11 Outubro 2016
São Paulo "parou" na noite de 10 de outubro: festival da Record em 1966 dividiu não só a plateia, mas o país, em torno das músicas de Chico Buarque e Geraldo Vandré/Theo de Barros
A reportagem é de Vitor Nuzzi, publicada por Rede Brasil Atual, 10-10-2016.
"Com essas duas músicas, a bucólica A Banda e a telúrica Disparada, o II Festival da TV Record mostrou para os brasileiros de todas as classes sociais a grandeza de sua música popular, um bem dotado do mais alto valor artístico do qual tinham por que se orgulhar." Com o parágrafo final do capítulo dedicado ao festival organizado pela Record em 1966 (o primeiro havia sido realizado em 1960), no livro A Era dos Festivais - uma parábola, o pesquisador Zuza Homem de Mello resume em certa medida o que foi a noite de 10 de outubro de 1966 – como neste ano, uma segunda-feira –, no teatro que funcionava na Rua da Consolação, região central de São Paulo.
Era o momento da decisão com as 12 finalistas, depois de três eliminatórias, em 27 e 28 de setembro e 1º de outubro. Nada menos que 2.635 canções haviam sido inscritas. Desde que foram apresentadas, A Banda, de Chico Buarque, e Disparada, de Geraldo Vandré e Theo de Barros, concentraram as atenções do público. A música de Chico, um jovem ainda pouco conhecido, de 22 anos, foi interpretada por Nara Leão. A de Vandré, 31 anos, que acabara de ganhar o festival da Excelsior com Porta Estandarte (parceria com Fernando Lona), foi defendida por Jair Rodrigues, o que surpreendeu muita gente.
"Ninguém imaginava que o Jair Rodrigues fosse capaz daquele jeito", lembra Zuza. O intérprete tinha a justificada fama de brincalhão, o que levou Vandré a adverti-lo: Cachorrão (apelido de Jair), cuidado com a minha música, que é coisa séria. O cantor xingou o compositor, que se desculpou. Mas Jair, indicado por Hilton Acioli, do Trio Marayá, tinha muito mais que irreverência. Zuza destaca a "cancha" do intérprete, que começou a carreira como crooner no interior paulista e era capaz de cantar de tudo.
Em 2008, Jair Rodrigues diria compreender os motivos da desconfiança. "Cachorrão pra lá, Cachorrão pra cá, eu plantava bananeira... A minha imagem mudou a partir daí, de Disparada. Talvez a força das palavras do Geraldo me abriu a cabeça." Dona Conceição, mãe de Jair, profetizou: Essa musca (como ela pronunciava) é muito bonita, meu filho. Se você defender, você vai ganhar (o festival). No vídeo disponível no Youtube, ela aparece no palco da Record, enquanto Jair canta.
Disparada era "uma total novidade em todos os aspectos", em interpretação, arranjo, conteúdo, formato. "Não era visível que havia uma primeira e uma segunda parte", diz Zuza. Uma música comprida, "mas que a gente não sentia que era cumprida". Sem contar, acrescenta, o uso da famosa queixada de burro, que "dava uma conotação instrumental totalmente inusitada".
Ele vê A Banda como uma "canção visivelmente menor na obra de Chico Buarque, que foi crescendo numa dimensão extraordinária". A composição foi ficando "para trás", mas na época foi uma "febre", lembra Zuza, cantarolando um trecho. "Era uma música gostosa de ouvir e de cantar."
A noite da final parou a cidade e foi comparada a uma decisão de futebol. "A expectativa era tão grande que alguns cinemas e teatros chegaram a suspender suas sessões acreditando que não haveria viva alma para assisti-las naquela segunda-feira. Quem não conseguisse lugar no Teatro Record certamente estaria em casa torcendo diante da televisão", escreveu Zuza no livro sobre os festivais.
Ele conta ter sido "abordado por muita gente" interessada em conseguir um ingresso para o teatro, cuja capacidade era de aproximadamente 700 lugares. Zuza era um "espectador" privilegiado – mas como operador de som da Record trabalhou muito naquela noite, que permanece viva em sua memória.
Os festivais ainda não estavam na mira do regime, formado dois anos antes, com a deposição de João Goulart e o início do ciclo dos presidentes-generais. As músicas finalistas, observa Zuza, "continham elementos que poderiam ser interpretados com toques de preocupação política". No caso de Disparada, isso era mais evidente.
"Vandré era obsessivo nesse aspecto social", observa. Em 1968, o compositor daria entrevista ao próprio Zuza e diria que o mais importante era a letra, ao afirmar que, em canção popular, a música deveria ser uma "funcionária despudorada" do texto.
Houve cuidados na escolha dos jurados. "O júri montado pelo Paulinho Machado de Carvalho (diretor da TV Record) e pelo Solano Ribeiro (produtor do festival) tinha facções. Havia preocupação de não fazer um júri chapa-branca."
O único empate na história dos festivais contrariou a decisão dos jurados, que haviam dado a vitória para A Banda, com sete votos, ante cinco para Disparada. Acontece que Chico, informado que poderia ser o vencedor – o júri ainda estava reunido –, antecipou-se e avisou que se ganhasse sozinho devolveria o prêmio em público. "Chico foi falar com Paulinho, e os jurados tiveram de ouvir a sugestão que o melhor seria o empate. Essa sugestão foi contestada por muitos", recorda Zuza.
Mas foi o que aconteceu. Sem que os autores e o público soubessem do resultado verdadeiro, os apresentadores anunciaram que as duas músicas eram vencedoras do festival. "Eu propus o empate por achar que Disparada era melhor. E continuo achando", diria Chico décadas depois.
Depois da festa, com o teatro já quase vazio, o diretor da Record subiu a escada que levava à cabine de som e entregou um envelope fechado a Zuza, com a recomendação de guardá-lo em um cofre e não mostrar seu conteúdo a ninguém. Era as fichas de votação dos jurados. Durante muito tempo, o envelope ficou guardado em uma burra (cofre) em uma das casas onde o pesquisador morou. O imóvel foi vendido e, com ele, foram-se a burra e os votos. A história permaneceu.
Poucos se lembram das demais músicas daquele festival. Em segundo lugar, ficou De Amor ou Paz (Adauto Santos e Luís Carlos Paraná), cantada por Elza Soares. Em terceiro, Canção para Maria (Paulinho da Viola e Capinan), também com Jair Rodrigues. Em quarto, Canção de Não Cantar (Sérgio Bittencourt), na interpretação do MPB4.
Em seguida, Ensaio Geral (Gilberto Gil), com Elis Regina – que em 1965 vencera o festival da Excelsior com Arrastão (Edu Lobo e Vinícus de Moraes).
"O Brasil inteiro viu pela primeira vez que música popular era coisa muito séria", escreveu Zuza sobre o festival de 1966. O pesquisador e autor de várias obras fundamentais se dedica atualmente à conclusão de um livro sobre o samba-canção.
Confira os vídeos das apresentações de A Banda e Disparada:
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Bucólica 'A Banda' e telúrica 'Disparada': um empate completa 50 anos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU