29 Agosto 2017
Vou começar com uma história da qual eu não tenho nenhuma razão para duvidar. Durante uma passagem por Assis, em 1962, Pier Paolo Pasolini abriu o Novo Testamento que estava em seu quarto de hotel e leu o Evangelho de Mateus do começo ao fim. Foi uma revelação, e não necessariamente de tipo religioso. Decidiu que queria recontar o Evangelho, seguindo fielmente o evangelista, mas com seus próprios meios artísticos. Pediu o patrocínio da Pro Civitate Christiana, uma organização que financia a cultura católica. Pro Civitate concedeu o financiamento e organizou uma viagem de reconhecimento para a Palestina. A relação com a Pro Civitate é ainda mais surpreendente, pois pouco antes Pasolini havia filmado o curta-metragem La Ricotta, uma obra de sátira feroz que abordava a distância entre Jesus e o cristianismo institucional. La ricotta foi denunciado (mais pelas autoridades civis do que pela Igreja) como um ataque à religião e foi feito todo o possível para evitar a sua distribuição.
A reportagem é de de John Maxwell Coetzee, publicada por Corriere della Sera, 27-08-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
No caso do Evangelho segundo Mateus, Pasolini comprometeu-se a trabalhar com a Pro Civitate no espírito da encíclica Pacem in Terris de João XXIII. O filme foi lançado como planejado em 1964 e recebeu o seguinte comentário do Departamento Católico Internacional do Cinema: "O autor - sem renunciar à própria ideologia - traduziu fielmente, com simplicidade e densidade humana, às vezes muito comovente, a mensagem social do Evangelho - em especial, o amor pelos pobres e oprimidos - respeitando suficientemente a dimensão divina de Cristo. Pela simplicidade de seu estilo e graças à humildade com que o diretor apresenta os personagens, esta obra é muito superior a outros filmes comerciais anteriores sobre a vida de Cristo". Tanto o público como a Igreja receberam muito bem o filme.
O Jesus do Evangelho é irredutivelmente alinhado com os pobres e os fracos, com os esquecidos da sociedade. É protagonizado por Enrique Irazoqui, um jovem espanhol, dublado por um ator italiano. A interpretação de Irazoqui é magistral, mas o seu Jesus - uma mistura de vulnerabilidade feminina, mal contida raiva e rigor desumano - certamente não é um Jesus para crianças de primário.
O Jesus de Pasolini é um pregador carismático; mas também é um ser divino? Um Deus que assumiu temporariamente forma humana? Pasolini conseguiu contornar a questão redefinindo o divino como super-humano, "Eu não acredito que Cristo seja o filho de Deus, porque não sou um crente. (...) Mas acredito que Cristo seja divino: isto é, eu acredito que nele a humanidade é tão elevada, rigorosa, ideal, a ponto de ultrapassar os termos comuns da humanidade".
Ele também afirmou (para mim, fato bem relevante): "Eu não estou interessado em desmistificar: é uma moda pequeno-burguesa que odeio. Quero reconsagrar as coisas o máximo possíveis, quero restabelecer o mito". O Evangelho não é uma tentativa de representar o Jesus da história, independente do que isso signifique, mas uma tentativa de habitar novamente o Jesus mítico, Jesus, assim como é percebido pela alma e pela mente mítica, pré-moderna.
O Evangelho não foi filmado na Palestina, conforme previsto pelo projeto inicial. A razão alegada por Pasolini foi que a paisagem palestina parecia conter muitos traços visuais dos projetos israelenses de modernização. A Palestina dos tempos de Jesus, de fato, havia sido apagada. Motivo pelo qual decidiu transferir o filme para a Itália. "Ao mundo pastoral agrícola feudal dos judeus", ele escreve, "eu substituí em bloco o mundo análogo do Sul da Itália (com suas paisagens, dos humildes e dos poderosos) ". A palavra chave aqui é humilde. Na Palestina, ele esperava encontrar a grandeza arcaica dos sítios famosos - Nazaré, o Mar da Galileia, Belém, o Getsêmani, a Via Dolorosa – de tal forma esses nomes estavam imbuídos de significado religioso. Mas a sua impressão imediata foi a de sua "extrema pequenez, pobreza, humildade".
