13 Setembro 2018
Se for através de nós que Cristo pode falar e agir, hoje, isso quer dizer que a sua presença não pode ficar fechada em um dogma, uma regra, uma Igreja ou um templo. A sua presença é sempre nova; ela não pode ficar fixada em uma definição.
A reflexão é de Raymond Gravel(1952-2014), padre da arquidiocese de Quebec, Canadá, publicada no sítio Réflexions de Raymond Gravel, comentando as leituras do 24° Domingo do Tempo Comum - Ciclo B (16 de setembro de 2018). A tradução é de Susana Rocca.
Eis o texto.
Referências bíblicas:
1ª leitura: Isaías 50,5-9
2ª leitura: Tg 2,14-18
Evangelho: Mc 8,27-35
No evangelho de Marcos, a pergunta que Cristo coloca, e que também é retomada depois no evangelho de Marcos e de Lucas, é uma questão primordial ainda hoje: trata-se daquela que pergunta se nós queremos nos definir como crentes, como discípulos de Cristo. Quem é Jesus para nós? Certamente, existem os não crentes que sabem que Jesus de Nazaré existiu. Para eles, Jesus foi um homem excepcional que revolucionou a sociedade e a religião do seu tempo, mas só isso. Para as pessoas que acreditam, mas que não são cristãs, Jesus foi um profeta como Maomé, Buda, Moisés, Elias e tantos outros. Mas para nós, cristãos, quem é ele exatamente? À luz do evangelho de Marcos, a grandes traços podemos reconhecer o Jesus de Nazaré que se tornou Cristo e Senhor na Páscoa. Para nós, cristãos, que rostos lhe damos nas nossas vidas de fé e na nossa Igreja? O que falamos dele?
Nunca teremos falado suficiente... Jesus de Nazaré foi um homem como nós, um verdadeiro homem que viveu numa época determinada, num contexto específico. Como homem, ele se destacou, sem dúvida, dentre os outros homens, porque nós falamos dele há 2000 anos. No entanto, ele assumiu a sua humanidade até o fim, até a morte na cruz. Todos os evangelhos são histórias de fé, isto é, narrativas construídas após a Páscoa, na fé dos primeiros cristãos, que nos falam de um Jesus já transformado pela Ressurreição. Por outro lado, todas as narrativas fazem alusão a sua humanidade que ele teve que assumir até o fim: “Em seguida, Jesus começou a ensinar os discípulos, dizendo: ‘O Filho do Homem deve sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos chefes dos sacerdotes e doutores da Lei, deve ser morto, e ressuscitar depois de três dias’” (Mc 8,31).
Mas, atenção! Não são só os docetas que não reconhecem a humanidade de Cristo. Se Marcos faz que Pedro diga três vezes que Jesus vai ser rejeitado pelos seus, que ele deve sofrer e morrer, é porque ainda há alguns discípulos que não reconheciam a humanidade daquele que se tornou o Cristo e Senhor da Páscoa: “Jesus dizia isso abertamente. Então Pedro levou Jesus para um lado e começou a repreendê-lo” (Mc 8,32). No fundo, temos tanta dificuldade para viver a nossa humanidade em toda a sua fragilidade que desumanizamos Cristo, e gostaríamos de nos desumanizar a nós mesmos, para não sofrer a rejeição, o sofrimento e a morte. Por outra parte, não é assim que funciona: “Jesus virou-se, olhou para os discípulos e repreendeu a Pedro, dizendo: ‘Fique longe de mim, satanás! Você não pensa as coisas de Deus, mas as coisas dos homens“ (Mc 8,33). Pedro representa aqui todos os discípulos do Cristo da comunidade de Marcos...
Após a morte de Jesus de Nazaré na cruz, na Sexta-feira Santa, as mulheres e os homens que o tinham seguido tomaram consciência, aos poucos, que esse homem, esse profeta, esse revolucionário, ainda estava vivo. Eles o reencontraram no caminho e o reconheceram. Para eles, Jesus não era somente a lembrança de um amigo que eles tinham encontrado e amado; ele era o Messias, o Cristo, o Senhor, presente e agindo através deles. Ainda sendo Jesus mesmo, para alguns deles era outra pessoa: “Eles responderam: ‘Alguns dizem que tu és João Batista; outros, que és Elias; outros, ainda, que és um dos profetas" (Mc 8,28), mas para seus próximos, ele era mais do que isso: “’E vocês, quem dizem que eu sou?’ Pedro respondeu: ‘Tu és o Messias (Cristo)'” (Mc 8,29).
Por outro lado, o messias que Pedro achava que reconhecia era simplesmente o messias dos homens, o chefe político e religioso de quem viria a libertação de Israel da opressão romana. O teólogo francês Gérard Bessière escreve: “Jesus não queria nem o poder nem o prestígio. Ele se dirigia ao coração e à liberdade dos homens, ele oferecia amor e perdão. Sabia que os poderosos não o suportavam mais e queriam eliminá-lo. Ele era o messias pobre e perseguido, aquele que afrontava a morte até todas as ressurreições. Todos os que querem conduzir a humanidade até o alto passam, alguma vez, pela um caminho da cruz”. E é por isso que, se quisermos nos tornar seus discípulos, não temos outra opção senão assumir a nossa própria humanidade como ele assumiu a sua: “Então Jesus chamou a multidão e os discípulos. E disse: ‘Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga’” (Mc 8,34). Ser discípulo é, então, caminhar atrás de Cristo, e não na frente.
Para nós, hoje, esta parábola do evangelho deve nos interpelar. Em uma reflexão de Marthe Lamothe podemos ler: “Para vocês, quem sou eu? A pergunta de Jesus é feita a nós hoje. Segundo a nossa resposta, que relação com ele podemos perceber? Nós caminhamos na frente, indicando-lhe o que deveria fazer por nós, para mudar o mundo? Ou nós caminhamos atrás, deixando-o ser Deus à sua maneira, e entrando com ele nesse caminho onde a cruz se perfila como uma renúncia a todo poder sobre o outro, a toda vingança, a toda violência?”. Quando ouvimos alguns discursos da Igreja atual, temos a impressão que não se deixa que Cristo seja Cristo, nem que Deus seja Deus. Somos nós que lhe dizemos o que deve dizer e como deve agir...
E crer em Jesus - homem, profeta, Filho de Deus, Salvador, Messias, Cristo e Senhor - é primeiramente crer em nós, na nossa humanidade já transformada por ele, porque habitada pelo seu Espírito. No final do evangelho de hoje, Marcos escreve: “Pois, quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas, quem perde a sua vida por causa de mim e da Boa Notícia, vai salvá-la” (Mc 8,35). Isso quer dizer que vivendo a nossa humanidade até o fim, adotando os seus valores, deixando-o agir através de nós, é que podemos esperar torná-lo vivo e agindo na nossa Igreja. Também não basta dizer que temos fé; é preciso que se veja, e para fazê-lo, precisamos passar da palavra à ação. Na segunda leitura de hoje, Tiago diz isso explicitamente: “Assim também é a fé: sem as obras, ela está completamente morta. Alguém poderia dizer ainda: ‘Você tem a fé, e eu tenho as obras. Pois bem! Mostre-me a sua fé sem as obras, e eu, com as minhas obras, lhe mostrarei a minha fé’” (Tg 2,17-18).
Para terminar, se é através de nós que Cristo pode falar e agir, hoje, isso quer dizer que a sua presença não pode ficar fechada em um dogma, uma regra, uma Igreja ou um templo. A sua presença é sempre nova; ela não pode ficar fixada em uma definição. O exegeta francês Jean Debruynne escreve: “Jesus é o caminho. Jesus caminha e é no caminho que Jesus pergunta pela sua identidade: Quem sou eu? A identidade de Jesus não é, então, uma definição, um atestado de nascimento ou um visto de residência. A identidade de Jesus é um caminho. É uma revelação e, justamente para as pessoas, as respostas dadas pelos discípulos à pergunta de Jesus são respostas que ficam fechadas: Eles identificam Jesus com modelos conhecidos: João Batista, Elias ou outro profeta... Para Pedro, Jesus é o Messias, mas o que quer dizer a palavra messias?”.
Hoje, somos nós que temos que responder à pergunta: a nossa resposta dirá a qualidade da nossa fé e da esperança que nos habita... Será possível que Cristo, hoje, sejamos nós?
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