06 Setembro 2016
Goiburú Benítez, filho de uma das vítimas da ditadura de Stroessner, lidera a busca e identificação de desaparecidos. E disse que quando limpa os restos com seu pincel ou sua esteca sente que não poderia fazer outro trabalho.
A reportagem é de Adrián Pérez e publicada por Página/12, 05-09-2016. A tradução é de André Langer.
No calendário de Rogelio Agustín Goiburú Benítez, o 09 de fevereiro de 1977 é um dos dias mais dolorosos. Homens vestidos de civis sequestraram naquele dia em Paraná, Entre Ríos, o seu pai, Agustín Goiburú, que chegou à Argentina em 1959 vindo do Paraguai. A história de Rogelio se parece com a de outros filhos e filhas a quem a Operação Condor arrancou os mais queridos, com uma exceção. Em 2006, o Estado paraguaio o convocou para que se encarregasse da Área de Investigação de Desaparecimentos Forçados e Execuções Extrajudiciais da Comissão da Verdade e Justiça. Além disso, desde 2013 lidera a busca e identificação de desaparecidos na Direção de Memória Histórica e Reparação, do Ministério da Justiça paraguaia.
Disse que sente a falta do seu pai como no primeiro dia. O telegrama que informava Rogelio sobre esse desaparecimento o encontrou em Corrientes. Ao ler a mensagem, um frio paralisante atravessou-lhe a coluna. Correu para buscar um telefone para ligar ao Paraná. Uma vizinha contou-lhes os detalhes. Nessa mesma noite, tomou um ônibus para Entre Ríos. A polícia tinha devolvido o carro que o pai dirigia à família e entregou a chave à sua mãe.
Embora Goiburú Benítez tenha nascido em Assunção, sua infância e juventude transcorreram rio abaixo, na outra margem do Paraná. Cursou a escola primária e secundária em Misiones, fez medicina na Universidad Nacional del Nordeste (UNNE) e durante o golpe de Estado de 1976 foi preso, esteve 15 dias desaparecido e foi expulso da UNNE. Continuou seus estudos em La Plata e terminou o curso na UBA, mas não chegou a tramitar o título, porque se mudou para a União Soviética.
Em conversa com Página/12, o coordenador da Equipe Nacional de Busca e Identificação (Enabi) de desaparecidos da ditadura stronista adianta que sua equipe voltará a escavar em Assunção, no Agrupamento Especializado da Polícia Nacional, onde encontraram os restos de Rafaela Giuliana Filipazzi Rossino e de Miguel Angel Soler Canale – os primeiros desaparecidos paraguaios identificados –, porque foram construídos muitos prédios, depois de 1980, debaixo dos quais haveria mais sepulturas. O médico paraguaio encontrou essa referência graças ao testemunho confidencial de 34 ex-militares e policiais que apontaram o local onde foram enterrados os corpos.
Para explicar a importância da descoberta anunciada na semana passada, Goiburú Benítez conta a história de um jovem assassinado em um povoado situado a 350 quilômetros de Assunção. O rapaz, de 15 anos, estava a 50 metros de onde o matariam. Os oficiais do Exército deram-lhe uma pá para cavar um buraco. Quando lhe vendaram os olhos, o adolescente pediu a um soldado: “Tirem-me a venda; não sou nenhum covarde! Estou aqui, como soldado da pátria, porque vim lutar pela liberdade do meu país. Quero que avisem a minha família que aqui vou estar enterrado para sempre”.
O jovem caiu no buraco após receber um tiro na cabeça. “Assim como esse cidadão, muitos de nossos compatriotas quiseram que um dia alguém os encontre. Eu sei que papai, onde estiver, está esperando ser encontrado”, confia o especialista paraguaio. E assegura que quando limpa os restos com seu pincel ou sua esteca, espiritualmente se sente tão bem que não poderia fazer outro trabalho. “Vamos continuar até a última gota de sangue, porque eles deram sua vida por um Paraguai livre, justo e democrático, com justiça social”, adverte Goiburú Benítez. A intenção de seu trabalho, considera, é recuperar ossos e identificá-los, com a pretensão de reescrever a história do Paraguai, que ficou oculta.
Desde 2006, a equipe que dirige encontrou 34 esqueletos de pessoas que sofreram represálias pelo terrorismo de Estado. Cerca de 500 denúncias foram apresentadas por desaparecimentos forçados cometidos pelo stronismo, 440 das quais a Direção de Memória Histórica e Reparação documentou. “Devem existir muitíssimo mais desaparecidos”, suspeita o médico, e apóia essa hipótese nas viagens que com sua equipe faz ao interior paraguaio: “Muitas famílias não denunciaram o desaparecimento de seus entes queridos. Foram 35 anos de ditadura, com um estado de sítio que se levantava apenas para as eleições fraudulentas nas quais sempre ganhava o ditador. Calculamos que essas pessoas não deram testemunho por medo, por esses 35 anos de terror que perduram até hoje”. Além disso, afirma Goiburú Benítez, são tão humildes que não têm sequer dinheiro para pagar uma passagem de ônibus para Assunção, menos ainda para custear uma assessoria jurídica.
“Um advogado ou um promotor podem ter a melhor vontade, mas podem ser freados por interesses que estão além deles, no poder. Nós vamos ajudar os promotores, vamos armá-los de coragem, vamos dar-lhes locro [um ensopado a base de abóbora, feijão e milho, muito consumido na região da Cordilheira dos Andes, da Argentina até o sul da Colômbia, passando pelo Equador, Peru e Bolívia] todos os dias para que avancem nas investigações”, afirma o chefe da Direção de Memória Histórica e Reparação.
Sobre as violações aos direitos humanos na ditadura stronista, sustenta que não foram mortos em uma guerra entre quadrilhas. “Foi uma repressão absolutamente detalhada, planejada e financiada por civis e poderes extranacionais – garante. Sabemos que o imperialismo dos Estados Unidos, através da CIA e do Pentágono, tem documentos para saber o que aconteceu com nossos desaparecidos. Eles estimularam os militares a se formarem na Escola do Panamá e, por sua vez, os militares usaram a polícia para fazer o trabalho sujo”, acrescenta. Um comissário da Polícia Nacional disse há alguns dias ao médico paraguaio: “Goiburú, a metade da polícia está com você neste desafio; o apóia, aprecia o trabalho que faz, o estimula e protege. A outra metade, não”.
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