24 Janeiro 2017
“Os textos da nossa tradição litúrgica nasceram de uma tradução. E uma Igreja em saída reivindica um sistema linguístico aberto.”
A opinião é do teólogo e monge beneditino camaldulense italiano Claudio Ubaldo Cortoni, professor do Pontificio Ateneo Sant’Anselmo e da Faculdade Teológica da Emília-Romanha.
O artigo foi publicado no blog Come Se Non, 21-01-2017, do teólogo leigo italiano Andrea Grillo, que assim apresenta o texto: “Uma palavra clara e competente sobre a questão do latim na liturgia do Ocidente cristão. Uma contribuição importante para a revisão da instrução Liturgiam authenticam”.
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Claudio Ubaldo Cortoni
A Liturgiam authenticam não é senão o último documento de uma série que afetaram a prática da tradução dentro da Igreja. Mas, mesmo neste caso, certamente devem ser feitas exceções, para que o debate ainda não emperre mais uma vez sobre como traduzir, mas possa redescobrir como, de uma necessidade, a Igreja fez uma virtude.
O primeiro passo é o de avaliar como a Igreja, na parte ocidental do Império, chegou ao uso do latim na liturgia e como a utilização de uma nova língua pode ter dado origem a uma tradição autônoma:
1) A liturgia no Ocidente teve que mudar repentinamente de registro linguístico sob o imperador Décio (no cargo de 249 a 251), que continuou a reforma dos Severi, com a qual a recuperação da cultura latina autóctone correspondeu, na parte ocidental do Império, o retorno ao tradicional lema latino, pondo em crise o bilinguismo cultural da época anterior. A nova língua litúrgica no Ocidente se estabilizou, assim, já sob o Papa Dâmaso, em 380. Nesse caso, a tradução, que se tornou necessária, da língua grega para a latina, também foi a ocasião para uma tradição de encontrar uma das suas muitas formas, que se sucederam ao longo da história. De fato, para chegar àquele que Floro de Lyon (800 ca.-860) chamava de ritus Romanus, as passagens foram múltiplas, como o seu latim que muitas vezes deixa transparecer, nas formas gramaticais corrompidas, uma língua de origem vulgar ou, pelo menos, uma nova forma mentis a que corresponde um latim vulgar;
2) Também não é possível pensar que as tensões entre Jerônimo e Rufino, até mesmo Agostinho, possam ser equiparadas à atual preocupação de manter inalterada uma suposta tradição textual ligada a uma língua igualmente particular, o latim, quando os seus problemas muitas vezes são de ordem doutrinal, como a liceidade de traduzir Orígenes (Jerônimo-Rufino), ou pastorais, como o de não desorientar a assembleia com uma nova lição do texto bíblico (Agostinho-Jerônimo). Colocando-se todos, mais ou menos, no fim do processo de latinização da Igreja, a prática da tradução torna-se o veículo primeiro para o desenvolvimento do pensamento teológico latino;
3) Se acrescentarmos à lista Gregório Magno, o escritor eclesiástico entre duas épocas, a Antiguidade Tardia e a Alta Idade Média, descobrimos que ele esteve na origem de uma dupla polêmica, aquela com os tradutores do grego ao latim e vice-versa, e uma ainda mais singular sobre o latim em uso junto à Igreja, que deveria ser diferenciado do literário, para uma maior fidelidade à tradução bíblica do grego. Gregório foi um dos primeiros a pensar em uma gramática cristã para um latim verdadeiramente cristão, isto é, que pudesse se aproximar ao das Escrituras. Obviamente, a operação é de algum interesse também para o nosso debate, porque, mesmo neste caso, a tradução está na origem de uma nova e esperada língua da fé, que presume se reconectar com as Escrituras bíblicas, como fonte da própria Tradição, as quais, porém, estão bem longe do amor pelo original hebraico ou da tradução grega mais comum. Foi justamente Gregório Magno que elencou um grande número de traduções da Bíblia às quais ele consultava para a sua exegese e foi ele que contou o grande clamor que se elevou na Igreja latina por causa da invocação Kyrie eleison, geralmente considerada incompreensível.
4) Mas, justamente com Gregório, assoma-se outra problemática ligada à evangelização dos Anglos e à inculturação da fé cristã em sociedade já estruturadas. Um dos testemunhos mais significativos, no panorama da Igreja alto-medieval comprometida com a missão, é o relato da defesa do eslavo antigo de Cirilo no suposto Sínodo de Veneza, onde se confrontaram duas posições, aquela que defendia a possibilidade de que a Igreja falasse só as línguas sagradas, aquelas usadas para a inscrição posta sobre a cabeça do Cristo na cruz (hebraico, grego, latim), e aquela que considerava útil, a fim de introduzir os povos eslavos ao conhecimento do mistério celebrado na liturgia, a tradução na língua falada dos textos litúrgicos e da Escritura. Um dos textos trazidos como apoio para a tradução foi Mc 16, 15-17, isto é, o dom de falar línguas novas, a glossolalia, é interpretada como um dom do Espírito para levar o Evangelho ao mundo: a liturgia, em uma visão mais ampla ditada pela missão, é interpretada primeiro como anúncio, depois como louvor. No século XI, o problema se apresenta novamente sob o impulso missionário rumo ao Leste, ligado à política dos Ottone, que novamente levanta o problema da tradução para línguas faladas dos textos litúrgicos e da Sagrada Escritura. Deve-se somar a isso o problema das traduções paralitúrgicas que acompanhavam os ritos em língua latina para uso do povo ou do clero menos culto, às quais, sem muita eficácia, Gregório VII quis pôr um freio.