E no Sul de Itália, onde ele decidiu recontar o Evangelho - e este é um ponto importante – aos seus olhos não era apenas a melhor aproximação ao provável aspecto da Palestina de dois mil anos atrás. Da mesma maneira, as fisionomias arcaicas encontradas na Calábria não eram apenas a correspondência fisionômica dos pobres seguidores de Cristo. A Calábria era pobre e humilde como a Terra Santa, porque era uma faixa de Terceiro Mundo no território de uma nação do Primeiro Mundo, um Sul do mundo oprimido e explorado pelo norte capitalista. E, nos anos 1960, a sua própria cultura arcaica estava se esgotando, asfixiada pela modernidade capitalista. Como observa Sam Rohdie, "a paixão social reformista e a raiva do Cristo de Pasolini vinham de uma indignação nos confrontos do presente. Cristo, como Pasolini, era um antimoderno. Era o camponês, filho obediente de João XXIII". João XXIII, que por sua vez representava uma regressão ao passado arcaico.
A dialética entre a Palestina e o Sul da Itália não para por aí. O Sul do presente (1964) é o que era Palestina de então. E, por uma lógica histórica inevitável, tornar-se-á o que a Palestina era naquele momento. O Sul de 1964 ainda está ligado ao sagrado que o mundo moderno apagou da Palestina, mas o sagrado por sua vez, também será apagado no Sul. Resulta o tom orgulhosamente elegíaco que domina o Evangelho segundo Mateus: para salvar o mundo é necessário salvar o passado, mas o passado está se acabando. No final daquela década Pasolini viria a se desesperar frente ao espetáculo do passado que estava desaparecendo no mundo todo sob os golpes do consumismo capitalista.
Não seria exagero afirmar que através do cinema Pasolini transforma aquelas terras da Itália na Terra Santa e aquele mundo rural naquele dos filhos de Deus A comparação é perfeitamente coerente com a cristologia medieval: o Filho de Deus histórico visitou a Palestina, o filho Deus anagógico visita-nos onde quer que estejamos. No cinema, o equivalente anagógico do Espírito Santo é a luz. A luz dá vida ao mundo.
O Evangelho também volta ao cristianismo medieval em outro aspecto. A forma pela na qual o rosto e o corpo humano são apresentados no filme é essencialmente frontal. Sugere a iconografia bizantina ou a primeira arte italiana: Giotto, Piero della Francesca. A paisagem de Basilicata e Matera são o pano de fundo de uma rica textura de rostos, corpos, vestimentas. Em suas Confessioni Tecniche, de 1966, Pasolini descreve a abordagem adotada para o filme. O princípio subjacente era "Sacralidade = frontalidade". As objetivas escolhidas foram aqueles que "conferiam mais peso, exaltavam o tridimensional, o chiaroscuro, traziam sensação de gravidade e muitas vezes a feiura da madeira esburacada, apodrecida para as figuras etc. Especialmente quando usadas com luz “suja” – na contraluz (...) que afunda as órbitas dos olhos, as sombras sob o nariz e ao redor da boca". O uso de uma objetiva de 300 mm permitiu-lhe obter ao mesmo tempo dois efeitos: achatar e, assim, tornar ainda mais pictóricas as figuras, e ao mesmo tempo dar-lhes o imediatismo do documentário de atualidade.
Assim, uma técnica emprestada da reportagem esportiva permitiu-lhe alcançar "uma presença icônica da imagem" (Steimatsky).
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O Cristo antimoderno do sul da Itália - Instituto Humanitas Unisinos - IHU