23 Agosto 2016
Quem acompanha a carreira do mineiro Eduardo Giannetti da Fonseca consegue situar em algum ponto do final dos anos 1990 uma guinada do foco em economia, que marcou o início de sua trajetória, para um tom mais filosófico, a partir de períodos sabáticos em Tiradentes, cidade de Minas Gerais onde nasceu o herói nacional. Meses de recolhimento renderam livros emblemáticos, como Auto-engano (1997) e O Valor do amanhã (2005). Depois, o doutor em economia pela Universidade de Cambridge (Inglaterra), onde lecionou por três anos, passou por nova encarnação como assessor de campanha de Marina Silva nas eleições presidenciais de 2010 e em 2014. Hoje dá aulas no Insper (Instituto de Ensino e Pesquisa) e ganhou a credencial de um dos novos pensadores do Brasil.
Depois do vendaval de 2014, passou mais dois meses em Tiradentes e emergiu com Trópicos utópicos, seu novo livro, que tem 124 tópicos em 173 páginas. O tamanho dos textos é inversamente proporcional à ambição de Giannetti, que diz querer retomar o estilo de grandes autores. Mais otimista do que em obras anteriores, em que apontava distorções brasileiras, agora Gianetti saúda o fato de o país ter “um doce sentimento da existência e uma capacidade de celebrar a vida independentemente da lógica e da razão científica”.
A entrevista é de Marta Sfredo, publicada por Zero Hora, 20-08-2016.
Eis a entrevista.
Seu livro tem uma estrutura inusual para pensadores: em tópicos. É uma capitulação a textos curtos?
Não. É um gênero largamente praticado na história da filosofia. É um modo de desenvolver um argumento antes de embarcar nele. Grandes autores do passado usaram, tanto na Alemanha, na França quanto na Inglaterra. Não inventei, me servi de um gênero, como o diálogo e outras formas de expressão filosófica, por duas razões. Primeiro, porque empodera o leitor, que não é obrigado a aceitar tudo do início ao fim, a cada seção é chamado a se posicionar, permite maior exercício da faculdade de julgar, deixa perguntas na cabeça. Segundo porque, em um tempo tão corrido, acolhe o leitor preguiçoso e, ao mesmo tempo, estimula o aplicado. Um terceiro ponto é que eu me senti desafiado com a possibilidade de tratar cada seção ou mini ensaio como unidade estética. Caprichei para que cada seção tivesse polimento literário na altura da minha capacidade.
O livro é apresentado como perspectiva brasileira sobre a crise civilizatória. Não se restringe ao país?
As três primeiras partes são uma tentativa de mostrar o que há de errado no mundo moderno. Uma expectativa ilusória que se criou sobre a capacidade da ciência de elucidar o mistério da condição humana, uma ilusão muito poderosa em relação à capacidade da tecnologia de controlar a natureza em benefício do homem e por fim, uma terceira ilusão, de que o crescimento econômico proporcionaria uma vida mais livre, feliz e digna de ser vivida de maneira indefinida.
A crise civilizatória engloba esses três pontos. A crítica a essas três ilusões da modernidade parte de um ponto de vista brasileiro. O Brasil tem na sua cultura, graças a suas raízes não ocidentais, um doce sentimento da existência e uma capacidade de celebrar a vida que independe da lógica e da razão científica. Temos um patrimônio ambiental único, o que nos confere uma enorme responsabilidade em relação à crise ambiental e uma disposição amável e amigável que relativiza muito o que podemos esperar do crescimento e da renda como fonte da realização humana.
Ainda temos? O clima não se acirrou nos últimos anos?
É verdade. Mas aí vem a vantagem de se ter uma certa idade. Nós não podemos confundir o circunstancial da conjuntura com o permanente da cultura. O Brasil passa por ciclos muito exacerbados de confiança e desânimo. Da II Guerra Mundial para cá, é o terceiro movimento desse tipo. Tivemos período de florescimento e euforia econômica cultural na segunda metade dos anos 1950, com Bossa Nova, Brasília, industrialização, Cinema Novo, que se perdeu logo no início dos anos 1960 com renúncia de Jânio, crise fiscal, inflação e golpe militar.
Depois tivemos, em pleno regime militar, um momento de grande otimismo com a ideia estapafúrdia do Brasil potência, do milagre econômica, a ideia do “Ame-o ou Deixe-o”, usinas nucleares, ilha de prosperidade em meio a um mar turbulento. Criou-se uma fantasia de grandeza que acabou no final da década de 1970 e início dos 1980 com a crise da dívida externa e a década perdida.
E agora a gente vê essa mesma alternância. Há não muito tempo, o Brasil figurava como estrela do mundo emergente nas capas das revistas internacionais, sede da Copa do Mundo, incluindo milhões de pessoas no mercado de consumo, crescendo em meio à crise, um estado de quase euforia. E agora vivemos uma fortíssima reversão de expectativas, com o desabamento dessa fantasia. Em grande medida, por erros de política econômica no segundo mandato de Lula e, principalmente, no primeiro mandato de Dilma. Coloco essa perspectiva histórica para a gente não se entregar ao momento sombrio e perder de vista que o Brasil passa por ciclos há muito tempo.
Estamos condenados a esses ciclos?
Não. Temos de entender por que nossa imaginação flutua de maneira tão volátil, e o Brasil vive a alternância dessa embriaguez eufórica com depressão e prostração que arrasa. Já é mais do que tempo de se tentar entender isso para evitar que se repita.
Um dos seus livros mais conhecidos fala sobre autoengano, o mais atual foca em utopia. É um desembarque do ceticismo ou essa postura tem relação com seu engajamento em projetos políticos?
Vamos por partes. Em Autoengano, eu não era totalmente crítico e negativo em relação a essa característica. Sem uma dose de autoengano, a vida seria insuportável. Não suportaríamos a total verdade sobre insignificância cósmica, finitude e fragilidade. Uma cultura que perde sua capacidade de sonho perde sua vitalidade, sua razão de ser. E isso se manifesta nas mais diferentes situações e contextos. Primo Levi, escritor italiano que passou por campos de concentração, mostra que as pessoas com capacidade de sonhar e construir fantasias profundas tinham mais chance de sobreviver. É um recurso vital, ainda mais em momento ruim de depressão, como estamos passando.
Em relação ao segundo ponto, aprendi demais participando das campanhas de 2010 e 2014 ao lado de Marina Silva. Aprendi a respeitar muito mais as culturas não ocidentais que se misturam na vida brasileira e questões ligadas à desigualdade. Acho que os economistas de modo geral, e me incluo nisso, são pouco abertos a culturas e realidades diferentes de entender a vida e reafirmar valores. A teoria econômica e a formação dos economistas é muito estreita. Foi uma enorme oportunidade de aprender mais sobre a cultura ameríndia, africana, sair da redoma de modelos e dos números para entender a vida de forma mais rica, integral e plena. Economistas olham muita estatística e, às vezes, perdem a dimensão humana da realidade.
Seu trânsito da economia para a filosofia e para a política se relaciona com a decepção em relação a respostas mais cartesianas?
Minha paixão de estudo sempre foi a filosofia. Fiz faculdade de economia, mas logo descobri que os melhores economistas eram filósofos. Essa separação da economia como disciplina é algo muito recente. Grandes economistas clássicos, Adam Smith, Malthus, Marx, eram todos filósofos. Até Keynes.
Foi no século 20, a partir da II Guerra mundial, que a economia se transformou em engenharia econômica e perdeu a dimensão dos valores da ética, da história e da psicologia, muito fortes na origem. Meu trabalho é retomar a abordagem da filosofia moral à qual a economia política pertencia. A tese de doutorado de Marx é na filosofia. Adam Smith era professor de filosofia moral. Não estou fazendo algo sem precedentes. O pensamento econômico se amesquinhou em busca de precisão espúria, com enorme sentimento de inferioridade em relação a ciências exatas, especialmente a física.
O que significa “precisão espúria”?
É tentar quantificar o inquantificável, a diferença entre cínico e sentimental. O cínico é aquele que sabe o preço de tudo e o valor de nada, e o sentimental é aquele que vê valor em tudo mas não sabe o preço de nada. A economia tende para os cínicos. O romantismo filosófico vai para o sentimental. O desafio está em unir essas duas perspectivas.
Como sua aproximação da política influenciou sua perspectiva filosófica, já que a filosofia trabalha a conciliação entre discurso e prática, e a política parece trafegar em sentido oposto?
O livro não tem a pretensão de ser um programa político. É uma provocação ao sonho. Gostaria que os brasileiros exercitassem mais a busca de uma identidade futura. O que nos une como projeto, como ideal? Existe um sonho brasileiro? Essa é a pergunta. Não tenho competência e talento para fazer disso um programa político. Requer outro tipo de formação e talento em que não investi. Mas ter uma liderança do quilate da Marina Silva é um privilégio em qualquer país. No fundo, o que ela tem de mais central é um compromisso com valores. Agora, não sei, com muita franqueza, se Marina é mais líder de movimento ou líder de governo. Líderes de movimento são figuras como Luther King, Gandhi, defensores de causas, símbolos, representam aspirações de sonho compartilhado. Líderes de governo têm outra postura, um compromisso mais com a execução, o enfrentamento de problemas e desafios. Não vejo ainda com clareza se Marina é mais líder de movimento ou se pode alcançar posição de líder candidata ao exercício de poder. Os dois caminhos são válidos, mas são modos diferentes de atuar na vida pública.
Na questão de valores, há contraste, especialmente em religião?
Marina separa, de maneira clara e serena, convicções pessoais de ordem religiosa das questões da vida pública. Em campanhas, jamais faz apelos de natureza religiosa ou invoca a religiosidade para fins eleitorais. Ao discutir questões concretas e relevantes para a vida brasileira, como drogas, uniões civis de homossexuais, aborto, conduz essas discussões de acordo com o debate brasileiro hoje, sem invocar dogmas ou interdições religiosas. Por exemplo, casamento entre homossexuais. Reconhecer que uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo criam direitos e deveres e isso cria um contrato é algo que o Estado deve fazer. Outra coisa, muito diferente, é casamento como ritual. Não há o que dizer como cada religião vai lidar, cada uma resolve conforme seus preceitos. Agora, que o Estado brasileiro deve reconhecer direitos e deveres entre pessoas que resolver viver juntos, adotar filhos, constituir família, é um ponto resolvido no debate brasileiro.
Por que considerou um alívio não ter vencido a eleição de 2014?
Se a oposição tivesse vencido, aos olhos da população o que veio em seguida seria inevitavelmente atribuído ao novo governo. E o PT e a antiga situação, indo para oposição, acusariam o novo governo de ter produzido o desastre que haviam plantado. Isso reviabilizaria o PT e seus aliados por mais 30 anos. A oposição, vencendo em 2014, não teria como convencer a população de que o desastre estava contratado. Foi pedagógico que quem criou essa calamidade arque com as consequências de sua irresponsabilidade. Quero frisar mais um ponto: Temer foi inventado por Dilma. Quem resolveu se aliar a esse segmento do PMDB foram Dilma e PT. E se Dilma tivesse ficado doente, em vez de ter sido afastada? Temer assumiria. Iriam gritar “Fora Temer”? Esse governo é a continuação, por outros meios, do pacto que Dilma e o PT fizeram para chegar ao poder.
Concorda com o certo consenso sobre a qualidade da atual equipe econômica?
Concordo que há muito tempo não temos, no Brasil, uma equipe com essa qualidade. Não só na Fazenda, mas nas estatais, nos bancos públicos, no BNDES, há uma melhoria de quadros como não se vê desde o primeiro mandato de Lula. Isso é muito bom. Pena é que isso se dá em um governo que não foi eleito, é interino e, além disso, muito provavelmente está implicado nas piores práticas da política brasileira, como a Operação Lava-Jato demonstra a cada dia. O componente político prejudica muito a capacidade efetiva de atuação dessa equipe qualificada.
Com essa equipe, será possível encaminhar o início da solução do problemas do Brasil?
Sim, mas não depende só deles. Depende de condições políticas para aprovar medidas no Congresso e não ceder à chantagem que o presidencialismo de coalizão impõe em um governo enfraquecido. Vivemos a combinação de duas crises de fundo: o esgotamento do ciclo de expansão fiscal que começou com a Constituição de 1988 e a falência do presidencialismo de coalizão. A solução permanente terá de equacionar as duas questões. É muito difícil que aconteça em um governo tampão. O que se pode fazer é estancar a queda livre da economia e dar início ao encaminhamento do problema fiscal.
E como resolver o problema político?
Vamos precisar de reforma política. Repensar sistema de representação, financiamento de campanha, critérios para criação de partidos e representação no Congresso. Não dá para ter Congresso com 28 partidos, quando na verdade não tem nenhum. São todas coalizões oportunistas visando a interesses quase pessoais. E também não adianta imaginar que o Parlamentarismo será uma resposta; será o caos. Se não houver uma estrutura partidária minimamente estruturada e previsível, nem presidencialismo nem parlamentarismo funcionarão.
Embora exista consenso sobre a reforma política, como avançar contrariando interesses de quem tem de fazê-la?
Vejo com bons olhos uma proposta de Constituinte exclusiva para reforma política. Mas é fundamental a cláusula de exclusão. Quem participar não se candidata a cargo eletivo por 10 anos, para não misturar o jogo político partidário com a elaboração de regras constitucionais. Faltou essa cláusula em 1988. A Constituinte tem de desenhar as regras de fundamento, sem interferir em investigações ou no funcionamento do Judiciário. Algo que clama por ser revisto no Brasil, o que talvez mais mexe com meu sistema nervoso, é a regra do foro privilegiado. Não consigo aceitar, como cidadão, que empreiteiros, diretores da Petrobras, operadores do esquema estejam ou tenham sido presos, e políticos estejam soltos. E pior, em grande medida comandando a política. Há algo profundamente errado nisso, causa enorme dano institucional. O descrédito dos políticos chega ao absurdo, é um perigo para a democracia.
Você compartilha do temor acerca de “aventureiros” em eleições?
Sim, o descrédito das instituições e dos políticos abre espaço para figuras que representem risco considerável para a normalidade democrática. Não é um fenômeno exclusivo brasileiro. A eleição americana está mostrando isso, assim como o Brexit.
Há uma origem comum?
As formas de representação e o modus operandi da democracia representativa deixam a desejar, pedem aprimoramento, mas ninguém sabe como fazer isso. O Brexit, por exemplo, resulta em grande medida de parte da população inglesa não aceitar que decisões importantes que impactam sua vida sejam tomadas por um governo remoto em Bruxelas, e por burocratas que não elegeram. Entendo esse sentimento de não legitimidade e não reconhecimento desse poder externo. É uma pena que os britânicos não tenham encontrado uma maneira de corrigir dentro da União Europeia e tenham partido para uma ruptura que tem consequências difíceis de antecipar.
Você critica a idolatria ao PIB, dizendo que, em nome do crescimento, compromete-se o ambiente. Há outras distorções?
Se você mora perto de seu local de trabalho e tem o privilégio de poder caminhar até lá, o PIB nada registra. Se você mora longe, tem de pegar condução, gasta combustível, paga bilhete, fica encalacrado no trânsito, o PIB aumenta. E se precisar fazer terapia porque ficou neurótico de passar três horas por dia no trânsito, o PIB vai aumentar de novo (risos). Se você trabalha em algo que é muito prazeroso e lhe dá grande sentido de realização, mas ganha pouco, o PIB só registra seu pequeno salário. Se passa a fazer algo que detesta, para uma finalidade que condena, mas ganha uma fortuna, o PIB sobe. Temos de nos libertar dessa métrica monetária. Cria uma ilusão de que quanto mais renda, melhor. O americano com renda mediana está entre os 5% mais ricos do planeta. No entanto, sente que lhe faltam mais coisas materiais do que a maior parte dos outros 95%. E o mundo parece sonhar com esse padrão americano. E parece estar disposto a sacrificar outros valores, inclusive ambientais, para chegar à situação do americano.
Não há jovens querendo desacelerar?
É difícil. Há um descontentamento, mas são gestos isolados, em grande medida geracionais. A gente, com certa idade, já viu isso acontecer (risos). Era muito jovem, nos anos 1970, e imaginava que viveria liberto dos falsos valores. Não foi bem o caso (risos). Agora, não deixa de ser relevante, como sintoma de insatisfação e descontentamento. É mais geracional, por mais que desejasse o contrário.
Nada de autoenganos...
Não (risos). Agora, o problema existe. É difícil encontrar, em qualquer lugar do mundo, alguém satisfeito com o curso que as coisas tomaram. Há um descontentamento generalizado. Tem um verso do Bob Dylan que adoro, “everybody gotta wonder what’s the matter with this cruel world today”. Expressa esse sentimento, “todo mundo deve estar se perguntando o que acontece com esse mundo cruel de hoje em dia”.
Você propõe “sonhar o Brasil” com “depuração paciente do tempo”. Teremos um país melhor no longo prazo em que, segundo John Maynard Keynes, estaremos todos mortos?
(risos) Não. Tenho brincado em palestras usando essa popular fórmula de Keynes, que ele usa no Tratado sobre reforma monetária. Digo que, no Brasil, é o contrário: no curto prazo estamos mortos, mas no longo estaremos vivos (risos).
Como se ressuscita?
Aprendendo com os erros e não confundindo o circunstancial da conjuntura com o permanente da cultura.
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Nem sei se posso, mas quero. Entrevista com Eduardo Giannetti
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