23 Outubro 2017
Com uma população total de apenas 445 mil pessoas, Malta é um dos menores países soberanos do mundo, mas historicamente e hoje esta pequena nação sempre teve uma importância singular dentro do catolicismo. Na esteira do assassinato chocante ocorrido segunda-feira passada, de uma jornalista que investigava casos de corrupção, a Igreja local, sob o a liderança de Dom Charles Scicluna, pode estar idealmente posicionada para inspirar a sustentar um forte movimento pelas reformas.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 22-10-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Na qualidade de amante dos cães da raça pug, estou profundamente convencido da verdade deste lema: “Multum in parvo”, que quer dizer, mais ou menos, “um monte de cães em um espaço pequeno”. Apesar do tamanho diminuto dos pugs, jamais iremos encontrar uma criatura com um coração maior ou com mais personalidade.
Ao redor do mundo católico, existem algumas poucas nações das quais algo semelhante pode ser dito, pois tanto historicamente quanto na atualidade a influência delas se estende bem além de seus dados demográficos. Malta, com uma população total de apenas 445 mil, é um exemplo clássico, historicamente servindo como linhas de frente na defesa da cristandade europeia, e ainda hoje gerando homens para o clero e leigos que desempenham papéis-chave nos assuntos de Igreja no mundo todo.
Na atualidade, Malta se recupera do assassinato da jornalista Daphne Caruana Galizia, morta naquilo que a polícia agora acredita ter sido uma bomba detonada remotamente perto de sua casa na segunda-feira passada. Galizia ficou conhecida por postagens em seu blog que acusam importantes políticos e empresários malteses de várias formas de corrupção. Ela vinha sendo particularmente uma crítica amarga do primeiro-ministro Joseph Muscat.
Em 2016 e 2017, Galizia publicou uma série de reportagens baseadas nos “Papéis do Panamá”, documentos vazados que, segundo ela, revelavam detalhes de formas variadas dos crimes financeiros ligados a Malta.
O catolicismo é oficialmente a religião do país, e quase 90% dos cidadãos se identificam como católicos. Consequentemente, nada acontece sem que as pessoas se perguntem como a Igreja reagirá e, historicamente, a sua reação muitas vezes deu-se em defesa da tradição e da antiga ordem, e não dos reformadores.
Neste contexto, a rapidez com que a Igreja parece ter abraçado a causa de Galizia e seu legado tem surpreendido o povo local.
Em um telegrama enviado na sexta-feira, o Papa Francisco disse que estava “triste pela morte trágica” da jornalista e que estaria orando por sua família, pelo povo de Malta e pela nação como um todo “neste momento difícil”.
Esse gesto foi visto como um movimento incomum, dado que os papas enviam telegramas de condolências depois de desastres naturais mortíferos ou em casos de morte de líderes mundiais proeminentes, mas não em decorrência da morte de um cidadão particular.
Dom Charles Scicluna, com efeito o presidente da Igreja maltesa, rapidamente concordou em celebrar a missa fúnebre para Galizia na segunda-feira no bairro de origem da falecida às 15h, no mesmo horário em que se detonou o carro-bomba que a matou uma semana atrás.
Scicluna postou-se em defesa das reformas simbolizadas por Galizia, dizendo, em entrevista a uma rádio no sábado, que “não podemos ter um Estado sem responsabilização e transparência. Existem muitas leis sobre isso, mas precisamos mostrá-las com fatos”.
Para alguns analistas do Vaticano, Scicluna continua sendo um protegido do então Cardeal Joseph Ratzinger, mais tarde Papa Bento XVI, tendo emergido como o principal procurador do Vaticano em casos de abuso sexual clerical e uma das vozes mais infatigáveis da Igreja em nome da transparência e responsabilização.
Como Promotor de Justiça, na Congregação para a Doutrina da Fé de 2002 a 2012, Scicluna ganhou a reputação de “Eliot Ness do Vaticano”: incorruptível e destemido ao visar alvos anteriormente vistos como intocáveis, contando em seu portfólio o padre mexicano Marcial Maciel Degollado, fundador da Legião de Cristo. Essa ordem religiosa se viu obrigada a reconhecer que Maciel era culpado de várias formas de abuso sexual e de conduta imprópria, após uma investigação encabeçada por Scicluna.
Scicluna atualmente parece tão indignado com o assassinato de Galizia que inclusive criticou alunos da Universidade de Malta por não comparecerem a uma vigília na noite de quarta-feira em memória da jornalista
Em resposta, Scicluna disse que ficou “surpreso”, perguntando-se se a universidade havia se transformado em nada mais do que um “campo de treinamento glorificado”, e se os alunos de hoje a frequentam apenas para “obter aquele pedaço de papel que cai bem nos currículos”. O religioso manifestou a preocupação de que a geração presente está sendo formada sem nenhum senso de “sensibilidade ética, social e política”.
Scicluna também falou a favor da liberdade de imprensa.
“O povo precisa de jornalistas para permanecer livre”, disse. “Os jornalistas estão lá em nosso nome para investigar o uso do poder, para investigar como o nosso dinheiro é gasto e para certificar-se de que Malta está progredindo como deveria”.
Ainda que os políticos malteses geralmente tenham a tendência a defender o setor financeiro do país, nos últimos meses houve vários sinais preocupantes de que algo não vai bem.
Com base, em parte, nas reportagens de Galizia, Malta passou a ser rotulado como a “sede pirata” da Europa para práticas de evasão fiscal, e a Universidade de Amsterdã recentemente concluiu, com base em um estudo computacional, que este pequeno país é um dos 10 principais paraísos fiscais do mundo, na companhia dúbia de atores desonestos como as Ilhas Cayman e Curaçau.
Até mesmo o Vaticano, que certamente possui a sua própria história em se tratando de escândalos financeiros, se juntou recentemente aos países que apontam o dedo para Malta. Representantes da Santa Sé entraram com um pedido judicial de 20 milhões de dólares, buscando recuperar fundos desviados do Instituo para as Obras de Religião – IOR – o chamado Banco Vaticano – que, segundo dizem os advogados, foram apanhados em uma “rede de intrigas e transações suspeitas” feitas por empresas maltesas de investimento.
Dada a interdependência dos sistemas financeiros globais no século XXI, a recusa em jogar segundo as regras pode trazer graves consequências em todo o lugar. Isso faz com que as reformas financeiras no Vaticano, sob o comando de Francisco, sejam tão importantes, e o mesmo se aplica exatamente a Malta.
Em termos católicos também, há muitas coisas em perigo. A luta contra a corrupção financeira e as suas consequências sociais virulentas dificilmente resumem-se num punhado de paraísos fiscais, porém é uma inquietação católica definidora em grande parte dos países em desenvolvimento, isto é: os líderes de uma parte do catolicismo no mundo podem rapidamente ter implicações para os demais.
Scicluna emergiu como um católico importante em outros frontes, entre eles no uso de sus conhecimentos em Direito Canônico para defender uma postura amplamente positiva a respeito do documento polêmico de Francisco sobre a família, “Amoris Laetitia”, e sua abertura cautelosa à Comunhão aos fiéis divorciados e que voltaram a se casar no civil.
Talvez o choque e a indignação do momento presente, junto com a liderança moral de Scicluna, possam, hoje, fazer com que a Igreja em Malta inspire e sustente uma campanha duradoura para injetar uma maior transparência e responsabilização nos assuntos do país.
Se assim for, ela poderá servir como um modelo para o ativismo católico em todo o mundo, provando, mais uma vez, que se o tamanho importa, dificilmente ele é a única coisa a se considerar.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Líderes católicos de Malta poderão liderar as reformas no país após morte de jornalista? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU