07 Março 2017
O caminho da luta pela terra, percorrido há décadas no Brasil, por trabalhadores e trabalhadoras rurais sem terra, junto com suas famílias, foi visitado no último sábado (4) por um grupo de advogados, procuradores e juízes ligados à Associação Juízes para a Democracia (AJD). A visita a um acampamento, dois assentamentos e uma cooperativa do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) marcou a retomada das atividades da AJD no Rio Grande do Sul. A entidade pretende organizar ao longo do ano uma série de ações e debates com movimentos sociais que sofrem hoje um processo de criminalização de suas lutas. A ideia é aproximar juízes e outros operadores do Direito de atores e realidades sociais sobre as quais têm que decidir no seu cotidiano.
A reportagem é de Marco Weissheimer, publicada por Sul21, 06-03-2017.
O ponto de partida da atividade de sábado foi um café da manhã na sede da Cooperativa Central dos Assentamentos do Rio Grande do Sul (Coceargs). Representantes da direção estadual do MST receberam os convidados e informaram o roteiro da visita que começou por um acampamento e terminou em um dos assentamentos mais antigos e estruturados do Estado.
Esse tipo de visita é uma prática que já faz parte da história do MST. Ao longo dessa trajetória, explicou Cedenir de Oliveira, da coordenação estadual do movimento no Rio Grande do Sul, o MST sempre procurou estabelecer relações com a sociedade, com os demais movimentos sociais, partidos, igrejas e outras organizações. “A nossa luta é legítima. Nunca escondemos nossos objetivos e nossa forma de luta. Essa visita está dentro dessa política que o MST já executa há muitos anos, convidando pessoas que não conhecem a realidade dos acampamentos e dos assentamentos. Para nós, é um contato muito importante pois envolve pessoas que, no dia-a-dia, irão dialogar, no seu espaço de trabalho e na sua área de influência, expondo o que estão vendo e experimentando aqui”, assinalou Cedenir.
A primeira parada da visita foi no acampamento Unidos pela Terra, localizado no Horto Florestal Carola, da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), situado no município de Charqueadas. A área de 1080 hectares está abandonada há alguns anos desde que a empresa desistiu de utilizar postes de eucalipto em sua rede elétrica. Em 2014, a CEEE e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária assinaram um termo de compromisso por meio do qual o Incra manifestou em interesse em comprar a área para assentar famílias acampadas no Estado. Para tanto, a CEEE precisaria retirar os eucaliptos da área e os tocos de árvores do local. Além disso, deveria retirar embalagens cheias e com resíduos de arseniato de cobre cromatado, produto tóxico utilizado na usina de preservação de madeira.
O termo de compromisso registra o interesse da CEEE em se desfazer da área, uma vez que, conforme a pela própria companhia, não pretende mais utilizá-la para a sua atividade-fim a saber, florestamento de árvores para a fabricação de postes. Em função do interesse manifestado pelo Incra, o assunto foi para a alçada da Justiça Federal.
“Estamos aqui na ocupação desde o dia 14 de novembro de 2016, com cerca de 200 famílias. Ocupamos a área com o intuito de pressionar o Judiciário em função do fato de que já a ocupamos em outro momento, quando foi firmado um termo de compromisso com a CEEE, onde a empresa se comprometeu a desmatar a área e a fazer a recuperação do solo para viabilizar o assentamento. As famílias estão se organizando de forma coletiva e produzindo dentro dos espaços onde não há mato de eucalipto”, disse Aida Teixeira, uma das coordenadoras do acampamento. Ela relatou que a área, utilizada até há alguns anos pela CEEE para beneficiamento de postes, foi abandonada quando a empresa decidiu não utilizar mais postes de eucalipto. “A fazenda foi fechada, os funcionários retirados e só ficou um guarda cuidando do local.
Os acampados mostraram aos visitantes a estrutura e o funcionamento do acampamento. Organizado em núcleos de base, os sem terra têm tarefas específicas a cumprir coordenadas por uma secretaria geral que cuida do dia-a-dia do acampamento. Como boa parte da área está coberta por eucaliptos, os agricultores começaram o cultivo de milho, feijão, aipim e hortaliças em hortas e pequenas lavouras em espaços que não estão tomados por essas árvores. “Não cortamos nenhuma mata nativa”, informou Aida Teixeira. Há cerca de 40 crianças que acompanham seus pais no acampamento estão frequentando escolas da rede municipal de Charqueadas.
A crise econômica voltou a aumentar o número de acampamentos no Rio Grande do Sul, disse Cedenir de Oliveira. Segundo ele, hoje, há cerca de mil famílias em acampamentos localizados em Passo Fundo, Livramento, Candiota, Alegrete, Capela de Santana, Charqueadas e outros municípios. Os assentamentos do MST ajudam a fornecer alimentos para os acampados. Desde outubro, relataram os acampados em Charqueadas, o Incra deixou de fornecer alimentos aos acampamentos. No dia da visita, estava faltando principalmente leite e farinha de trigo.
A escassez de alimentos não impediu, porém, que os acampados oferecessem um almoço aos visitantes. Logo após o meio-dia, panelões com feijão, arroz, batata, aipim, carne ensopada e salada de tomate, cebola e repolho “aterrissaram” em uma grande mesa de madeira para o almoço coletivo que reuniu sem terras, juízes, advogados, procuradores e jornalistas.
Após o almoço, a comitiva seguiu para o Assentamento Lanceiros Negros, instalado há quatro anos também no município de Charqueadas. Ali, os visitantes foram recebidos pela família de Sérgio dos Reis e entraram em contato com a realidade de quem, após anos dormindo em acampamentos na beira de estradas, conquistou a terra e começou a produzir. Filho de assentado na fazenda Annoni, Sérgio contou um pouco da sua história de vida e do sentido da luta que culminou no Assentamento Lanceiros Negros. “Passamos cerca de três anos na beira de estradas, debaixo de lonas, em Sarandi. Essa luta deu resultado e conquistamos a nossa terra. O MST é uma alternativa para quem quer viver da terra no interior, com qualidade de vida e produzindo alimentos sem veneno”, disse Sérgio.
Ainda nesse assentamento, os juízes conheceram a unidade de secagem e armazenamento que foi inaugurada em 2015 pela então presidenta Dilma Rousseff. No local, também está instalado um laboratório que verifica a umidade, a pureza e o tamanho do arroz, requisitos para a exportação do produto. Nos próximos meses, na mesma área, deverá começar a ser construída uma unidade industrial para o beneficiamento, o que permitirá aos assentamentos do MST o domínio de todo o ciclo, da produção à comercialização do arroz orgânico.
Após visitar um jovem assentamento, o grupo foi conhecer uma experiência mais antiga e consolidada, a de Eldorado do Sul, que já tem quase 30 anos de vida. A assentada Maria Inês Riva contou um pouco da sua história de luta pela terra, das dificuldades no início do assentamento e de uma promessa que deu origem ao “melhor pão do mundo”. “Ficamos quase cinco anos vivendo em barracos na beira de estradas na região norte do Estado. Fomos assentados aqui há 26 anos, durante o governo Collares. Enfrentamos muitas dificuldades no início pela falta de recursos e políticas de apoio e também pelo fato de não estarmos acostumados com o tipo de terra daqui. Viemos da região norte, onde o solo é arenoso e profundo. Aqui encontramos um solo raso e alagadiço, o que nos obrigou a aprender outra forma de plantar. Ficamos quase cinco anos sem água potável. Foi a partir do governo Olívio que a situação melhorou com o acesso à luz, água e estradas”, relatou.
Emocionada, Maria Inês contou também a história de uma promessa feita num dia de fome, que acabou dando origem ao “melhor pão do mundo”. “Nós sofremos uma ação de despejo e nosso estoque de alimentos foi todo perdido. Ficamos numa situação de fome mesmo. Foi então que, em um grupo de mulheres, nós nos demos as mãos e fizemos uma promessa: quando a gente conquistasse a terra, iríamos ter o melhor pão do mundo. Qualquer pão que tivéssemos naquele momento seria o melhor pão do mundo. A fome faz a gente lutar com muito mais garra. Após a conquista da terra, nós criamos há 19 anos a cooperativa Pão da Terra para cumprir a promessa que a gente fez de ter o melhor pão do mundo. E ele é o melhor pão do mundo mesmo”, afirmou com um sorriso orgulhoso.
Além de produzir o “melhor pão do mundo” e de abastecer feiras de produtos agroecológicos, os assentamentos do MST na região metropolitana de Porto Alegre também passaram a ser grandes produtores de arroz orgânico. Membro da direção estadual do MST e da coordenação do grupo gestor do arroz agroecológico na Região Metropolitana de Porto Alegre, Emerson Giacomelli recebeu o grupo de juízes, advogados e procuradores para a última etapa da jornada. Giacomelli destacou o desenvolvimento da cultura do arroz orgânico, carro chefe econômico dos assentamentos da região, da produção de hortifrutigranjeiros e das agroindústrias que produzem pães, cucas, biscoitos integrais e orgânicos.
O arroz orgânico, que já se tornou um produto de exportação do MST, não tem apenas uma dimensão econômica, ressaltou. A forma de cultivo desenvolvida pelo movimento tem também uma dimensão política, pois aponta para outro modelo econômico no campo, que não usa agrotóxicos e busca a produção de alimentos saudáveis com geração de emprego e renda. O arroz orgânico é também matéria-prima para alimentar as lutas daqueles que ainda estão acampados. Ao final de sua fala, Giacomelli anunciou dois presentes para os convidados: um quilo de arroz orgânico, simbolizando a luta econômica do movimento, e um boné do MST, simbolizando a luta política. “As duas coisas são inseparáveis”, resumiu.
Para o juiz Roberto Arriada Lorea, um dos resultados da visita foi o despertar de um sentimento, resultante de entrar em contato com uma realidade que não faz parte do dia-a-dia de magistrados. “A gente vem passar um dia aqui, mas essas pessoas estão nesta situação há meses e mesmo anos. Tomar contato com essa realidade é, já por si, uma experiência transformadora que me parece muito importante para o trabalho da magistratura. Nós lidamos muito com o outro e precisamos sair um pouco dos gabinetes e dos autos dos processos e conhecer mais diretamente a realidade dos temas sobre os quais tratamos e decidimos. Essa é uma forma de entrar em contato com a diversidade que nos cerca e ao menos tentar nos colocarmos no lugar do outro”, avaliou Lorea.
“Essa experiência”, acrescentou, “é algo que a gente vai degustando e decantando por alguns dias ou semanas para absorver realmente tudo o que estamos vivenciando neste curto espaço de tempo”. “É curioso, pois se trata de uma realidade tão próxima geograficamente do nosso dia-a-dia, mas ao mesmo tempo nos deparamos com uma realidade social completamente distinta daquela com a qual estamos habituados”, destacou o magistrado.
Juiz sediado em Passo Fundo, Luis Christiano Enger Aires observou que a visita realizada no último sábado representa uma retomada de ações que a Associação Juízes para a Democracia promoveu no Rio Grande do Sul há cerca de dez anos. “Por meio dessas ações, começamos a questionar algumas realidades que, para nós do Direito, sempre ficavam obscurecidas, nos limitando a uma análise de processos e leis, sem um maior contato com a realidade social. Naquela época, nós já realizamos algumas visitas a acampamentos do MST. Quando reinstalamos o núcleo da AJD aqui no Rio Grande do Sul, decidimos estabelecer uma pauta de atividades ao longo deste ano, começando com essa visita de reencontro com o MST que é hoje o maior movimento social do país e também um dos principais alvos do processo de criminalização que atinge esses movimentos”.
A partir dessa iniciativa, a AJD quer promover, ao longo do ano, uma série de encontros e debates com movimentos sociais. A próxima atividade deverá ocorrer no mês de maio com um debate sobre a relação entre os movimentos sociais e a democracia. “Um dos nossos objetivos é retirar o véu dessa ideia preconceituosa de que os movimentos sociais agem contra a lei. Na verdade, eles representam uma reivindicação democrática a respeito de direitos que estão prometidos pela Constituição e que precisam ser concretizados”, defendeu Christiano Enger Aires.
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Da lona preta ao ‘melhor pão do mundo’: uma visita aos caminhos da luta pela terra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU