22 Março 2017
O urbanista Jaime Lerner, conhecido pelas soluções que levaram Curitiba a ser considerada "cidade modelo" na década de 90, defende uma revisão da concepção de cidade pelo poder público e pelos brasileiros que vivem em áreas urbanas.
Para ele, o encantamento dos brasileiros com cidades no exterior se dá por soluções que nem sempre são bem-vindas quando aplicadas no Brasil, como a ênfase no transporte público e na bicicleta como meio de transporte e a convivência de populações de diferentes perfis socioeconômicos nos mesmos bairros.
A entrevista é de Néli Pereira, publicada por BBC Brasil, 19-03-2017.
"Ele (brasileiro) fica encantado, mas não reproduz as soluções aqui. Quando chega de volta ao Brasil, volta a querer separar, dar prioridade ao automóvel, volta a se entregar a soluções que não vão fundo no problema", afirma o ex-prefeito de Curitiba (1971-1974, 1979-1983 e 1989-1992) e ex-governador do Paraná (1995-2002).
Lerner defende ações rápidas e pontuais para resolver os problemas das cidades - classificadas por ele como "acupuntura urbana" - e que demandam, diz ele. coragem e iniciativa das autoridades.
Eis a entrevista.
Curitiba já foi considerada uma cidade-modelo, a mais verde do planeta. Olhando em retrospecto, o que não foi feito para que esses reconhecimentos fossem mantidos?
O que acontecia em Curitiba era um compromisso de inovação constante - no transporte público, meio ambiente, todas as áreas. E quando se para de inovar, as coisas decaem um pouco. Mas não é grave, pode ser retomado - a qualidade de vida que existia aqui pode ser retomada.
Para isso, o que deve ser feito? Para muita gente, as cidades não têm mais solução.
Nem sempre a inovação é tecnológica. O que falta é a inovação na concepção das cidades. Existe hoje uma moda de falar em cidades inteligentes, smart cities, cidades competitivas e outras coisas mais. Isso muitas vezes é só "gadget", não é isso que importa. Atualmente os três grandes problemas da cidades ainda são os mesmos: mobilidade, sustentabilidade e a coexistência.
Quando se analisa mobilidade, você vê o mundo inteiro tentando soluções com base em tecnologia e performance, ou seja: carros sem motoristas - os driveless cars -, os carros inteligentes, e se esquecem de que o carro continua ocupando o mesmo espaço na cidade. E isso é grave: tecnologia e performance não diminuíram a dependência do automóvel.
O problema de mobilidade é uma questão de concepção da cidade. A cidade tem que ser uma estrutura de vida, trabalho, lazer, mobilidade, tudo junto. Toda vez que você tenta separar as pessoas - morando em um lugar, trabalhando em outro, forçando as pessoas a deslocamentos demorados e difíceis, as coisas não acontecem bem. Quando se separa a população por renda, idade, religião - tudo isso não contribui para a qualidade de vida da cidade. Precisamos trabalhar mais na concepção.
Quando viajam, os brasileiros elogiam as cidades estrangeiras por iniciativas que, quando propostas aqui, encontram resistência. Por que isso acontece?
O brasileiro às vezes visita uma cidade europeia e fica encantado, mas ele vê isso que mencionei: a mistura de renda, de funções - tudo isso que é importante na vida de uma cidade. Ele fica encantado, mas não reproduz as soluções aqui. Quando ele chega aqui, volta a querer separar, a dar prioridade ao automóvel, a se entregar a soluções que não vão fundo no problema.
Por outro lado, há o excesso de burocracia que, em geral, é uma rotina que aqueles que não têm conhecimento procuram forçar, e que acaba com a criatividade. Essa burocracia serve para aqueles que, em vez de fazer, criam normas à procura de um protagonismo sem conhecimento. Isso também prejudica muito as soluções nas cidades no Brasil.
E outra coisa: como os governos não fazem, então toda vez que uma vizinhança resolve fazer algo num parque, ajuda uma praça ou cria uma solução por iniciativa que parte da própria comunidade, as autoridades acham que estão descobrindo o mundo.
A gente não pode se afastar da boa concepção da cidade, do comprometimento com a inovação e principalmente com a vida das pessoas, com o meio ambiente. Tudo isso vem junto com a cidade, para que ela realmente seja uma resposta de qualidade de vida, de futuro, de oportunidades.
O Brasil teria todas as condições para dar grandes exemplos para o mundo. No entanto, nunca tivemos tão perto - e nem tão longe.
Mas dá para atribuir isso somente à falta de vontade política?
Na verdade, é o medo de começar. É querer ter todas as respostas e aprovação de todos que leva a decisões políticas equivocadas. Isso é comum hoje no Brasil. O Brasil poderia ser um grande exemplo na área de mobilidade, mas não é porque seguimos complicando o problema, procurando implantar aquilo que em outros países já é obsoleto. Esse movimento de copiar o obsoleto faz você comprá-lo como última novidade.
O metrô seria obsoleto, na sua avaliação?
O metrô é obsoleto porque é demorado, caro e não é a única resposta de um bom sistema de mobilidade. A boa resposta tem que estar na adoção de sistemas integrados onde se tenha algumas cidades com duas ou três linhas de metrô, mas com grande parte do deslocamento na superfície.
Em São Paulo, mais de 80% das pessoas se deslocam na superfície e poderíamos ter um sistema de qualidade na superfície, poderíamos "metronizar" o ônibus. Com uma ou duas linhas de metrô, se for necessário, com um bom sistema de superfície, com bicicleta e carro compartilhados. A integração de todos esses modais é que leva a um bom sistema de mobilidade.
Em São Paulo, o incentivo do uso da bicicleta promovido pela gestão anterior encontrou muita resistência, assim como outras medidas. Que avaliação o senhor faz do conceito de cidade do ex-prefeito Fernando Haddad (PT) e da atual gestão de João Dória (PSDB)?
Eu considero ambos altamente qualificados. O problema no caso do Haddad foi a equipe dele. O Dória está procurando fazer a cidade a agir com a iniciativa privada e com a população. O Haddad teve boas iniciativas, mas muito pouco foi efetivamente realizado, como as propostas de uso do solo. Coisas que não acontecem não têm efetividade.
O mais importante de tudo é coragem de começar. A gente vê hoje que muitas cidades querem ter todas as respostas antes e ao querer ter essas respostas não começam nunca. As coisas que aconteceram em Curitiba, assim como em outras cidades, se deram porque inovar é começar. O importante é começar.
Mas há uma busca por unanimidade, e as cidades são diversas, habitadas por pessoas muito diferentes. Como conciliar os interesses?
Se você quer fazer acontecer uma coisa, você tem que propor uma ideia, um projeto, um cenário, em que todos - ou a grande maioria - entendam como desejado. Se entenderem como desejado, irão ajudar a fazer acontecer. Por isso que o que falta nas cidades é proposta, ideia. Às vezes a ideia nasce dos responsáveis pela política, às vezes nasce dos técnicos, e às vezes da própria comunidade. Não importa. O importante é começar a fazer algo e ter esse bate-e-volta necessário.
O planejamento é uma trajetória, onde você começa, mas tem que deixar espaço para que a população corrija quando não estiver no caminho certo. São coisas que podem ser constantemente corrigidas - o que não pode é a omissão de tentar.
Ouvi coisas de arrepiar no Brasil: metrôs em cidades para resolver o problema da Copa do Mundo. A Copa do Mundo foi um desastre, não só para o futebol como para as cidades que seguiram essas diretrizes de mobilidade, de fazer uma linha de metrô em Teresina, ou ligar um aeroporto a um estádio de futebol - soluções caras e que não atendiam a população. Estamos vivendo uma época nova, quando as coisas na Olimpíada caminharam bem melhor.
Sou a favor de soluções rápidas, o que chamo de "acupuntura urbana". Acupuntura é uma ação pontual, uma agulhada que consegue conferir energia para a cura. A mesma coisa em relação à cidade - são algumas intervenções pontuais necessárias e que devem ser feitas rapidamente para ajudar no processo de planejamento.
E isso se daria em que áreas, que tipo de "acupuntura" seria essa?
Em todas as áreas - mobilidade, meio ambiente, e por aí vai. Temos feito muitas cidades no mundo inteiro, desde projetos aqui no Brasil, como em Porto Alegre, as propostas para a região metropolitana do Rio de Janeiro, algumas cidades em Angola, outros projetos no México. É importante que as coisas aconteçam.
Para te dar uma ideia, aqui nós usamos acupuntura também para testar a primeira linha do sistema de transporte BRT e foi a primeira vez no mundo. Hoje em dia nós temos no mundo inteiro 250 cidades com o BRT implantado e 154 milhões de passageiros por dia - e isso começou em Curitiba.
Atualmente há no Brasil alguma cidade com uma solução que seja um modelo, e que possa ser reproduzida, assim como Curitiba foi há alguns anos?
No Brasil, algumas coisas aconteceram bem no Rio de Janeiro, porque houve coragem. Além de Curitiba, gostaria de citar o exemplo de Medellín, na Colômbia, e também de Bogotá, a Cidade do México, Seul, Istambul e 250 cidades na China, Estados Unidos e Europa que adotaram o BRT, que é um caminho mais rápido para se melhorar a qualidade do transporte, e com gasto muito mais baixo. Então você pode fazer um sistema de boa qualidade, em menos de três anos, a um custo de 20 a 50 vezes mais barato que o metrô.
Em Curitiba, que parte teve a educação para que seu conceito de cidade fosse considerado o desejado pela maioria? Houve campanhas de reciclagem e personagens criados pela prefeitura para incentivar crianças a mudar o comportamento sobre o meio ambiente, por exemplo.
Sempre tive atenção muito grande em ensinar as cidades para as crianças - porque se elas entenderem as cidades, irão respeitar mais. Mas tem que ter conceito. A concepção é o mais importante e tive a sorte de ter uma equipe de jovens profissionais - arquitetos, técnicos, engenheiros ,- gente que não tinha medo de começar uma ideia. E surgiram tantas ideias - como a da reciclagem do lixo, que foi um sucesso.
Hoje tenho certeza ao dizer que a resposta está na cidade quando se fala em sustentabilidade. Não adianta a gente criar grandes acordos entre vários países do mundo, que têm políticas e maneiras de usar a energia muito distintas - não dá para tentar igualar problemas da Índia com os dos Estados Unidos.
Mas na cidade podemos resolver. Se todos nas cidades usassem menos o automóvel, separassem o lixo, e morassem mais perto do trabalho, o problema de sustentabilidade e de qualidade de vida já estaria resolvido. É na cidade que podemos dar uma resposta mais rápida e melhor, conscientizando todas as pessoas.
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Brasileiro fica encantado com cidades europeias, mas não reproduz soluções aqui', diz Lerner - Instituto Humanitas Unisinos - IHU