02 Dezembro 2016
O espectro da moral política acordou de repente na consciência dos dirigentes deste mundo. Com a exceção de um deles, o primeiro ministro grego Alexis Tsipras, nenhum dos chefes de Estado ou de Governo do Ocidente vai aos funerais de Fidel Castro. Também não vai o homem que, pouco a pouco, foi ganhando batalha após batalha na sua luta com as potências: o presidente russo Vladimir Putin.
O comentário é de Eduardo Febbro, jornalista, em artigo publicado por Página/12, 30-11-2016. A tradução é de André Langer.
A retórica comum dos europeus consiste em dizer que “nem a democracia, nem os direitos humanos, nem a liberdade de expressão faziam parte das ideias de Fidel Castro” (Steffen Seibert, porta-voz de Angela Merkel). Eles nunca se importaram em estender tapetes de veludo para que os piores tiranos do planeta caminhassem sobre eles quando vinham às capitais do Ocidente para assinar vultosos contratos para a compra de armas. Cuba foi e será uma exceção.
O presidente francês, François Hollande, a chanceler alemã Angela Merkel, a primeira-ministra britânica Theresa May ou o próprio Barack Obama, artífice do processo de normalização com Cuba, nenhum deles, entre tantos outros, foi a Havana. O que eles chamam de “herança” de Fidel provoca neles uma crise moral sem precedentes. Eles nunca foram vistos tão irrevogavelmente unidos e éticos diante da morte de um homem que encarna, para eles, a negação da democracia liberal.
Nunca antes lhes tremeu a consciência quando faziam acordos com alguns dos países árabes que se levantaram em 2011 durante a Primavera Árabe. Seja o tirano corrupto que governou a Tunísia, Zine el-Abidine Ben Ali, durante um quarto de século, o Egito de Hosni Mubarak ou o “novo” Egito da restauração ultraconservadora governado pelo repressor Fattah al-Sissi (general) desde 2014, quando terminou de decapitar os herdeiros da Praça Tahrir e depois apoiou o golpe de Estado (9 de julho de 2013) contra o presidente eleito e líder da Fraternidade Muçulmana, Mohamed Morsi.
Fattah al-Sissi foi recebido com honras de democrata ou foi visitado com paródias respeitosas e delegações de mercadores de armas que assinaram com essas ditaduras contratos de milhares de milhões de euros: barcos de guerra, aviões de combate, satélites de comunicações militares, helicópteros, tanques, Airbus Space Systems, Thales Alenia Space, DCNS, Dassault Aviation, HDW, TKMS (ThyssenKrupp Marine Systems) (Alemanha), Lockheed Martin (Estados Unidos), esses mastodontes da indústria armamentista fazem seus melhores negócios com tiranias do planeta. Os milhões e as armas lavam o sangue que os povos derramam e servem de álibi de esquecimento.
Com Cuba e Fidel construíram uma retórica de “excepcionalidade democrática” para justificar sua ausência. Foram, ao final, muito pouco generosos com um inimigo indomável que os levantou aos povos durante décadas. Sua mediocridade e sua falta de inspiração são um retrato eloquente das democracias liberais em estado de Zumbi (Frédéric Lordon, economista francês) que eles representam.
A mesma pequenez disfarçada de inteligência manifestaram os cidadãos da República Plumífera Pluridisciplinar, RPP: intelectuais, analistas, escritores, filósofos, romancistas, sociólogos, historiadores, colunistas. Um pelotão de coveiros que se lançou sobre o cadáver de Fidel para liquidar sua herança ou seus atos. Dignos delegados do pensamento mais atual, o pensamento halo, aquele que só vê o que brilha, metodologia fria e redutora feita de engenhosos artifícios verbais, herdeiro de outras quatro evoluções abaixo da reflexão: o pensamento MP3, o pensamento ZIP e RAR, tudo comprimido, sem elegância nem honestidade.
Eles são muito jovens para conhecer suas sutilezas e exatidões da história, ou muito idosos para ter boa memória. Enterraram Fidel nas páginas do El País, do Le Monde ou do Le Nouvel Observateur com uma consigna ridícula como leme: “o século XX está definitivamente acabado”, escreve no Nouvel Observateur um dos biógrafos franceses de Fidel (quase o mesmo estampou o El País na Espanha), Serge Raffy.
Que pena que não seja verdade! Caso fosse, a humanidade teria deixado para trás as guerras, a exploração, a fome que consome milhões de vidas por ano, a miséria, as doenças, as epidemias, as tiranias ou as catástrofes naturais. A grande maioria dos coveiros retóricos conhece muito pouco Cuba – talvez suas praias –, nunca falou com Fidel ou permaneceu o tempo suficiente na Ilha para, ao menos, semear a devida legitimidade. Lançam-se contra “o tirano grotesco” com uma força moral que não faz outra coisa senão desnudar a fraqueza e o oportunismo: não os vemos escrever contra o genocídio em Aleppo, os bombardeios russos, sírios e ocidentais sobre populações que morrem cada dia debaixo de fogo.
Cuba e Fidel se tornaram logo o território onde é possível exercitar-se como professor de ética e democracia enquanto se esquece a depredação zumbi que a democracia liberal realiza em quase todo o planeta. A infinita geometria variável dos valores e das relações internacionais se encena aqui com uma transparência implacável. Os mortos não se defendem, a exposição clara da complexidade requer muito esforço mental, uma ilha pequena, maltratada, assediada e castigada torna-se logo o fantasma global do mau exemplo e um homem que deu consciência e capacidade de ação a milhões de pessoas no mundo transforma-se no mal encarnado, no déspota do seu povo e dos sonhos e das esperanças.
Fidel sobreviveu a muitas contingências. Sua vida se estendeu até entrar no século XXI. Haverá em seu enterro menos líderes do que ele, como aliado ou adversário, merece. Talvez a morte contenha um suspiro de alegria final. Não sabemos. Nesse caso, Fidel poderá celebrar a mais íntima, fabulosa e espetacular vitória, mesmo quando não participou do conflito: ser testemunha de como seu pior inimigo, o império norte-americano, se autodestruía, se autodegradava, se rebaixava até níveis tão patéticos que soube eleger um grosseiro, racista e sonegador de impostos como presidente. Donald Trump foi o último presente que Fidel recebeu do Ocidente. O que isso importa, agora que seus líderes se negaram a estar presente no último adeus? Comandante, o melhor está por começar.
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A dupla moral do Ocidente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU