10 Março 2017
O sociólogo italiano Domenico de Masi afirma que o estilo de vida atual - classificado por ele como estressante, competitivo e consumista - está deixando o mundo cada vez mais deprimido e que o Brasil pode ter um modelo alternativo, capaz de oferecer uma opção mais solidária e de reflexão.
Em entrevista à BBC Brasil, 09-03-2017, o autor de O Ócio Criativo é otimista em outros aspectos da vida brasileira: acredita que a trajetória de miscigenação pode representar um exemplo à intolerância e confia na cultura pacífica da nossa sociedade. "O Brasil, apesar de deprimido, continua o povo menos infeliz do mundo", disse. "Em geral o Brasil conserva uma visão equilibrada do tempo, onde trabalho e lazer têm igual importância. Este é um sinal positivo de sabedoria".
Embora reforce os aspectos positivos, De Masi critica o que classifica como uma"infantilidade" do povo brasileiro quando muda de opinião a respeito de algumas personalidades políticas como o ex-presidente Lula e o atual presidente, Michel Temer. Ele ainda compara a Operação Lava Jato à semelhante Mãos Limpas, que ocorreu na Itália na década de 1990, e diz que "a tempestade judiciária" pode ter um importante efeito pedagógico no país.
Eis a entrevista.
Como foi a mega-operação italiana que teria inspirado a 'Lava Jato'?
Uma pesquisa recente da Organização Mundial da Saúde mostra que o Brasil é o país mais deprimido e ansioso da América Latina. Apesar disso, há um estereótipo do povo alegre. O que poderia explicar tanta depressão? Quando eu vinha ao Brasil 30 anos atrás, saía de uma Itália eufórica e chegava a um Brasil deprimido. Quando eu vinha ao Brasil 15 anos atrás, saía de uma Itália deprimida e chegava a um Brasil eufórico. Hoje saio de uma Itália deprimida e chego a um Brasil deprimido.
Hoje em dia o mundo todo está deprimido, como tento demonstrar no livro O Futuro Chegou, onde procuro encontrar as razões para isso. Quanto mais o mundo adota um modelo americano, feito de competitividade, de estresse e de consumismo, mais se deprime. Neste livro, descrevo quinze modelos de vida antigos, da Grécia à Idade Média, e modernos como sociedade industrial e pós-industrial. Comparando estes quinze modelos é possível entender que o Brasil, apesar de deprimido, continua o povo menos infeliz do mundo.
No mesmo livro o senhor fala, que o Brasil "pode se dissolver na confusão ou gerar o modelo inédito de que o mundo precisa". O que está acontecendo - estamos dissolvendo ou gerando esse modelo?
Não sei dizer. Depende dos intelectuais brasileiros. Ao longo da história, os modos de vida para uma nova sociedade não foram elaborados por políticos, ou por sindicatos, nem mesmo por empreendedores, ou executivos. Eles foram elaborados por intelectuais, artistas e humanistas. O livro Trópicos Utópicos, do economista Eduardo Giannetti, representa uma excelente contribuição neste sentido.
Mas que modelo seria esse que o Brasil poderia gerar?
Um modelo menos focado na concorrência e na velocidade e mais na solidariedade e na reflexão. Um modelo menos voltado à satisfação das necessidades alienadas - riqueza e poder - e mais voltado à satisfação das necessidades radicais como introspecção, amizade, amor, jogo, beleza e comunhão.
Nesse aspecto, somos um país conhecido pela diversidade cultural e sincretismo religioso, mas com registros de vários casos recentes e violentos de intolerância. Há uma mudança ou sempre houve esses outros aspectos?
No mundo todo existem espaços de intolerância, de fechamento e de agressividade. Mas me parece que, nestes aspectos, o Brasil seja melhor dos outros países. Por exemplo: a Europa sempre se dilacerou em guerras entre as várias nações que a compõem, assim como os Balcãs e os países asiáticos, os Estados Unidos - que estão em guerra permanente e mundial desde que existem - o mesmo com a Rússia. O Brasil, entretanto, em 500 anos, conduziu apenas uma guerra, contra o Paraguai, e nenhuma guerra contra os outros 10 países vizinhos. Trata-se de uma diferença profunda em favor do Brasil e de sua cultura pacífica.
Mas o Brasil vive uma onda recente de polarização política. Que impacto essa divisão pode ter no médio e longo prazo?
Visto da Europa, o caso do Brasil parece um tanto paradoxal. Ao longo dos oito anos de governo Lula, o carisma do presidente e a passagem de milhões de brasileiros do sub-proletariado ao proletariado, e do proletariado à classe média, deram ao Brasil uma grande admiração internacional. Ao longo do primeiro mandato do governo Dilma, a imagem do Brasil aos olhos do resto mundo continuou muito positiva. Em seguida, logo no começo do segundo mandato, surgiram péssimas noticias sobre o Lula, muitos integrantes dos governos do PT foram acusados de corrupção, Dilma sofreu o impeachment. Lula, que antes era aplaudido por multidões enormes, chegou a ser vaiado ao entrar em restaurantes. Recentemente, chegaram do Brasil mais duas noticias contraditórias: membros do novo governo Temer também estão sendo acusados de corrupção e nas pesquisas pré-eleitorais Lula parece ser mais uma vez o favorito.
A impressão que esta situação gera é de que o povo brasileiro esteja se comportando de maneira infantil, mudando rapidamente de opinião, principalmente influenciado pela mídia de massa. A mídia, por sua parte, amplifica e manipula a luta entre os partidos políticos conduzida por meio de ações judiciais, assim como aconteceu na Itália em 1992 com a Operação Mãos Limpas.
Eu espero que a Operação Lava Jato tenha no Brasil efeitos melhores daqueles que a Operação Mãos Limpas teve na Itália. Espero, portanto, que o Brasil saia desta fase dramática com governantes e empreendedores menos corruptos. Mas, por enquanto, o maior efeito gerado foi uma maior precariedade do proletariado e da classe média.
A Operação Lava Jato está completando três anos neste mês. Como ela se compara à Mãos Limpas e como o senhor avalia o impacto dela até agora e daqui pra frente?
Passaram-se 25 anos desde a Operação Mãos Limpas (1992). Depois daquela operação, tivemos 20 anos de governo Berlusconi - o pior depois do fascismo. Silvio Berlusconi transformou a corrupção em sistema, foi condenado, foi expulso do Senado da República, mas é ainda hoje o líder da direita italiana. Seu grande aliado foi o presidente americano George W. Bush. Eu espero que no Brasil, depois desta tempestade judiciária, não surja um líder de direita, aliado com o novo presidente americano Donald Trump.
Hoje a grande luta política no mundo tem apenas dois grandes protagonistas: o neoliberalismo - que aumenta as distâncias entre ricos e pobres e reduz a classe média, e a democracia social - que diminui a distância entre ricos e pobres e aumenta a classe média. Espero que o Brasil saiba fazer uma escolha democrática. Caso contrário, verá aumentar a pobreza, a violência e a corrupção, submetendo-se a um fascista como Trump.
A Lava jato pode mudar a percepção de corrupção do brasileiro?
Ver alguns milionários e superpoderosos na prisão, reconhecidamente culpados por corrupção escandalosa, representa certamente um evento pedagógico de grande impacto. Esta lição demonstra que, em uma democracia pós-industrial como o Brasil, ao lado dos desonestos existem também homens corajosos e recursos técnicos capazes de vencer a criminalidade. Demonstra que os poderosos não são invulneráveis e que a honestidade paga mais do que a corrupção.
Mas os homens corajosos que conduzem esta guerra contra a corrupção devem ser ajudados pelo consenso explícito e caloroso de toda a parte sã da população. Nesta comunhão de pessoas honestas, um papel determinante cabe à mídia que, com seu poder de comunicação e manipulação, pode apoiar a parte sã do país e ajudá-la a se libertar da opressão dos corruptos.
Aqui no Brasil prevalece uma percepção de que 'o outro' é corrupto. Em geral, não se assume responsabilidade pelas pequenas corrupções do dia a dia. Esse é um traço nosso que pode ser alterado?
Isso corresponde a um mecanismo natural de defesa, onde cada um de nós se acha mais honesto que os outros. É um fenômeno universal, muito perigoso, porque o que envenena a vida de um povo não é apenas a corrupção dos superpoderosos, mas também a pequena corrupção difusa na sociedade toda. O crescimento de um povo depende de sua honestidade difusa em todos os níveis graças à educação recebida nas escolas e ao exemplo das elites intelectuais.
Pensando em "O Ócio Criativo", o senhor já escreveu que o brasileiro aprendeu muito com o índio sobre o ócio, mas há atualmente na nossa sociedade uma espécie de glorificação do "estar ocupado". Por que isso acontece?
O Brasil tem uma grande riqueza de culturas diferentes. Algumas áreas , como o Estado de São Paulo ou a Barra da Tijuca, no Rio, são mais americanizadas e o tempo é vivido segundo os modos industriais: com grande estresse e horas extras no trabalho. Outras áreas, como a Bahia e Recife, estão, ainda hoje, vinculadas a modelos de vida que refletem uma grande influência indígena e africana. Mas em geral o Brasil conserva uma visão equilibrada do tempo, onde trabalho e lazer tem igual importância. Este é um sinal positivo de sabedoria.
Há muita gente "ociosa" no Brasil por causa do desemprego. Como melhor utilizar esse tempo "livre" quando se está deslocado do mercado de trabalho?
A porcentagem de desempregados no Brasil é igual á porcentagem europeia e é menor do que a italiana. Na Itália 40% dos jovens se encontram desempregados. Na Espanha, o desemprego é o dobro do que no Brasil. Daqui a alguns dias, será publicado no Brasil, pela editora Objetiva, meu novo livro Alfabeto da sociedade desorientada. Nele eu defendo a tese de que na atual sociedade pós-industrial o desemprego não é reflexo unicamente da crise financeira e econômica, mas sobretudo da globalização e do progresso tecnológico.
Em qualquer lugar estas duas causas irão aumentar no futuro próximo, com a chegada da inteligência artificial, das nanotecnologias e das impressoras 3D. No momento em que a crise financeira e econômica terminarem, os empreendedores terão mais dinheiro para investir, mas, em vez de empregar novos trabalhadores, comprarão novos robôs.
O brasileiro é conhecido por trabalhar muito, mas tem pouca produtividade. A que se pode atribuir isso?
A pouca produtividade se dá ou por atraso tecnológico, ou por incapacidade de organização.
Num momento em que se fala tanto de fechamento de fronteiras, o Brasil tem uma trajetória de mistura, de miscigenação. De que forma essa trajetória pode ser um ativo importante nesse momento?
A maior riqueza do Brasil é a convivência relativamente pacífica entre dezenas de diferentes etnias, que chegaram ao longo dos séculos e que se formaram a partir do século 16. Diferentemente dos EUA, onde existe ainda um forte apartheid entre as raças, no Brasil as raças se juntaram em uma mistura plena de criatividade e comunhão. Neste aspecto, o Brasil é uma vanguarda no mundo, porque todos os povos do planeta, graças à emigração, à mídia e à internet, irão se misturar tendo o Brasil como exemplo.
No revés da globalização, há um conservadorismo, além da discussão sobre o fechamento de fronteiras. Que avaliação o senhor faz da globalização atualmente?
Fechar as fronteiras é uma tentativa delirante, e destinada a falir, de bloquear homens e átomos. O que hoje não conhece fronteiras é a passagem dos bits. A globalização informática é irreversível e arrasta consigo a globalização das ideias, da economia, da vida.
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'Hoje o mundo todo está deprimido, mas Brasil pode oferecer modelo alternativo', diz Domenico de Masi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU