02 Outubro 2017
Novos trabalhos acadêmicos lançam dúvidas sobre alcance das transformações sociais durante os anos petistas. Dados recentes sugerem que a desigualdade no Brasil é ainda maior do que se imaginava. Diferenças metodológicas explicam os resultados divergentes dos estudos e apontam a necessidade de mais pesquisas.
A reportagem é de Ricardo Balthazar, publicada por Folha de S. Paulo, 01-01-2017.
Em março do ano passado, quando a Polícia Federal levou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para depor sobre suas relações com empreiteiras investigadas pela Operação Lava Jato, o delegado que o interrogou quis saber como eram definidos os temas das palestras que ele começou a fazer para as construtoras no exterior após deixar o poder.
"No meu caso, e é isso que me dá orgulho, o que mais as pessoas queriam saber é qual foi o milagre que aconteceu no Brasil", disse o petista. "Porque as pessoas viram no mundo pela primeira vez o pessoal do degrau de baixo subir um degrau na vida e fortalecer aquilo que eu dizia. Pobre não é problema. Pobre é solução."
Em seguida, o ex-presidente explicou as vantagens da transferência de recursos para os mais carentes. "Empresta um bilhão para um rico, ele vai abrir uma conta para fazer especulação", afirmou. "Empreste R$ 50 para um pobre que ele vai comprar pão, ele vai comprar um chinelo, ele vai comprar uma coisa que vai fazer o mercado funcionar no dia seguinte."
Para Lula, a redução da pobreza e a queda da desigualdade foram as principais realizações de seu governo e formam a essência do seu legado. Elas são também uma explicação para o forte apoio popular que o líder petista ainda encontra no Nordeste, além de um escudo que ele usa para se defender das acusações que enfrenta na Justiça e garantir um lugar na eleição presidencial do próximo ano.
Um número crescente de estudos acadêmicos, porém, tem lançado dúvidas sobre o alcance das transformações ocorridas no Brasil nos últimos anos. A onda revisionista ameaça enfraquecer o discurso eleitoral petista e abre caminho para rediscutir as estratégias adotadas até aqui para reduzir a pobreza e diminuir o fosso que separa ricos e pobres no país.
A contribuição mais recente para esse debate é o trabalho publicado no início de setembro pelo irlandês Marc Morgan. Estudante de doutorado da Escola de Economia de Paris, ele tem como orientador o economista francês Thomas Piketty, autor de "O Capital no Século 21", vasto painel sobre a evolução da desigualdade no mundo que se tornou sucesso de vendas há três anos.
Em busca de um retrato mais completo da situação no Brasil do que o exibido por levantamentos tradicionais, Morgan construiu uma nova base de dados sobre a renda nacional, juntando informações de pesquisas do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) com outras extraídas pela Receita Federal das declarações do Imposto de Renda.
Uma análise restrita aos dados colhidos pelo IBGE com a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) –o levantamento mais abrangente disponível sobre as condições de vida dos brasileiros– mostra que a fatia da renda nacional apropriada pelos 10% mais ricos encolheu de 46% para 41% nos últimos anos, enquanto a dos 50% mais pobres cresceu de 14% para 18% e o pedaço da classe média passou de 40% para 41%.
Mas os números de Morgan sugerem que a desigualdade no Brasil é muito maior do que se imaginava, com enorme concentração de renda no topo da pirâmide social. O grupo que representa os 10% mais ricos da população fica com mais da metade da renda nacional e viu sua fatia aumentar de 54% para 55% de 2001 a 2015, diz o estudo.
Os dados de Morgan indicam que o pedaço da renda apropriado pelos 50% mais pobres também cresceu nos últimos anos, indo de 11% para 12% do total. Um grupo que representa 40% da população ficou espremido no meio e viu sua fatia da renda encolher de 34% para 32%, segundo seus cálculos.
Morgan reconhece que a desigualdade no mercado de trabalho diminuiu. Mas não é possível extrair dos seus números conclusões seguras sobre a evolução do quadro geral, porque as variações relativas no período analisado foram pequenas e a renda aumentou nos dois extremos da distribuição. Mesmo assim, o contraste com o diagnóstico apresentado por estudos anteriores é enorme.
"Perdemos a segurança que tínhamos para analisar o que está acontecendo com a distribuição da renda no Brasil", diz o economista Marcelo Medeiros, pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e um dos primeiros a usar informações do Imposto de Renda para analisar a desigualdade no país. "Temos que lidar com um problema novo, a concentração extrema de capital no topo."
A distância entre os números da Pnad e as conclusões de Morgan é explicada pelas diferenças metodológicas. Ao incorporar à sua base de dados informações da Receita e outras estatísticas do IBGE, o economista irlandês contabilizou rendas que pesquisas domiciliares como a Pnad não conseguem captar. Como resultado, a fatia dos grupos mais ricos da população ficou maior.
O discípulo de Piketty foi mais longe do que autores de outros estudos que adotaram metodologia semelhante. Medeiros e outro pesquisador do Ipea, Pedro Ferreira de Souza, publicaram nos últimos anos vários trabalhos com resultados na mesma direção. Em sua tese de doutorado, apresentada no ano passado ao Departamento de Sociologia da UnB (Universidade de Brasília), Souza calculou a fração da renda apropriada pelos brasileiros mais ricos desde 1926 e encontrou níveis de concentração semelhantes.
O economista irlandês, no entanto, incorporou dados usados no cálculo do PIB (Produto Interno Bruto) e outros que não haviam sido considerados por levantamentos anteriores, num esforço para corrigir falhas que prejudicam estudos sobre renda e desigualdade exclusivamente baseados em pesquisas domiciliares.
Se duas pessoas declaram a mesma renda aos entrevistadores do IBGE, não há diferença entre elas para a Pnad. Contudo, elas não podem ser tratadas como iguais se uma vive em casa própria e a outra paga aluguel para morar. A solução adotada por Morgan e outros pesquisadores é atribuir ao proprietário uma renda extra, equivalente ao valor da locação que ele não precisa desembolsar.
Outras escolhas do economista são controversas, na avaliação de especialistas. Lucros retidos pelas empresas e não distribuídos a seus acionistas, por exemplo, foram tratados por Morgan como renda e somados aos rendimentos recebidos por essas pessoas de outras fontes, como salários, juros e aluguéis.
Ocorre que muitos acionistas não têm controle sobre a distribuição dos lucros de suas empresas, especialmente em grandes corporações, e esse dinheiro em geral não fica disponível para que eles o usem quando quiserem.
Morgan argumenta que o procedimento permite enxergar com mais clareza a distribuição dos recursos econômicos entre os vários grupos da sociedade. Segundo seus cálculos, os lucros retidos pelas empresas representam 6% da renda nacional e cresceram 231% de 2000 a 2015. No mesmo período, o total de salários pagos pelos empregadores cresceu 74%, e os lucros distribuídos aos acionistas das empresas na forma de dividendos aumentaram 18%, diz Morgan.
Os motivos pelos quais pesquisas domiciliares como a Pnad são insuficientes para capturar a renda dos ricos são conhecidos pelos especialistas há muito tempo. Pesquisadores do IBGE dificilmente conseguem entrar nos condomínios em que os ricos moram. Os que são entrevistados em geral escondem informações, em vez de oferecer um retrato completo de suas finanças pessoais.
Problemas desse tipo, porém, também ocorrem com os mais pobres. Muitos não se lembram de rendimentos eventuais como o abono de férias, o seguro desemprego e a ajuda de familiares. Trabalhadores sem registro em carteira nem sempre informam a renda com precisão. A produção que pequenos agricultores usam para consumo próprio não é contabilizada como renda pela Pnad, assim como a alimentação oferecida pelos patrões a empregados domésticos.
"Boa parte da renda dos mais pobres é eventual e não aparece nas pesquisas", diz Sergio Firpo, professor do Insper. "Esse problema diminuiu com a formalização do mercado de trabalho nos últimos anos, mas pode estar voltando agora, porque a recessão empurrou muita gente de volta para a informalidade."
Em 2007, num trabalho minucioso produzido pelo Ipea, os economistas Ricardo Paes de Barros, Samir Cury e Gabriel Ulyssea compararam dados da Pnad com outras estatísticas produzidas pelo IBGE e concluíram que o grau de subestimação da renda nas pesquisas do instituto é maior entre os 10% mais pobres do que nos grupos em que se concentram os mais ricos.
As declarações do Imposto de Renda ajudam a preencher muitas lacunas, mas também apresentam problemas. Rodolfo Hoffmann, da USP (Universidade de São Paulo), observa que os rendimentos de aplicações financeiras informados pelos contribuintes incluem juros e correção monetária. Ou seja, parte do que é computado como renda é apenas reposição da inflação –uma "ilusão monetária", como ele diz.
Isso não significa que as conclusões de Morgan, Medeiros e outros economistas que incorporaram os dados da Receita estejam erradas. Mesmo pesquisadores que veem com maior ceticismo os novos estudos reconhecem que eles oferecem contribuições relevantes. As ressalvas, contudo, indicam que é preciso analisar com cuidado os dados antes de tirar conclusões.
No estudo para o Ipea em 2007, Paes de Barros e seus colegas fizeram vários testes para examinar o efeito que ajustes estatísticos teriam na medição da desigualdade. A conclusão foi que o impacto seria praticamente neutro, mesmo se várias rendas não declaradas por pobres e ricos fossem incorporadas aos cálculos.
De todo modo, os novos estudos não só confirmam que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo –o que pesquisas anteriores já indicavam–, mas também mostram que o grau de concentração de renda no andar de cima é maior do que em nações mais desenvolvidas, nas quais o poder econômico das elites também suscita preocupação.
