04 Dezembro 2017
No centro do debate sobre a "Neutralidade da rede" nos Estados Unidos está uma pergunta sobre a natureza da Internet. Será que ela se tornou tão importante para a vida da humanidade a ponto de ser considerada utilidade pública, tão essencial quanto a água ou a energia elétrica - e, como disse o Papa Francisco, "um presente de Deus" - ou é um negócio como qualquer outro, que deve ser governado pela lógica de mercado do capitalismo?
Na verdade, a Internet é, sem dúvida, os dois, mas pessoas diferentes, incluindo os católicos, tendem a enfatizar diferentes lados dessa equação.
A reportagem é de Claire Giangravè, publicada por Crux, 02-12-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
É muita provável que, no dia 13 de dezembro, membros da Comissão Federal de Comunicações dos Estados Unidos (FCC, do inglês Federal Communications Commission) votem a favor da desregulamentação da Internet, permitindo que provedores de banda larga, como Comcast, Verizon e AT&T exerçam mais controle sobre a administração de seus serviços.
Como é de se esperar, os católicos dos Estados Unidos estão divididos. Enquanto muitos manifestaram seu apoio à medida, considerando-a uma vitória para o livre mercado, outros, como os bispos dos EUA, se opõem fortemente a ela, pois acreditam que a desregulamentação mudará a face da Internet, e não para melhor.
Imagine a Internet como um milk-shake, com tudo o que amamos e odiamos na internet - desde blogues e sites de notícias até vídeos virais de 'cabra gritando'. Nessa analogia, provedor de acesso à internet (ISP, do inglês Internet service provider) representam o canudo, que permite que o consumidor acesse o conteúdo que deseja.
A neutralidade da internet afirma que o canudo deve tratar todo conteúdo da mesma forma e não pode, por exemplo, alterar a velocidade de download de um site sobre outro ou cobrar por tratamento especial.
Em fevereiro de 2015, a FCC aprovou uma 'New Open Internet Order' (Nova Ordem de Internet Aberta), que definia as regras de neutralidade da rede. A regulamentação, também chamada de Title II, por estar no título II da Lei das Comunicações, reclassificou os ISP como portadores comuns que servem ao público em geral e que, portanto, devem ser licenciados por uma agência reguladora, ou seja, a FCC.
A esperança dos ISP de estabelecer internet a uma velocidade normal por uma taxa base e internet de alta velocidade por um custo adicional foi, por enquanto, deixada de lado.
Menos de dois anos depois da decisão, o Presidente da FCC, Ajit Pai, anunciou a intenção de desmantelar essa regulamentação, causando pânico e raiva dos que preveem o apocalipse da Internet e “viva” dos defensores do livre mercado.
Obviamente, Verizon, Comcast e AT&T tem muito a ganhar com sua abolição e pouco interesse em preservar os princípios da neutralidade da internet. Ajit Pai, ex-funcionário da Verizon, argumentou que as regras definidas pela FCC prejudicaram os investimentos dos ISP em infraestrutura e a produção e distribuição de novos serviços.
Se a resolução for aprovada, empresas como Netflix, Google e Amazon podem virar piada dos ISP, com uma redução da velocidade da Internet em seus sites, a menos que pagassem taxas extras. Tais taxas seriam facilmente repassadas ao consumidor, que acabaria pagando a conta para acessar seu conteúdo favorito.
Enquanto alguns analistas acreditam que o risco de isso acontecer seja mínimo, com o fim de Title II isso seria possível.
Em tal cenário, startups e kickstarters da Internet seriam as mais afetadas. As taxas extras impostas pelos ISP poderiam comprometer pequenas empresas que estão entrando no mercado e talvez não tenham meios financeiros para pagar pela Internet de alta velocidade.
Também é possível que fossem mais desfavorecidos sites e serviços de atores sem fins lucrativos, como a Igreja Católica e suas várias instituições, que também podem não conseguir pagar esta conta para estar na nova "via rápida" da Internet.
Em uma declaração esta semana, o presidente da Conferência dos bipos católicos dos EUA de comunicações, o Bispo Christopher Coyne, de Burlington, Vermont, dirigiu-se à FCC em nome da conferência em apoio à manutenção da neutralidade da internet.
"Fortes proteções à neutralidade da internet são cruciais para o funcionamento da comunidade religiosa e para que ela possa se conectar com seus membros, bem como são essenciais para proteger e melhorar a capacidade de comunidades vulneráveis de usar tecnologia avançada e necessárias para qualquer organização que visa organizar, defender a justiça ou testemunhar no ambiente lotado e comercializado da mídia”, segundo sua declaração.
Em uma entrevista com a Crux, Coyne disse que a conferência têm se envolvido neste debate "desde o início" e que, durante a última reunião da Comissão, foi discutida a nova configuração política da terra com diversos membros da FCC que querem preservar as regras de neutralidade de 2015.
"Os provedores de banda larga, provedores de internet, estão tomando essa decisão por dinheiro", declarou Coyne. "O atual governo diz que isso está sendo feito para permitir que as empresas aproveitem e aumentem os lucros. Isso não é necessariamente algo bom para o consumidor".
O bispo salientou que a decisão da USCCB de apoiar a neutralidade da internet não é política, como muitas das atuais tensões começaram a ser no governo Obama, mas sim proteger as necessidades do público em geral e ter certeza de que a mídia católica vai continuar tendo voz on-line.
"Se as coisas avançarem, teríamos outros grupos religiosos bem financiados conseguindo acesso à internet de alta velocidade, enquanto a mídia católica menor não conseguiria por não ter os recursos, e a mensagem não seria transmitida", disse.
Coyne também questionou o argumento dos porta-vozes dos ISP de que não usariam sua recém-adquirida liberdade para sufocar a concorrência, mas, em vez disso, deixariam o mercado decidir o conteúdo que prefere, uma promessa que foi reforçada em tweets e comerciais.
"Já provamos por diversas vezes que, considerando como é a natureza humana, o voluntariado não funciona quando se trata de dinheiro e quando se trata de potencial humano para tomar decisões ruins baseadas no egoísmo, e não no que é melhor para o público em geral", afirmou.
"Estamos firmes neste tema da neutralidade da internet não apenas por nossa preocupação em ir adiante em nosso trabalho de comunicação, mas porque achamos que vai servir ao bem comum", acrescentou.
Helen Osman, presidente da Associação Católica Mundial da Comunicação (SIGNIS), ecoou estas palavras em uma entrevista à Crux.
"Estou preocupada com as nossas instituições católicas, mas também me preocupam os indivíduos que estão tentando usar a internet de forma a melhorar suas vidas, não apenas economicamente, mas também no acesso à informação até a possibilidade de participar do seu governo, de se comunicar com as pessoas", disse.
Helen Osman também afirmou que "é uma possibilidade muito real" que as organizações de mídia católica sejam prejudicadas pelas próximas decisões da FCC e que os que tentam usar sites católicos fiquem "presos no acostamento da via rápida da Internet".
A decisão do Presidente da FCC de reverter a decisão de 2015 beneficiará os que podem pagar, acrescentou, e prejudicará principalmente os que vivem em áreas menos povoadas onde há poucas ou nenhuma opção de escolha de ISP, que seriam prejudicados de forma desproporcional no acesso à Internet e em relação às taxas.
"Como comunicadora católica, vejo a comunicação como um atributo fundamental do que significa ser humano", observou. "Se nós, como seres humanos, vamos florescer, as nossas principais ferramentas de comunicação têm de ser essencialmente acessíveis a todos".
Ela admite os desafios vivenciados pelos ISP, muitos dos quais também são empresas de TV a cabo. Serviços de streaming on-line de alta qualidade, como o Netflix, estão comprometendo seu modelo de negócio, afastando aos poucos muitos de seus clientes, com preços competitivos. "Mas eles têm mais responsabilidade com a sociedade em geral, porque estão pensando muito pequeno ao achar que uma forma de manter uma boa margem de lucro é forçar as pessoas a um modelo de 'Pay-to-play' para a internet", disse ela.
"A Internet hoje é como outros serviços públicos nos Estados Unidos. Precisamos de água, precisamos de ar puro, precisamos de acesso à energia elétrica, precisamos de acesso à Internet. É um bem público, uma utilidade pública, e não pode ser tratada como se fosse um item de luxo".
Se a FCC aprovar a nova regulamentação em dezembro, os consumidores provavelmente não terão uma mudança drástica ou imediata. É muito mais provável que as coisas pareçam exatamente as mesmas, pelo menos por um tempo. Afinal de contas, antes da decisão da FCC de 2015, a Internet não apenas havia sobrevivido, como tinha florescido sem as garantias de neutralidade da internet.
Em uma coluna de 22 de novembro, Jeffrey Tucker, fundador do Liberty.me e pesquisador do Instituto Acton, uma organização católica que promove soluções de livre mercado para problemas sociais, chamou a decisão de 2015 da FCC de tentativa de "manutenção do poder", que permitiu que grandes empresas de Internet não pagassem os custos com os quais os ISP têm de arcar para proporcionar mais velocidade.
"Ela criou um cartel de comunicação na Internet que não é diferente da forma como o sistema bancário trabalha no Sistema de Reserva Federal dos Estados Unidos”, escreveu. "A neutralidade da internet fechou a concorrência no mercado, geralmente colocando o governo e as empresas que o apoiam em posição de decidir quem pode e quem não pode jogar no mercado."
Tucker aponta para este sistema como a causa para a falta de desenvolvimento em infraestrutura dos ISP. Eles puderam agir sem pensar na concorrência e optaram por descansar sobre seus louros.
"Então, pouco depois do fim da 'neutralidade da internet', a concorrência pôde chegar à indústria que fornece serviços de Internet", afirmou.
Em 2008, o fundador da CatholicVote.org, Larry Cirignano, estava entre os 12 conservadores que solicitaram apoio à neutralidade da internet ao Comissão Judiciária do Senado. Sua preocupação era que as regulamentações impedissem inovações futuras, incluindo os blocos e filtros que interrompem o desenfreado conteúdo pornográfico disponível na web.
"É criticamente importante que os pais e os provedores de serviço de banda larga continuem tendo essas ferramentas disponíveis, porque apesar do que os defensores da neutralidade da internet possam afirmar, todo o conteúdo na web é diferente e não deve ser tratado igualmente", diz a carta.
Do coro dissonante que emerge não só da comunidade católica, mas também da sociedade dos Estados Unidos como um todo, é óbvio que o debate sobre a neutralidade da Internet veio para ficar - e também que o que quer que a FCC e o Congresso acabem decidindo, os católicos indignados e encantados continuarão na internet discutindo sobre o assunto.
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Bispos apoiam 'neutralidade da internet', mas base católica demonstra estar dividida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU