, bem mais ampliado do que nos Evangelhos de Marcos e Mateus. Ocupa a seção central do evangelho. O trecho de 9,51-18,14 é próprio de Lucas. E o restante (Lc 18,15-19,27) corresponde aos Evangelhos de Marcos e Mateus.

Ao se posicionar sobre esses fatos, Jesus põe em paralelismo o assassinato cruel dos galileus a mando do governador Pilatos com o “acidente” que sofreram dezoito habitantes de Jerusalém quando desabou sobre eles uma torre das antigas muralhas, próxima da piscina de Siloé. Seria corrupção e irresponsabilidade dos órgãos públicos que construíram uma torre sem segurança?

A parábola da figueira põe em relevo a fragilidade da existência humana e as circunstâncias críticas que a rodeiam. A responsabilidade que brota das contínuas demoras, omissões e cumplicidade com as injustiças, atrasos e da falta de decisão pessoal é verdadeiramente grave; muito mais grave que, em si, acontecimentos como um massacre brutal ou um “acidente” inesperado.

Ao ser deposto o rei Arquelau, filho de Herodes o Grande (ano 6 da era cristã), Judeia e Samaria passaram a ser controladas diretamente pela autoridade do escravocrata império romano. Pôncio Pilatos foi o sexto governador da Judeia. Pilatos exerceu suas funções de governador durante os anos 26 a 36 do 1º século da era cristã. Segundo o historiador Flávio Josefo, Pilatos foi político severo e administrador arbitrário[1]. "Governador" era um título genérico que se aplicava à suprema autoridade de uma determinada região[2]. Segundo historiadores e arqueólogos, o verdadeiro título de Pilatos era "prefeito".

Em 1961 foi descoberto em Cesareia marítima uma inscrição fragmentária que recolhe a dedicação de um monumento, o Tiberieum, erigido, ao que tudo indica, por Pilatos em honra do imperador Tibério. Esta inscrição não é só o primeiro testemunho epigráfico da presença de Pilatos na Judeia, mas também atribui expressamente a Pilatos o título específico de "praefectus" (= prefeito). No livro de Atos dos Apóstolos, o próprio Lucas emprega esse mesmo termo com referência ao procurador (At 23,24.26.33). Um prefeito da capital de São Paulo tem mais poder que um governador de estados pequenos como Amapá ou Sergipe.

A solidariedade de Deus se torna ineficaz sem a colaboração das pessoas. A viagem missionária de Jesus a Jerusalém é um verdadeiro itinerário teológico de libertação, ao longo do qual se torna evidente quem se solidariza com o projeto de Deus e quem lhe oferece obstáculos.

 

Lc 13,1-9 tem a seguinte organização: a) Apresentação de uma tragédia humana (Lc 13,1); b) Resposta de Jesus sobre o fato, em forma de pergunta e resposta, segundo o método da maiêutica (diálogo) (Lc 13,2-3); c) Jesus relembra outra tragédia e responde dentro do mesmo esquema da maiêutica (Lc 13,4-5); d) Jesus conta uma parábola da figueira para revelar que Deus é 100% misericordioso e gracioso (Lc 13,6-9).

Jesus sabiamente lia os sinais dos tempos e dos lugares e fazia análise de conjuntura interpretando os fatos históricos com criticidade e criatividade. É provável que aquele massacre dos galileus a mando de Pilatos fizesse referência ao seguinte acontecimento histórico: segundo o historiador Flávio Josefo, querendo construir um aqueduto, Pilatos decidira utilizar o tesouro do Templo como verba para a construção. Isso provocou a resistência de um grupo de galileus, provavelmente do grupo dos zelotas, os que lutavam pela emancipação da Palestina diante da colonização imposta pelo império romano. Esses galileus zelotas teriam sido assassinados enquanto ofereciam sacrifícios no Templo. A outra tragédia (Lc 13,4), de difícil identificação histórica, relata a queda da torre de Siloé, matando dezoito pessoas. As tragédias humanas não são castigos de Deus (Lc 13,1-2).

Em Lc 13,2-5 temos a resposta de Jesus revelando que Deus é Deus-oferta graciosa, é amor infinito. Jesus discorda da ideia de que Deus esteja presente para castigar. Jesus destrói a Teologia/ideologia da Retribuição – teologia/ideologia do domínio - segundo a qual "pecou, levou".

Em Lc 13,6-9, Lucas nos mostra que Deus é radicalmente bom e generoso. A figueira é uma das árvores mais comuns e generosas da Palestina; chega a produzir frutos por dez meses, ininterruptamente, ao longo do ano. Por essas razões, também a figueira representa o “povo eleito”, que não é apenas um povo ou etnia, mas une todos os povos oprimidos e injustiçados que buscam na fé em Deus força para resistir e seguir como “luz no mundo e sal da terra” (Mt 5,13-16).

Em seguida, para iluminar a realidade, Jesus, com a sabedoria rabínica, coloca em baila a parábola da figueira estéril que deve ser cultivada. O tempo necessário do CUIDADO para que nos desvencilhemos da teologia da retribuição e abracemos a teologia de um Deus sumamente amor, misericórdia e perdão. Quem plantou a figueira e vai procurar frutos é Deus. O agricultor é Jesus. Os três anos podem ser o período da missão pública de Jesus, depois do qual se poderia esperar frutos abundantes. A sentença do patrão, ao não encontrar frutos, é severa: visto que a elite de Israel é como figueira ociosa, não tem sentido que continue a viver. Talvez o Evangelho de Lucas esteja retratando a rejeição sistemática que o Evangelho encontrou por parte das lideranças político-religiosas daquele tempo. O judaísmo do templo enrijecido, fundamentalista e moralista, dos anos 80 do Século I, expulsou as Comunidades Cristãs da Sinagoga e estava sendo estéril.

Os camponeses daquele tempo sabiam muito bem que não era necessário adubar figueiras para elas produzirem. Jesus ultrapassa as expectativas. Aposta nas pessoas além daquilo que possa parecer absurdo. Jesus é crítico, criativo e não fica preso à ideologia dominante que criminaliza os pobres que resolvem lutar pelos seus direitos. Por isso, incomoda os Pilatos de plantão. Deus cuida de todos (e de tudo), mas com nossa participação (Lc 13,1-9).

Nesta grande viagem missionária e pedagógica, subida para Jerusalém, Jesus prioriza a formação dos discípulos e das discípulas. Jesus percebe que não tem mais aquela adesão incondicional da primeira fase da missão, quando priorizava sinais de compaixão, em que Jesus priorizava se mostrar compassivo, misericordioso e solidário com o povo sofrido e injustiçado. No início da segunda fase da sua missão, Jesus descobriu que, para consolar os aflitos, era necessário também incomodar os opressores e os exploradores e para isso tinha que denunciar pessoas e estruturas injustas e corruptas.

Com esta postura, Jesus de Nazaré começou a perder apoio popular. Era necessário caprichar na formação de um grupo menor que pudesse garantir os enfrentamentos que se avolumavam. Jesus sabia muito bem que em Jerusalém estava o centro dos poderes religioso-econômico-político e judiciário. Lá travaria o maior embate. Logo, Lc 13,1-9 endereça-se, primordialmente, aos discípulos e discípulas. Objetiva proporcionar crescimento de consciência crítica e criativa e rever a imagem de Deus, percebendo-o como um Deus misericordioso que conta com nossa participação ativa no cuidado que devemos ter com todas as pessoas e com todas as criaturas de Deus.

As notícias circulavam no meio do povo. De boca em boca, corria que Pilatos havia mandado matar um grupo de galileus e havia misturado o sangue deles no sacrifício deles. O povão vivia debaixo da teologia da retribuição, trombeteada, aos quatro ventos, pelos líderes da religião oficial. A teologia da retribuição/dominação afirmava que Deus abençoava os puros, os ricos e os sadios, mas castigava implacavelmente os impuros, os pecadores, os pobres, os doentes. Era o “pecou, pagou!”

Segundo o Evangelho das comunidades de Lucas, Jesus questiona o senso comum das pessoas e chacoalha a teologia da retribuição/dominação impregnada na cabeça do povo. Convida à reflexão questionando: “Eles são, de fato, culpados?” Ou foram massacrados porque questionaram de forma organizada o sistema opressor liderado por Pilatos? Nas entrelinhas, Jesus acaba dizendo: Ontem foi um grupo de galileus. O sistema opressor está em pleno funcionamento. Se vocês continuarem de braços cruzados, alienados, acriticamente aceitando a interpretação dos fatos feita a partir dos poderosos, amanhã será a vez de vocês. Um a um, todos serão mortos antes do tempo.

Jesus alerta de modo enfático, repetindo em dois versículos (Lc 13,2.5): “É hora de conversão.” Não apenas mudar a forma de pensar, mas, fundamentalmente, mudar a forma de agir e de se posicionar diante da realidade. Posicionem-se do lado das vítimas e dos enfraquecidos! Sejam críticos e criativos! Desconfiem do que é veiculado pelos grandes e pelo seu poder midiático. Eis o apelo do evangelho para nós. Quem se converter estará no caminho da vida; senão, serão cúmplices de mortes constantes.

O caminho é apontado: adubar a figueira pelo tempo necessário para que desperte nela toda a beleza e o potencial de vida existente em si mesma. Adubar é CUIDAR. Eis a conclusão: Nosso Deus é um Deus que cuida de todos os povos e da natureza com amor, com carinho, com ternura. Deus conta com nossa participação ativa. Não nos quer de braços cruzados vendo a banda passar. “Tudo isso acontecendo e eu aqui, na praça, dando milho aos pombos”, canta Zé Geraldo.

Jesus conta a parábola da figueira estéril, mas não apresenta o final, não a conclui para deixar manifestada a força da esperança que deposita em nós! Cabe a cada um/a de nós a opção pelo cuidado, a decisão da conversão a partir da opção incondicional pelo Reino de Deus que só se concretiza a partir dos empobrecidos, com vida e vida em abundância para todos e todas e para toda a criação!

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, ATUALIZAM o assunto tratado, acima.

1 - MEMORIAL MERONG KAMAKÃ: ENCON DE LEMBRANÇA E RESPEITO, ALDEIA KAMAKÃ MONGOIÓ, BRUMADINHO/MG. Vídeo 1

2 - CACIQUE MERONG VIVE NO TERRITÓRIO SAGRADO E EM NÓS. NA ALDEIA KAMAKÃ MONGOIÓ, BRUMADINHO/MG. Vídeo 2

3 - MEMÓRIA DO CACIQUE MERONG, DO POVO KAMAKÃ MONGOIÓ: “SE SENTE, SE VIVE, MERONG ESTÁ PRESENTE, VIVO!”

4 - DOENTES NOS BRAÇOS, GRÁVIDAS EM RISCO, IDOSOS ILHADOS NA OCUPAÇÃO ESPERANÇA. E PBH/URBEL? Vídeo 1

Notas

[1] Cf. FLÁVIO JOSEFO, Guerra Judaica II, 9,2-3, nn. 169-174; II, 9, 4, nn. 175-177; Ant. XVIII, 3, 1, nn. 53-59; FILÓN, Legatio ad Gaium, 38, n. 299.

[2] Ant. XVIII, 3, 1, n. 55.

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