Por: João Vitor Santos | 24 Março 2018
O ano de 2018 é um ano eleitoral atípico no Brasil. Depois de um tempo mergulhado num estado de crises que nem bem ao certo se consegue diagnosticar, pensar sobre o pleito deste ano deixa confusos até experientes analistas. Isso porque os dois polos de força, que podemos genericamente tipificar como esquerda e direita, se desalinharam dos seus eixos e acabaram gerando um vazio de onde emergem outras forças. Na mesma quinta-feira, 22-3, em que o Supremo Tribunal Federal julgaria – pois acabou adiando para 4 de abril – o habeas corpus preventivo do ex-presidente Lula, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU promoveu dois eventos que propõem uma reflexão sobre o atual momento do país. A ideia é superar o discurso de que a esquerda foi golpeada pela direita e compreender de que forma os modelos políticos, à esquerda e à direita, baseados no liberalismo democrático, chegam ao esgotamento e requerem uma reinvenção. Na primeira palestra, realizada no fim da tarde, dentro do espaço do IHU Ideias, Marcelo Danéris debateu Do liberal-democratismo ao risco do totalitarismo. Limites e possibilidades da conjuntura política atual. Já à noite, abrindo o 3º Ciclo de Estudos A esquerda e a reinvenção da política no Brasil contemporâneo, Diego Viana falou sobre O momento brasileiro e a reinvenção política. Limites e possibilidades.
Tanto Danéris, diretor institucional do Instituto Novos Paradigmas, quanto Viana, graduado em Economia e mestre em Filosofia, apontam que é preciso compreender o que leva a esse imbróglio que parece desalinhar as instituições políticas de nosso tempo. Mais do que uma disputa polar, acreditam que isso tem origem no liberalismo do século XXI, que está nos alicerces da via da liberal-democracia. Para eles, tudo remonta às crises internacionais de 2007 e 2008. Crises essas geradas pelo próprio liberalismo, mas que, esquizofrenicamente, acabam salvando o próprio liberalismo que se reinventa. Sem entender esse processo, não surgem alternativas para fazer frente a essa lógica. “Hoje, não existe estado nacional capaz de fazer frente ao neoliberalismo, que se ergue e caminha sobre seus escombros”, aponta Danéris. “É um morto-vivo que caminha enquanto um novo não emerge”, elabora Viana ao se referir ao poder do capital.
Diego Viana (Foto: João Vitor Santos/IHU)
Danéris e Viana seguem com linhas distintas, mas comungam da perspectiva de que há um cenário internacional que tensiona a política da atualidade e que acaba repercutindo na realidade nacional. A gênese está na mudança no paradigma da relação trabalho e capital. Para eles, o mundo girou e o antigo capitalismo não se apoia na mesma lógica dos séculos XIX e XX para se engendrar nos estados. Afinal, o trabalho não é mais o mesmo da fábrica e o capital agora é até virtual. Enquanto isso, o campo político segue tentando aplicar a mesma fórmula para tentar conter um liberalismo mutante. “Não sabemos nem que remédio usar para a doença porque justamente nem sabemos qual é a doença”, pontua Danéris. “Na segunda metade do século XIX a gente defendia 8 h de trabalho, 8 h de descanso e 8 h de lazer. Mas será que esse modelo ainda serve hoje? Não temos outras dimensões além do trabalho e descanso? Como pensar em alternativas?”, provoca Viana.
Marcelo Danéris aponta que é importante ter consciência das dinâmicas desse novo modelo liberal. “Dez anos depois da crise de 2008, o neoliberalismo sai vitorioso da crise provocada pelo mesmo modelo liberal. Isso revela muito sobre a nossa democracia de hoje”, provoca. Mas no que consiste essa reinvenção do modelo liberal? Para ele, são três os pontos que também trazem como consequência um esgotamento de um tipo de democracia. O primeiro deles é a ideia que se tem de que o Estado é capaz de suportar o bem-estar social. “Na Europa, a Nacional Democracia fez acordos para que o Estado suporte isso. Aqui, para vivermos o bem-estar social, constitui-se uma democracia-liberal que, no fundo, se viabiliza pelo livre-mercado”, explica. O problema, nesse caso, aponta ele, é que a democracia passa a não ser uma democracia plena, mas uma adaptação com um viés que se curva às lógicas do mercado.
Marcelo Danéris (Foto: João Vitor Santos/IHU)
E se a liberal-democracia se instaura, a social-democracia se enfraquece. Assim, chegamos ao segundo ponto destacado por Danéris. “Ocorre uma ausência de alternativas ao esgotamento da social-democracia, pois não consegue mais fazer frente a esse novo liberalismo, permitindo que ele avance livremente”. Uma democracia atravessada pelo capital acaba pondo em xeque a si própria. É o que Danéris coloca como crise da representatividade democrática, seu terceiro ponto. “Diante da crise do estado social e da economia, não encontramos resposta e isso põe a democracia em xeque”, explica.
O resultado pode ser medido em algumas das pesquisas trazidas por ele. Segundo dados da Fundação Getulio Vargas, cerca de 70% das pessoas atualmente não confiam na democracia. Já segundo o Latinobarômetro, apenas 30% das pessoas consideram o regime democrático melhor do que qualquer outro. “A esquerda e a centro-esquerda pagam um preço alto porque a narrativa do neoliberalismo diz que o Estado é grande demais e não se sustenta”, analisa. O problema é que a própria esquerda fez suas concessões liberais para tentar prover esse sustento e, agora, todo seu sistema desmonta. “O liberalismo vai se impor, nem que seja através de um totalitarismo”. Ou seja, segundo Danéris, é nesse vazio democrático que se estabelecem outras forças que, no fundo, querem solidificar as faces desse novo capital. “Assim, chegamos ao estado de exceção que vivemos hoje”, enfatiza.
Diego Viana recorda que, desde a crise de 2008, passamos de um otimismo quase cândido a um pessimismo depressivo. “Apesar do cenário internacional, vivíamos um otimismo no Governo Lula pelas possibilidades de inclusão social, melhora em outros indicadores econômicos e uma certa ideia de ‘Brasil potência’, ainda liderado pelo cara carismático”, recorda. Mas, todo esse clima se inverte até que se chegue ao nosso momento. É uma curva descendente que se estabelece em grande medida a partir das Jornadas de 2013, mas que tem origens ainda anteriores. “E não há como desconsiderar o peso do global, pois em 2007 e 2008 os sistemas do mercado internacional entram em crise. Depois, a partir de 2011 eclodem movimentos e protestos pelo mundo. O período de financeirização ofertava algo maior que não se confirmou”, reflete.
Na quinta-feira, 22-3, IHU promoveu conferências que provocaram a pensar o atual momento brasileiro (Foto: João Vitor Santos/IHU)
São três os fatores de mudança, segundo Viana, que levam a essa mudança global, mas com sua reverberação muito forte localmente. O primeiro deles diz respeito à lógica do antropoceno. “Essa perspectiva de exploração de tudo pelo consumo vai levar a um colapso civilizacional”, acrescenta. Além disso, a automação, a alta tecnologia, acaba impactando no trabalho. “E não são só os trabalhos mais mecânicos que tendem a ser substituídos pela automação. Com as learning machines, até os trabalhos mais complexos serão impactados”, lembra. Por fim, há uma transformação na própria relação entre capital e trabalho. É o que chama de capitalismo de plataforma. “São esses aplicativos que mudam a lógica de consumo e de produção, reconfigurando também essas relações de trabalho”.
Com todas essas mudanças, a democracia liberal se configura como a principal vítima dessa quebra. “É importante compreender que a esquerda se alicerça nas mesmas bases do liberalismo. Quando esses alicerces se movem, ela não consegue mais responder”. Para Viana, é aí que se estabelecem os vazios por onde crescem perspectivas salvacionistas que flertam até mesmo com o totalitarismo. Afinal, se não há resposta à esquerda, também não há à direita. Mais uma vez, o liberalismo é capaz de se mover e se aproximar dessas outras lógicas, até totalitárias, para garantir sua própria existência. É nisso, segundo ele, que consiste a emergência de uma reinvenção política. “É preciso compreender que há necessidade de repensar a relação capital – trabalho. Temos que pensar noutras relações além do capital e além do trabalho”, provoca.
Diego Viana diz que, ao olhar para esses movimentos no âmbito local, percebe que o Brasil na realidade vive uma espécie de restauração oligárquica, que tem seu núcleo nas lógicas liberais. “A oligarquia nunca desembarcou do poder no Brasil”, avalia. É similar ao que Marcelo Danéris refere quando analisa que nunca se estabeleceu uma democracia plena no país. “Veja que apenas cinco presidentes da República cumpriram seu mandato até o fim [em 90 anos de democracia representativa]. Que democracia é essa?”, questiona.