O quadro histórico é aproximativo, mas coloca em primeiro plano duas problemáticas ligadas à língua litúrgica: o fato de que os textos da nossa tradição litúrgica nasceram de uma tradução; e que, a um renovado interesse pelo latim litúrgico do Renascimento carolíngio, corresponde a necessidade de traduzir esses textos nas línguas locais, faladas pelos povos afetados pelo novo impulso missionário.
Ora, a questão que permanece ainda em aberto diz respeito à natureza do latim litúrgico, ou do latim eclesiástico em geral, como a língua da Igreja. Do latim litúrgico, como, aliás, para o latim eclesiástico, pode-se afirmar que se trata de uma língua concluída, que não deve ser confundida com uma língua morta. Por que concluída? Para responder, permanecendo fiel à suposta tradição invocada por muitos, devemos distinguir entre as traduções tardo-antigas e as alto-medievais, levadas em consideração aqui: na Antiguidade Tardia, pelo menos em muitos casos, o latim ainda era uma língua com locutores não só vivos, mas nativos, ou seja, que cresceram em uma sociedade que ainda falava essa língua nas suas diversas formas (baixa, ou seja, coloquial; média, dos homens aculturados; alta, isto é, literária); na Alta Idade Média, o latim começa lentamente a se configurar como a língua das escolas palatinas e das monásticas, isto é, é usado predominantemente como língua especializada, para a corte ou para a Cúria, que podia ser aprendido, mas que não pertencia mais ao mundo do cotidiano. Esta última passagem sugere que o latim litúrgico, tal como se desenvolveu desde a Alta Idade Média até hoje, tornou-se uma língua concluída, por estes três motivos:
1) Por uma extinção de baixo para cima (bottom-to-top), que se verifica quando a mudança linguística começa a partir de um ambiente como a casa (um exemplo é o surgimento do sermo provincialis, especialmente na Alta Idade Média; um segundo exemplo são as tentativas de reforma da Igreja antes de Lutero, que sempre previam a tradução da liturgia e das Sagradas Escrituras para o vulgar; a primeira Bíblia vulgarizada foi impressa em Veneza, em 1471).
2) O latim eclesiástico, depois, é afetado também por uma extinção de cima para baixo (top-to-bottom), que se verifica quando a mudança linguística afeta entes com funções também normativas ou culturais, neste caso, o abandono da língua latina no ensino das disciplinas teológicas e na reflexão teológica, e às vezes até na produção de documentos magisteriais. De fato, nem todos os documentos são retranscritos em latim, ou seja, redigidos na língua materna e depois traduzidos para o latim, mas alguns, por serem dirigidos a uma porção particular do povo de Deus, e em situações ainda mais particulares, foram redigidos em língua corrente, para que a mensagem possa ser imediatamente compreendida. É o caso das encíclicas em língua italiana: Il Trionfo, de 1814, de Pio VII; Quel Dio, de 1831, e Le Armi Valorose, de 1831, de Gregório XVI; Vi è ben noto, de 1887, e Dall’alto dell’Apostolico Seggio, de 1890, de Leão XIII; Il fermo proposito, de 1905, e Pieni l’Animo, de 1906, de Pio X; Non abbiamo bisogno, de 1931, e a encíclica em língua alemã Mit brennender Sorge, de 1937, de Pio XI. Nesses casos particulares, o interlocutor é o próprio povo!
3) A redescoberta de uma Igreja em missão também no Ocidente já cristianizado (uma Igreja em saída reivindica um sistema linguístico aberto).
Restam, então, apenas uma série de perguntas: como é possível avaliar a possibilidade de uma tradução, sem, antes, tomar consciência da própria tradição? O que significa recorrer ainda hoje a línguas concluídas para depois tê-las que traduzir? O que significa que a língua litúrgica de antigamente também era a língua do povo que celebrava, e hoje a língua com a qual alguns gostariam de voltar a celebrar o culto divino não pertence mais nem mesmo à elaboração do pensamento teológico, que relê a tradição no hoje e dá forma a uma linguagem da fé para o hoje? Que distância pensamos que existe entre a fidelidade a uma tradição e uma tradição fiel ao mandato de evangelizar?
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O latim na liturgia: a verdadeira história. Artigo de Claudio Ubaldo Cortoni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU