28 Janeiro 2017
As entidades criticam as prisões por pequenos delitos e a panaceia da “guerra às drogas”, em um país que esclarece só 8% dos homicídios.
A reportagem é de Rodrigo Martins, publicada por CartaCapital, 27-01-2017.
Desativada em outubro de 2016 por recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a Cadeia Pública Raimundo Vidal Pessoa, no centro de Manaus, teve de ser reaberta às pressas no início do ano para abrigar cerca de 130 sobreviventes da matança ocorrida no Complexo Prisional Anísio Jobim (Compaj), onde 56 detentos foram brutalmente assassinados durante uma briga entre facções criminosas.
Os planos de transformar a edificação de 109 anos em um museu naufragaram diante do caos carcerário instalado no Amazonas. Com todos os presídios superlotados, não foi possível dar melhor destinação à decrépita casa de detenção. Parte dos transferidos era ligada ao Primeiro Comando da Capital (PCC), organização criminosa gestada nas penitenciárias paulistas, com filiais espalhadas por todos os estados.
Havia, porém, muitos detentos considerados neutros, entre evangélicos e presos provisórios. Um deles estava encarcerado por tentativa de furto de celular, delito que não costuma ser punido com a privação de liberdade, relata o advogado Rafael Custódio, coordenador do programa de justiça da ONG Conectas.
Custódio visitou unidades prisionais do estado logo após o massacre manauara. “Esse jovem aparentava ter menos de 20 anos, aguardava o julgamento ao lado de homicidas ligados a facções”, afirma. “Se ele tivesse sido condenado, não estaria mais preso. Veja a irracionalidade: pelo crime atribuído, ele seria condenado a uma pena em regime aberto. É um caso clássico de antecipação da pena. O juiz sabe que esse indivíduo seria solto, então decreta a prisão preventiva para que ele ‘pague’ pelo que fez”.
Segundo diversos especialistas consultados por CartaCapital, casos como esse não são excepcionais. Ao contrário, parecem estar dentro da norma geral. A sanha punitiva cobra, porém, um preço elevado da sociedade. Com mais de 622 mil detentos, o Brasil possui a quarta maior população carcerária do planeta, atrás apenas dos Estados Unidos, da Rússia e da China.
Desse total 40% são presos provisórios, que ainda não foram julgados. E o sistema prisional acumula um déficit superior a 250 mil vagas, razão pela qual o Estado não consegue exercer controle sobre as superlotadas cadeias brasileiras, reconhecidas mundialmente pelos recorrentes massacres e pelas violações aos direitos humanos.
Diante do cenário, um conjunto de organizações da sociedade civil lançou, na quinta-feira 26, uma Frente Estadual pelo Desencarceramento no Rio de Janeiro. O grupo, integrado por entidades como a ONG Justiça Global, a Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência e o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, rejeita a proposta de abrir novas vagas no sistema.
“O problema de fundo é a política de encarceramento em massa. Não adianta inaugurar mais cadeias”, esclarece Monique Cruz, pesquisadora do núcleo de Violência Institucional e Segurança Pública da Justiça Global.
A frente fluminense pretende contribuir para a elaboração e implementação de um plano de redução da superpopulação carcerária, mas focado na diminuição das prisões temporárias e em penas alternativas para crimes de menor potencial ofensivo. Um espinhoso debate que passa, necessariamente, pela rediscussão da Lei de Drogas de 2006 e do papel do Judiciário na aplicação de medidas cautelares.
“Crimes de menor teor ofensivo têm sido motivo de prisão provisória, a exemplo do furto e receptação. E o perfil dos encarcerados é o mesmo de quem é detido com pequenas quantidades de droga: jovens, negros e pobres”, diz Monique. “Em 14 anos, o número de mulheres presas aumentou 567%, e quase dois terços delas foram condenadas por tráfico”.
Se o encarceramento massivo resolvesse o problema da violência, o Brasil seria um dos países mais seguros do mundo. Em vez disso, é um dos recordistas mundiais em homicídios: 59,6 mil por ano, atesta o Mapa da Violência de 2016. “O mais chocante é que apenas 8% dos assassinatos ocorridos no País são esclarecidos, segundo estimativas do CNJ”, observa Custódio, da Conectas. “Em vez de concentrar os esforços em prevenir, investigar e punir os responsáveis por esses homicídios, enchemos as cadeias com cidadãos que cometeram crimes leves, como tráfico, furto e recepção”.
De acordo com o último relatório do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), a vasta maioria dos presos cumpre pena por crimes contra o patrimônio (46%) e por infringir a Lei de Drogas (28%). Os crimes contra a pessoa, a exemplo do homicídio, respondem por apenas 13% do universo. Como resume o sociólogo Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil prende muito, mas prende mal. “O CNJ poderia instruir os magistrados a priorizar a prisão para crimes mais graves, como homicídio ou estupro”, afirmou, em recente entrevista a CartaCapital.
Não se trata, neste caso, da ausência de previsão legal para a aplicação de penas alternativas em casos de delitos de menor potencial ofensivo. Em 2011, uma nova lei de medidas cautelares regulamentou melhor o uso de tornozeleiras eletrônicas, prisão domiciliar, comparecimento periódico em juízo e proibição de circular em certos horários.
“O problema é que grande parte dos magistrados simplesmente ignora a existência desses dispositivos. Contaminados pela ideologia da prisão, eles não acreditam que as penas alternativas sejam suficientemente enfáticas para coibir o crime. Querem impor algum tipo de sofrimento”, lamenta Custódio.
Não é mera figura de linguagem. Na cela destinada ao preso provisório que o advogado encontrou em Manaus, pela tentativa de furto de um celular, um cano foi instalado de forma improvisada para os detentos defecarem. Os dejetos eram lançados diretamente no pátio da cadeia, tomado por uma montanha de lixo.
Com sede em São Paulo, a Conectas apoia a iniciativa das organizações fluminenses de criar uma frente pelo desencarceramento. “Na verdade, estamos articulando com a Pastoral Carcerária e outras entidades a criação de um fórum semelhante para o início de março. Um de nossos parceiros, a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos, também pretende levar a ideia adiante no Nordeste”, diz Custódio.
Em seu relatório global, divulgado em 12 de janeiro, a Human Rights Watch, aponta a lei 11.343, aprovada em 2006, como "fator chave" para a elevação da população carcerária: "Embora a lei tenha substituído a pena de prisão para usuários de drogas por medidas alternativas, como o serviço comunitário – o que deveria ter reduzido a população carcerária –, sua linguagem vaga possibilita que usuários sejam condenados como traficantes". Resultado: em 2005, apenas 9% dos presos no Brasil haviam sido detidos por crimes relacionados às drogas. Em 2014, eram 28%.
“Tradicionalmente, o enfrentamento ao tráfico tem se concentrado nos pequenos varejistas, que muitas vezes são usuários e revendem drogas para sustentar o próprio consumo”, afirma Monique, da Justiça Global. “Em tese, a lei de 2006 diminuiu o impacto punitivo em relação ao usuário, mas não criou uma regra clara para diferenciá-lo. Caímos em um critério subjetivo, pois não há uma delimitação da quantidade de droga que a pessoa pode ou não portar. E o sistema é bastante seletivo e preconceituoso”.
Para exemplificar tal seletividade, a pesquisadora lembra o caso de Rafael Braga no Rio. Único condenado dos protestos que tomaram o Brasil em 2013, quando o morador de rua, jovem e negro, foi "flagrado" com um litro de água sanitária e uma garrafa de Pinho Sol, ele voltou a ser preso no início de 2016, desta vez sob a acusação de tráfico.
Ao sair da casa de sua mãe, no morro da Vila Cruzeiro, foi abordado por agentes da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), que afirmam ter encontrado com Rafael 0,6 grama de maconha e 9 gramas de cocaína. “Ele nega a acusação, diz que o flagrante foi forjado. De toda forma, é uma quantidade de droga ínfima perto dos 450 quilos de pasta base de cocaína encontrado em certo helicóptero e que a polícia ainda não descobriu quem é o dono”.
Ao contrário de outros países que limitam a definição de usuário a quantidades específicas de substâncias ilícitas, no Brasil, as autoridades levam em conta uma soma de fatores, como a quantidade de droga apreendida, as condições em que se desenvolveu a ação, as circunstâncias sociais e pessoais da pessoa flagrada, além dos antecedentes criminais. Essa indefinição na lei cria situações absurdas, como a de um réu pego com 3 gramas de maconha no momento da prisão, e que precisou recorrer ao Supremo Tribunal Federal.
Um estudo publicado pelo International Drug Policy Consortium, e desenvolvido pela pesquisadora Juliana Carlos, da Universidade de Essex, demonstra que se o critério espanhol fosse aplicado no Brasil, 69% dos presos por tráfico de maconha estariam livres. Em comparação com os EUA, o percentual cairia, mas ainda assim libertaria 34%.
A política de “guerra às drogas” foi inaugurada pelo presidente Richard Nixon, que governou os Estados Unidos de 1969 a 1974, e aprofundada nas décadas seguintes pelos seus sucessores, notadamente os republicanos Ronald Reagan e George Bush (pai e filho).
Resultado: em 28 anos, a população carcerária aumentou 4,5 vezes, passando de 503,6 mil cidadãos privados de liberdade, em 1980, para 2,31 milhões em 2008, segundo o Bureau of Justice Statistics, ligado ao Departamento de Estado. E os EUA seguem na liderança mundial de consumo de entorpecentes.
Somente com a eleição do democrata Barack Obama, primeiro presidente a visitar um presídio federal, o governo americano começou a rever sua política penal. Propôs a redução de penas para crimes leves de drogas, incluindo os relacionados ao crack, a atingir especialmente a população negra, e diminuiu a taxa de encarceramento dos imigrantes ilegais.
Com isso, pela primeira vez em três décadas, deu início a uma lenta redução do número de presos. Uma alvissareira mudança, agora ameaçada pelo bilionário republicano Donald Trump, novo presidente dos EUA.
A exemplo de outros países da América Latina, o Brasil abraçou a ideologia da “guerra às drogas” e jamais a abandonou, mesmo diante do evidente fracasso da estratégia em seu nascedouro. O número total de presos não para de crescer no País. Passou de 232,7 mil, no início dos anos 2000, para 622,2 mil, em 2014. Assim como o verificado nos EUA, não há qualquer indício de que o consumo de entorpecentes tenha refluído no Brasil.
Em entrevista a CartaCapital em 2015, Ernesto Samper, ex-presidente da Colômbia e secretário-geral da União das Nações Sul-Americanas (Unasul), foi categórico ao reconhecer o fracasso da estratégia no continente. Não apenas foi incapaz de reduzir o consumo, a produção e o tráfico de entorpecentes, como gerou graves danos colaterais, a começar pelo morticínio nas cotidianas ações de repressão. “Apesar de todos os esforços da atual política, temos mais de 300 milhões de consumidores”.
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