14 Fevereiro 2020
Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 6º Domingo do Tempo Comum, 16 de fevereiro de 2020 (Mateus 5,17-37). A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Não penseis que vim abolir a Lei e os Profetas. Não vim para abolir, mas para dar-lhes pleno cumprimento.” Essas palavras de Jesus, que abrem o trecho do Evangelho de hoje, à primeira vista, contrastam com as que ele pronuncia repetidamente logo depois: “Vós ouvistes o que foi dito aos antigos... Eu, porém, vos digo”. Mas é isso mesmo?
Ao longo de toda a sua vida, Jesus meditou a Torá, a Lei de Deus, não para destruí-la ou negá-la; pelo contrário, ele a reconheceu e viveu como judeu fiel, como autêntico “filho do mandamento” (cf. Lc 2,41-43). No entanto, ele se colocou perante a Torá como aquele que conhece a intenção do Legislador (cf. Mt 19,8) e, portanto, está autorizado a interpretá-la com autoridade, a fim de fazer dela não uma fonte de escravidão, mas sim de liberdade para todos os homens e mulheres.
Jesus não se opôs à Lei, mas sim às suas interpretações redutivas dadas por escribas e fariseus, aqueles homens religiosos que “coavam o mosquito e engoliam o camelo” (cf. Mt 23,24): isto é, eles praticavam uma leitura legalista e literalista da palavra de Deus contida nas Escrituras, dispersando a vontade de Deus em uma miríade de preceitos, que tornavam impossível a sua observância e a privavam do seu centro.
Por isso, Jesus pediu a seus discípulos, em vista do reino dos céus, “uma justiça maior” – em qualidade, não em quantidade – “que a dos mestres da Lei e dos fariseus”, ou seja, uma fiel obediência à vontade de Deus revelada na Lei, por ele cumprida com a sua interpretação radical.
Jesus recorre a uma série de exemplos para mostrar essa sua interpretação: nós lemos alguns deles hoje; outros, no domingo que vem. Acima de tudo, ele radicaliza o mandamento: “Não matar” (Ex 20,13; Dt 5,17), corrigindo uma leitura restritiva dele, que o entende como relativo apenas ao ato material do homicídio. Em vez disso, Jesus amplia o seu olhar para a intenção do ser humano, que muitas vezes se traduz em palavras coléricas e violentas, mas que, de um modo igualmente frequente, permanece fechada no coração como um fogo mortífero.
Essas palavras ou esses propósitos já são pecado, porque expressam de outro modo aquilo que se tem medo de realizar concretamente: “Com a voz e com o desejo comete-se um homicídio, mesmo que não se levantem as mãos contra o próximo”, como anotou São Gregório Magno.
Ainda sobre o tema das relações com os outros, Jesus acrescenta que a reconciliação fraterna é uma condição indispensável para celebrar a liturgia na verdade. Em suma, é melhor não participar da eucaristia do que participar dela desmentindo nos fatos aquilo que se celebra com o rito...
“Ouvistes o que foi dito: ‘Não cometerás adultério’ (Ex 20,14; Dt 5,18). Eu, porém, vos digo: Todo aquele que olhar para uma mulher, com o desejo de possuí-la, já cometeu adultério com ela no seu coração” (e, sobre o adultério, em relação ao divórcio, Jesus retorna imediatamente depois, com uma afirmação que deve ser lida à luz do raciocínio mais amplo presente em Mt 19,1-9).
Essas palavras tão claras, seguidas pela exortação a cortar os membros do nosso corpo que nos são causa de escândalo, não precisam de comentário. Gostaria apenas de observar que elas são uma oportunidade oferecida a cada um de nós para nos interrogarmos sobre a nossa própria relação com a sexualidade e, portanto, mais uma vez, com o outro: a verdadeira perversão, de fato, muito antes de se traduzir em atos concretos, é aquela que induz a conceber o outro, a partir do olhar voraz que se lança sobre ele, como mera possibilidade de encontro sexual.
Em outras palavras, Jesus coloca diante dos nossos olhos o longo caminho para chegar a aprender a arte de amar e de viver a sexualidade em plenitude.
Por fim, Jesus comenta o preceito: “Não jurarás falso, mas cumprirás os teus juramentos feitos ao Senhor” (cf. Ex 20,7; Dt 5,11; Lv 19,12), radicalizando essa proibição: “Não jureis de modo algum”.
De fato, ele conhece bem a fraqueza das pessoas e sabe que, do mesmo modo em que elas “não podem tornar branco ou preto um só fio de cabelo”, elas se esforçam para manter fé nos juramentos, feitos em nome de Deus ou de si mesmos.
Mas Jesus estende a interpretação do mandamento bíblico até à responsabilidade de toda palavra proferida pelas pessoas: “Seja o vosso ‘sim’: ‘Sim’, e o vosso ‘não’: ‘Não’. Tudo o que for além disso vem do Maligno”. E assim corta pela raiz o grave risco que afeta a todos nós, o de uma comunicação dupla, mentirosa, que impede todo caminho autêntico de comunicação.
A radicalidade de Jesus, portanto, é a de quem, enquanto remonta à intenção daquele que doou a Lei, exorta os seus discípulos a vigiarem sobre a intenção, sobre a pureza do seu coração como fonte da verdadeira justiça. Será também ele, o Puro de coração por excelência (cf. Mt 5,8), que dirá: “É do coração que vêm as más intenções: crimes, adultério, imoralidade, roubos, falsos testemunhos, calúnias. Essas coisas é que tornam o homem impuro” (Mt 15,19-20).
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