Segundo os cálculos do discípulo de Piketty, o grupo correspondente ao estrato mais rico da população, representado por apenas 1% dos brasileiros, fica com 28% da renda nacional. Grupos equivalentes se apropriam de 20% da renda nos Estados Unidos e 11% na França. No Brasil, a renda média anual dos membros desse clube alcança valores equivalentes a R$ 1 milhão, diz Morgan. Na França, ela é inferior a R$ 925 mil.
O trabalho do economista irlandês, no entanto, não ajuda a entender como os ricos ficaram tão ricos no Brasil. Seriam necessários novos estudos para saber se essa riqueza foi acumulada com heranças, aplicações financeiras ou investimentos nos setores mais dinâmicos da economia –para ficar em apenas três hipóteses– e qual a contribuição de cada um desses fatores.
Não é tarefa simples. Um estudo recente que examinou a evolução da desigualdade no mercado de trabalho de 1995 a 2012 põe em xeque até algumas das explicações mais comuns para as melhorias observadas nos últimos anos, como o aumento da escolaridade da força de trabalho e a política de valorização do salário mínimo.
Produzido a seis mãos pelos economistas Francisco Ferreira, do Banco Mundial, Sergio Firpo, do Insper, e Julián Messina, do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), o estudo afirma que a contribuição da educação foi neutra. Com mais gente de nível médio e superior no mercado, a diferença salarial entre trabalhadores mais e menos qualificados de fato diminuiu. Mas o aumento dos níveis de escolaridade não foi homogêneo na força de trabalho, o que gerou efeito contrário, segundo eles.
O trio também concluiu que o impacto do aumento do salário mínimo deveria ser reconsiderado. Seus cálculos sugerem que ele contribuiu para reduzir a desigualdade em anos mais recentes, quando a economia cresceu aceleradamente e a formalização do mercado de trabalho aumentou, mas não em períodos de baixo crescimento, quando muitas empresas teriam preferido contratar sem registro em carteira e pagar menos.
Segundo o estudo, o fator que mais contribuiu para a queda da desigualdade da renda do trabalho nos últimos anos foi um fenômeno que os economistas identificaram ao analisar informações sobre idade e experiência dos trabalhadores ocupados. A experiência parece contar cada vez menos para a remuneração, o que tende a favorecer jovens recém-chegados ao mercado de trabalho, reduzindo a distância entre sua renda e a dos mais velhos.
"É uma questão que ainda precisamos estudar melhor", diz Francisco Ferreira. "É possível que isso esteja relacionado com o envelhecimento da população e a capacidade da força de trabalho de se adaptar a mudanças tecnológicas."
Também contribuíram para diminuir a desigualdade no mercado de trabalho nos últimos anos, segundo o estudo, reduções significativas observadas nas diferenças existentes nos rendimentos obtidos por homens e mulheres, brancos e negros, trabalhadores urbanos e rurais, com registro formal e sem carteira assinada.
Os novos estudos indicam que é um equívoco associar a evolução da desigualdade em determinado período a políticas do governo da época. "A qualidade da educação da maioria das pessoas que hoje estão no mercado de trabalho é resultado de políticas adotadas há várias décadas", observa Medeiros. "A maior parte dos investimentos nessa área foi feita por prefeitos e governadores, e não pelo governo federal."
Ao destacar a concentração de riqueza no topo da escala social, os estudos propõem também novas questões. Alguns pesquisadores temem consequências políticas, como o risco de captura do governo pelos interesses dos mais ricos. Outros se preocupam com efeitos econômicos, como a redução dos incentivos que as pessoas têm para empreender e explorar oportunidades de negócio.
Piketty e seus seguidores defendem mudanças que tornem os sistemas tributários dos países mais justos e eficientes, com aumento dos impostos cobrados sobre a renda e o patrimônio dos mais ricos. Outros especialistas, como o economista Ricardo Paes de Barros, temem que essa discussão tire o foco da necessidade de aperfeiçoar políticas sociais e os gastos públicos em geral.
Souza, colega de Medeiros no Ipea, afirma: "É evidente que o combate à pobreza é importante, mas, se não queremos um país tão desigual, não tem como fazer isso sem tratar da concentração de renda no topo da sociedade".
Num trabalho recente em que usou dados da Pnad de 2015, Rodolfo Hoffmann calculou que o nível de desigualdade da renda no Brasil cairia 23% se todos pagassem Imposto de Renda de acordo com as alíquotas em vigor, sem deduções, e todo o dinheiro arrecadado fosse transferido para os pobres. Em outro exercício, a queda seria de 27% se fosse criada uma alíquota de 40% de IR para rendas superiores a R$ 7.000 mensais.
Discussões sobre impostos são árduas no mundo inteiro, mas ainda mais em países como o Brasil, onde a carga tributária representa mais de um terço do PIB e já é bastante elevada para padrões internacionais.
"A obsessão com a extrema riqueza não pode nos deixar esquecer da pobreza, porque é isso que precisamos corrigir com as políticas públicas", diz Ferreira. "Talvez os recursos do governo aumentem se os ricos forem mais tributados, mas o problema será sempre como usar esse dinheiro."
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Desigualdade no Brasil é maior do que se pensava, apontam novos estudos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU