05 Outubro 2018
João Paulo II reconheceu valores e benefícios alcançados pelo comunismo, no qual existe preocupação com a comunidade, ao passo que o capitalismo é individualista.
O artigo é de Luís Corrêa Lima, padre jesuíta e professor do Departamento de Teologia da PUC-Rio. Trabalha com pesquisa sobre diversidade sexual e de gênero, e no acompanhamento espiritual de pessoas LGBT.
Há pouco mais de cem anos das aparições de Nossa Senhora de Fátima, em Portugal, foi lançado o filme Fátima, o último mistério, do diretor Andrés Garrigó. Ele trata do conteúdo das aparições, relacionando-o com os acontecimentos do século XX e do início do século XXI. Segundo o diretor: “mostramos como a Virgem agiu nesses últimos 100 anos, mostrando exemplos impressionantes de como Ela mudou a história do mundo”. Além disso, “este filme mostra que a atual grande crise da família já se encontrava entre os ‘erros da Rússia’ que a Virgem de Fátima profetizou e que se espalharia pelo mundo”[1].
Quando o papa João Paulo II mandou revelar o chamado terceiro segredo de Fátima, o Vaticano publicou os textos da uma das videntes, a irmã Lúcia, acompanhado de um estudo do então cardeal Ratzinger, expondo a doutrina da Igreja sobre as aparições ou revelações particulares. A autoridade das revelações privadas é diferente da revelação pública, contida na Bíblia. Esta exige a nossa fé, enquanto que a revelação privada é um auxílio para esta fé. A aprovação dada pela Igreja neste caso consiste em que a respectiva mensagem não contem nada contrário à fé e os bons costumes, que é lícito torná-la pública, e que os fiéis ficam autorizados a dar-lhe de forma prudente a sua adesão. Tal mensagem pode ser um auxílio válido para compreender e viver melhor o Evangelho no presente. É uma ajuda oferecida cujo uso, porém, não é obrigatório[2].
No filme, há imagens de arquivo impressionantes de demolição de igrejas na Rússia, após a Revolução de 1917. O comunismo é mostrado como o grande mal diabólico do século XX. E a mensagem das aparições tem interpretações bastante surpreendentes. O papa e os bispos deveriam fazer o rito de consagração das nações ao Imaculado Coração de Maria, incluindo especialmente a Rússia. Por não o terem feito, ocorreu a Segunda Guerra Mundial. Em 1942, o papa Pio XII chegou a fazê-lo no rádio, porém não em união com os outros bispos. Por isso, este ato não foi suficiente para pôr fim à Guerra. Mas mesmo assim começaram desde então as derrotas da Alemanha nazista no Leste europeu, que a levaram à ruína. A consagração só ocorreu de forma satisfatória em 1984, feita por João Paulo II. Depois disto é que aconteceram as grandes transformações na União Soviética, como a Glasnost (transparência) e a Perestroika (reestruturação), que resultaram na queda do Muro de Berlim e no fim do comunismo.
É fato que, por muitas décadas na pregação católica, o comunismo era considerado algo satânico, “intrinsecamente perverso”, conforme a expressão do papa Pio XI. Com este regime não se pode admitir qualquer forma de colaboração da parte de quem deseje salvar a civilização cristã[3]. Como consequência, tudo o que fosse contra o comunismo era no mínimo menos ruim. Convém lembrar que em 1941 a Alemanha nazista invadiu a União Soviética, com o apoio de voluntários vindos de outros países movidos pelo fanatismo anticomunista, insuflados por pregadores católicos. A maior mortandade ocorrida na 2ª Guerra foi a de russos: 20 milhões de mortos! Algo muito maior que o Holocausto. E tal mortandade se deve àquela invasão. Felizmente o papa Pio XII nunca a apoiou.
A União Soviética aderiu aos Aliados, unindo-se à Inglaterra e aos Estados Unidos. Nesta época os católicos norte-americanos consultaram o papa sobre se era lícito apoiar países comunistas, militar e financeiramente, uma vez que o comunismo era intrinsecamente perverso. A resposta de Pio XII foi: é preciso distinguir um povo de seu governo. O povo russo poderia ser apoiado apesar de ter um governo comunista. Com isto, os católicos norte-americanos puderam colaborar amplamente com a União Soviética na guerra contra a Alemanha. O anticomunismo deste papa tinha matizes e não chegava à cegueira do fanatismo.
O mesmo se pode dizer de João Paulo II, que reconheceu valores e benefícios alcançados pelo comunismo, no qual existe preocupação com a comunidade, ao passo que o capitalismo é individualista. Para ele, os proponentes do capitalismo em suas modalidades extremas ignoram coisas boas alcançadas pelo comunismo, como os esforços para acabar com o desemprego e a preocupação com os pobres. Recordando Leão XIII, Wojtyla reitera que existem sementes de verdade também no programa socialista. E exorta: “tais sementes não devem ser destruídas, nem se perderem no vento”[4].
A grande crise da família oriunda dos erros da Rússia, segundo o filme, está na ideologia de gênero que defende o casamento gay. Mas este país hoje, devidamente consagrado a Maria, rechaça o movimento LGBT e todas as suas bandeiras. Ora, a Revolução Russa reprimiu duramente homossexuais e transgênero no século XX, assim como tantos outros países, comunistas ou não. Desconsiderar esta repressão e atribuir aos comunistas o protagonismo do casamento gay, é ignorância histórica. A defesa da dignidade e dos direitos da pessoa humana faz parte do ensinamento da Igreja Católica. Este ensinamento inclui hoje a descriminalização da homossexualidade em todo o mundo, a oposição a toda forma de violência feita a pessoas homossexuais [5], a possibilidade de se reconhecer direitos decorrentes da convivência entre pessoas do mesmo sexo, mesmo não equiparando esta união ao matrimônio [6]; e o respeito pela autonomia da consciência, como tão bem expressou o papa Francisco: “se uma pessoa é gay, busca o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para a julgar”?[7]. Atribuir a Maria, mãe de Jesus, a hostilidade atual da Rússia aos LGBT contraria o Evangelho e o ensinamento da Igreja.
A adesão a revelações privadas, mesmo não sendo obrigatória, exige sempre prudência. As interpretações do filme sobre Fátima, culpando o papa e os bispos católicos pela Segunda Guerra Mundial, são um delírio. O comunismo inegavelmente tem males, que foram amplamente denunciados pelos papas. Estes males, porém, não justificam toda forma de anticomunismo, como a invasão da União Soviética pela Alemanha e o apoio às ditaduras militares na América Latina, incluindo o Brasil. Tampouco se justifica associar a Revolução Russa à luta dos LGBT por cidadania. Os males do anticomunismo não devem ser subestimados, ainda mais nestes tempos sombrios de polarização ideológica, em se quer relativizar direitos humanos e valores democráticos. Demonizar regimes, coletividades e pessoas é um retrocesso civilizatório. Só serve para aumentar a barbárie.
Notas:
1 – “Filme sobre aparições de Nossa Senhora de Fátima chega ao Brasil”. Disponível aqui.
2 – Congregação para a Doutrina da Fé. A mensagem de Fátima. Disponível aqui.
3 – Divinis redemptoris, n. 58. Disponível aqui.
4 – Entrevista concedida ao jornalista Jas Gawronski, 1993. Disponível aqui.
5 - Intervenção do representante da Santa Sé, 2008. Disponível aqui.
6 - Considerações sobre os projetos de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais, 2003, n. 5 e 9. Disponível aqui.
7 - Encontro do santo padre com os jornalistas durante o voo de regresso, 2013. Disponível aqui.
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Fátima, o comunismo e os LGBT - Instituto Humanitas Unisinos - IHU