Reinventar a política, segundo Viana, passa por repensar novos paradigmas éticos e políticos. Para exemplificar, ela toma as defesas que têm sido feitas pela renda básica universal. “Agora, de tudo que é lado, aparecem defesas à renda básica universal. A direita vê como uma forma de responder ao desmonte do trabalho e à própria falta de trabalho em decorrência da automação. Na esquerda, isso aparece como forma de repensar formas para tirar as pessoas da miséria”, explica. Porém, lembra ele, tudo orbita numa mesma perspectiva que talvez não dê conta da realidade do mundo de hoje. “Precisamos pensar noutros paradigmas muito mais horizontais. Para isso, é preciso criatividade. Felizmente, o Brasil ainda é um país diverso e é dessa diversidade que podemos pensar em outros paradigmas”, sugere.
Ato Arte Pela Liberdade, #CencuraNuncaMais, realizado em 2017, pediu liberdade cultural e mais democracia em evento no Rio de Janeiro
(Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)
Marcelo Danéris também sugere uma reinvenção; na verdade, propõe uma superação do discurso do golpe, que tipifica o impeachment de Dilma Rousseff como golpe. “Apenas chamar de golpe não leva a nada. A tarefa é dissecar esse momento”, diz. Para ele, é um golpe na democracia, mas que difere do golpe de 1964. “Para o golpe de 64, sabíamos qual era o remédio. Para esse, não sabemos. O que vem depois da liberal-democracia? Esse é o temor”, analisa. Há defensores da tese de golpe que alegam que foi um golpe de classes sociais, outros que foi parlamentar, outros jurídico-institucional e ainda há os que veem como jurídico-institucional-midiático. “Mas podem ser todos. A classe financia, o parlamento é a via pela qual se estabelece, o Judiciário dá os elementos e a mídia a narrativa”, avalia.
Mas como pensar em saídas? Danéris é mais pragmático e sugere: “precisamos concluir a democracia inacabada, que sempre esteve tutelada”. Para ele, isso passa pela realização de “uma nova constituinte cidadã, reforma do sistema político-eleitoral, reforma do Judiciário e democratização dos meios de comunicação”. Assim, compreende um caminho possível para salvar o regime democrático. “E pode ser uma democracia liberal, nem chega a ser uma social-democracia. Hoje, vivemos uma falsa democracia em que se usam seus elementos constitucionais para golpear ela mesma”.
“Não existe estado nacional capaz de fazer frente ao neoliberalismo, que se ergue e caminha sobre seus escombros”, Marcelo Danéris.
Diego Viana reitera essa ideia da criatividade. Um caminho, por exemplo, pode ser reinventar a luta do século XIX, que pedia 8 horas de trabalho, 8 de descanso e 8 de lazer. “Poderíamos criar novas divisões, especialmente sobre o trabalho. Quem sabe pensar quatro horas de trabalho? Nas outras quatro, poderíamos, quem sabe, estudar ou dedicar à política, ao cuidado de si e da comunidade”, provoca. Talvez seja uma utopia? Pode ser, mas Viana quer provocar mesmo a pensar. “Pode ser tolice, mas é uma forma de expressar que o humano tem mais do que o trabalho. O brasileiro precisa abandonar o paradigma extrativista que é importado. Olhe o exemplo do índio, que se organiza de uma outra forma. Rejeitamos as culturas do índio, mas penso que elas têm muito a nos inspirar”, finaliza.
Graduado em Economia e mestre em Filosofia. Atualmente cursa doutorado no programa Diversitas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - FFLCH-USP e no Laboratoire du Changement Social et Politique - LCSP da Universidade Paris Diderot (Paris VII). Também é membro do Grupo de Estudos Iconomia.
Possui Licenciatura em História pela Unisinos, mestrado e doutorado em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Atualmente, realiza pós-doutorado na UFRGS em Políticas Públicas. É diretor do Instituto Novos Paradigmas - INP e secretário parlamentar no gabinete do deputado federal Henrique Fontana (PT/RS). Foi Secretário do governo do estado do Rio Grande do Sul durante a gestão Tarso Genro (2011-2014).
O 3º Ciclo de Estudos A esquerda e a reinvenção da política no Brasil contemporâneo segue até dia 28 de maio.
Confira a programação completa no site de eventos do IHU. No mesmo endereço, também já é possível conferir a programação do IHU Ideias do mês de abril.
Do liberal-democratismo ao risco do totalitarismo. Limites e possibilidades da conjuntura política atual, com Marcelo Tuerlinckx Danéris
O momento brasileiro e a reinvenção política. Limites e possibilidades, com Diego Viana
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O liberalismo que se reinventa e revela esgotamento de um sistema político - Instituto Humanitas Unisinos - IHU