01 Novembro 2016
"A distribuição geográfica da vergonha que pode ser descrita graças ao ótimo anexo estatístico do primeiro relatório de acompanhamento dos ODS, que acaba de ser lançado pelo Conselho Econômico e Social da ONU. Proíbe qualquer esperança de que a pobreza seja minimizada em quinze anos" escreve José Eli da Veiga, professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (IEE/USP) em artigo publicado por, Envolverde, 31-10-2016.
Eis o artigo.
Deveria ser inaceitável que ainda houvesse multidões condenadas a abjetas condições de vida após um século e meio de vertiginosa aceleração de processos civilizadores, que se seguiu a mais de dez milênios de lentos progressos, mas marcados por cruciais surtos de desenvolvimento. Quanto tempo ainda será necessário para que isso termine? Depende do que se entenda por pobreza.
Pela convenção dominante, pobre seria quem sobreviveu em 2012 com renda inferior a US$ 1,90 ao dia. Abaixo dessa “linha” estavam 12,7% da população mundial. Mas, como se sabe, com imensas discrepâncias espaciais.
No Leste Asiático (que inclui a Coreia do Sul), 6,5% da população se enquadrava nessa condição, apesar das extraordinárias proezas do despotismo esclarecido na China. Proporção superior à da América Latina e Caribe (5,6%) e bem superior à do Norte da África (1,7%). Com o Oriente Médio nem dá para comparar, já que razoáveis dados estatísticos estão entre as vítimas de tantas conflagrações. E parece até desnecessário mencionar o sucesso do grupo de 55 países ditos desenvolvidos, que já se libertaram desse tipo de flagelo.
Brasil tem mais da metade da população sem acesso a esgoto, e está na 112ª posição no ranking do saneamento.
Na margem oposta, desempenhos piores que o do Leste Asiático ocorriam nas duas regiões vizinhas do mesmo continente: o Sul com 8,3% e o Sudeste com 15,4%.
Assim como no Cáucaso, com 11,6. Mas nada que se aproximasse dos dois mais calamitosos casos de subdesenvolvimento: a África Subsaariana, com trágicos 42,6%, e a Oceania (sem Austrália e Nova Zelândia), com 29,7%.
Ao contrário do que parece, esse é um panorama que autoriza razoável grau de otimismo para 2030, prazo de validade dos dezessete Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) adotados pela comunidade global em setembro de 2015. Pois, bastará mais do mesmo. Se o crescimento econômico mundial puder manter o padrão dos primeiros quinze anos deste século, é provável que em 2030 somente em partes da África e da Oceania ainda restem intoleráveis contingentes de párias por insuficiência de renda.
O problema, contudo, é que essa agenda reconhece, desde seu primeiro objetivo, que a pobreza não se resume a insuficiência de renda. É imprescindível ter em conta as demais privações sofridas no porão da sociedade, pois a incidência de pobreza não é obrigatoriamente determinada pela renda.
Só que o pensamento convencional continua a hostilizar essa conjectura. Por isso, é indispensável perguntar, por exemplo, se faz sentido não contabilizar como pobre alguém que sobreviveu 2015 excluído do elementar direito humano à higiene propiciada por saneamento básico. Não seriam pobres as famílias das crianças mortas no ano passado por recorrentes diarreias causadas pela convivência com esgoto a céu aberto?
Tal indagação seria improcedente, claro, se houvesse correlação entre as duas privações citadas: a de renda e a de higiene.
Mas não há.
Para começar, no Leste Asiático 22,6% da população continuava em 2015 sem saneamento, malgrado o espetacular desempenho chinês. Mais que o triplo de pessoas privadas de higiene do que pessoas com menos de US$ 1,90 ao dia. Isto é, havia por ali perto de quatro vezes mais pobres do que faria pensar o bitolado critério da pobreza de renda.
Nas demais regiões do globo ocorrem diversos graus dessa mesma disparidade, com uma única exceção. Em 2015, só no Cáucaso a privação de renda superava a privação de higiene: 11,6% contra 4,1%. Até no clubinho dos desenvolvidos havia 4,4% das pessoas sem acesso a saneamento, enquanto no restante do mundo elas chegavam a 38,2%. Pior: atingiam impensáveis 65,5% nos 48 países classificados como “os menos desenvolvidos”.
Aí está, em síntese, a distribuição geográfica da vergonha que pode ser descrita graças ao ótimo anexo estatístico do primeiro relatório de acompanhamento dos ODS, que acaba de ser lançado pelo Conselho Econômico e Social da ONU. Proíbe qualquer esperança de que a pobreza seja minimizada em quinze anos.
E podem ser úteis mais três observações:
Primeiro, justificar por que esgoto inacessível é a pior das mazelas de todas as civilizações contemporâneas. Porque sofrer recorrentes infecções parasitárias na primeira infância reduz a inteligência, diz estudo coordenado por Christopher Eppig, que está nos “Proceedings of the Royal Society” (277: 38013808). O cérebro é o órgão do corpo humano que mais consome energia: 87% no recém-nascido, 44% aos cinco anos, 34% aos dez. As infecções parasitárias desviam energia para ativar o sistema imunológico. Repetidas diarreias até os cinco anos roubam do cérebro as calorias necessárias a seu desenvolvimento.
Segundo, relembrar o escandaloso desempenho do Brasil. Ter mais da metade da população sem acesso a esgoto o coloca na 112ª posição no ranking mundial do saneamento (atrás até do Paraguai, na 101ª). E isso apesar de o país alcançar a 75ª colocação nas classificações por IDH ou por PIB per capita (PPC).
Finalmente, mas não menos importante, anunciar que será consagrada ao saneamento a edição da ótima revista online “Página 22” que está para sair.
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A geografia da vergonha - Instituto Humanitas Unisinos - IHU