03 Junho 2016
Justamente quando a encíclica do Papa Pio XII dedicada ao Sagrado Coração de Jesus completa 60 anos – tendo sido publicada no dia 15 de maio de 1956 –, nessa quinta-feira, Francisco, dirigindo-se aos sacerdotes que participam do retiro jubilar, recordou o documento pontifício, aconselhando a sua leitura. Como se sabe, trata-se da encíclica de Eugenio Pacelli dedicada à devoção ao Sagrado Coração de Jesus (Haurietis aquas).
Por isso, o sítio Il Sismografo, 02-06-2016, retomou uma carta do Papa Bento XVI, enviada em 2006 ao então prepósito-geral da Companhia de Jesus, Peter-Hans Kolvenbach, por ocasião dos 50 anos da encíclica.
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Carta do Papa Bento XVI por ocasião do 50º aniversário da encíclica Haurietis aquas (2006)
Ao Reverendíssimo Padre
Peter-Hans Kolvenbach, S. I.
Prepósito-geral da Companhia de Jesus
As palavras do profeta Isaías – "Haurireis águas com alegria das fontes da salvação" (Is 12, 3) – que abrem a encíclica com que Pio XII recordava o primeiro centenário da extensão a toda a Igreja da Festa do Sagrado Coração de Jesus – hoje, 50 anos depois, não perderam nada do seu significado. Ao promover o culto ao Coração de Jesus, a encíclica Haurietis aquas exortava os fiéis a se abrirem ao mistério de Deus e do Seu amor, deixando-se transformar por Ele.
A 50 anos de distância, continua sendo uma tarefa sempre atual para os cristãos continuar aprofundando a sua relação com o Coração de Jesus, de modo a reavivar em si mesmos a fé no amor salvífico de Deus, acolhendo-O sempre melhor na própria vida.
O lado transpassado do Redentor é a fonte à qual nos remete a encíclica Haurietis aquas: dessa fonte devemos beber para alcançar o verdadeiro conhecimento de Jesus Cristo e experimentar mais profundamente o Seu amor. Assim, poderemos compreender melhor o que significa conhecer em Jesus Cristo o amor de Deus, experimentá-Lo mantendo o olhar fixo n'Ele, até viver completamente da experiência do Seu amor, para, depois, poder testemunhá-Lo aos outros.
De fato, para retomar uma expressão do meu venerado antecessor João Paulo II, "perto do Coração de Cristo, o coração humano aprende a conhecer o sentido verdadeiro e único da vida e do próprio destino, a compreender o valor de uma vida autenticamente cristã , a se guardar de certas perversões do coração, a unir o amor filial a Deus ao amor ao próximo. Assim – e esta é a verdadeira reparação do Coração do Salvador –, sobre as ruínas acumuladas pelo ódio e pela violência, poderá ser edificada a civilização do Coração de Cristo" (Ensinamentos, vol. IX/2, 1986, p. 843).
Conhecer o amor de Deus em Jesus Cristo
Na encíclica Deus caritas est, eu citei a afirmação da Primeira Carta de São João: "Nós conhecemos e cremos no amor que Deus nos tem", para enfatizar que, na origem do ser cristão, há o encontro com uma Pessoa (cf. n. 1). Como Deus se manifestou de forma mais profunda mediante a encarnação do seu Filho, tornando-se "visível" n'Ele, é na relação com Cristo que podemos reconhecer verdadeiramente quem é Deus (cf. Enc. Haurietis aquas, 29-41; Enc. Deus caritas est, 12-15). E ainda: como amor de Deus encontrou a sua expressão mais profunda no dom que Cristo fez da Sua vida por nós na Cruz, é especialmente olhando para o Seu sofrimento e para a Sua morte que podemos reconhecer, de forma cada vez mais clara, o amor sem limites que Deus tem por nós: "Deus amou tanto o mundo, que entregou o seu Filho único, para que todo o que nele crê não morra, mas tenha a vida eterna" (Jo 3, 16).
Esse mistério do amor de Deus por nós, no entanto, não é apenas o conteúdo do culto e da devoção ao Coração de Jesus: ele é, do mesmo modo, o conteúdo de toda verdadeira espiritualidade e devoção cristã. Portanto, é importante salientar que o fundamento dessa devoção é tão antigo quanto o próprio cristianismo.
De fato, ser cristão só é possível com o olhar dirigido para a Cruz do nosso Redentor, "para Aquele que transpassaram" (Jo 19, 37; cf. Zc 12, 10). Com razão, a encíclica Haurietis aquas recorda que a ferida do lado e as feridas deixadas pelos pregos foram, para inúmeras almas, os sinais de um amor que deu forma cada vez mais incisivamente na sua vida (cf. n. 52).
Reconhecer o amor de Deus no Crucificado tornou-se, para elas, uma experiência interior que as fez confessar, junto com Tomé: "Meu Senhor e meu Deus!" (Jo 20, 28), permitindo-lhes alcançar uma fé mais profunda na acolhida sem reservas do amor de Deus (cf. Enc. Haurietis aquas, 49).
Experimentar o amor de Deus voltando o olhar ao Coração de Jesus Cristo
O significado mais profundo desse culto ao amor de Deus se manifesta apenas quando se considera mais atentamente a sua contribuição não só ao conhecimento, mas também, e principalmente, à experiência pessoal desse amor na dedicação confiante ao seu serviço (cf. Enc. Haurietis aquas, 62).
Obviamente, experiência e conhecimento não podem ser separados: uma faz referência ao outro. No entanto, é preciso salientar que um verdadeiro conhecimento do amor de Deus só é possível no contexto de uma atitude de humilde oração e de generosa disponibilidade. Partindo dessa atitude interior, o olhar posto no lado transpassado pela lança se transforma em silenciosa adoração. O olhar para o lado transpassado do Senhor, do qual brotam "sangue e água" (cf. Jo 19, 37), nos ajuda a reconhecer a multidão dos dons de graça que daí provêm (cf. Enc. Haurietis aquas, 34-41) e nos abre a todas as outras formas de devoção cristã que são abrangidas no culto ao Coração de Jesus.
A fé entendida como fruto do amor de Deus experimentado é uma graça, um dom de Deus. Mas o homem poderá experimentar a fé como uma graça apenas na medida em que ele a aceita dentro de si como um dom, do qual busca viver. O culto ao amor de Deus, ao qual a encíclica Haurietis aquas convidava os fiéis (cf. ibid., 72), deve nos ajudar a recordar incessantemente que Ele tomou sobre Si esse sofrimento voluntariamente "por nós", "por mim".
Quando praticamos esse culto, não só reconhecemos com gratidão o amor de Deus, mas continuamos a nos abrir a tal amor, de modo que a nossa vida seja cada vez mais modelada nele. Deus, que derramou o Seu amor "nos nossos corações por meio do Espírito Santo que nos foi dado" (Rm 5, 5), nos convida incansavelmente a acolher o Seu amor. O convite a se doar inteiramente ao amor salvífico de Cristo e a se dedicar a ele (cf. ibid., 4), portanto, tem como objetivo primeiro a relação com Deus. É por isso que esse culto, totalmente dirigido ao amor de Deus que se sacrifica por nós, é de uma importância tão insubstituível para a nossa fé e para a nossa vida no amor.
Viver e testemunhar o amor experimentado
Quem aceita o amor de Deus interiormente, é moldado por ele. O amor de Deus experimentado é vivido pelo homem como um "chamado" ao qual ele deve responder. O olhar dirigido ao Senhor, que "tomou as nossas enfermidades e carregou as nossas doenças" (Mt 8, 17), nos ajuda a nos tornarmos mais atentos ao sofrimento e à necessidade dos outros.
A contemplação adorante do lado transpassado pela lança nos torna sensíveis à vontade salvífica de Deus. Torna-nos capazes de nos confiar ao Seu amor salvífico e misericordioso, e, ao mesmo tempo, nos fortalece no desejo de participar na Sua obra de salvação, tornando-nos Seus instrumentos. Os dons recebidos do lado aberto, do qual brotaram "sangue e água" (Jo 19, 34), fazem com que a nossa vida também se torne para os outros fonte da qual emanam "rios de água viva" (Jo 7, 38 ) (cf. Enc. Deus caritas est, 7).
A experiência do amor obtida pelo culto do lado transpassado do Redentor nos protege do risco de encurvamento sobre nós mesmos e nos torna mais disponíveis a uma vida pelos outros. "Nisto conhecemos o amor de Deus: Ele deu a sua vida por nós; e assim nós devemos dar a nossa vida por nossos irmãos" (1Jo 3, 16) (cf. Enc. Haurietis aquas, 38).
A resposta ao mandamento do amor só é possível pela experiência de que esse amor já foi dado antes por Deus (cf. Enc. Deus caritas est, 14). O culto do amor que se torna visível no mistério da Cruz, representado em cada celebração eucarística, portanto, constitui o fundamento para que nós possamos nos tornar pessoas capazes de amar e de se doar (cf. Enc. Haurietis aquas, 69), tornando-nos instrumentos nas mãos de Cristo: só assim é possível ser anunciadores credíveis do Seu amor.
Esse abrir-se à vontade de Deus, porém, deve se renovar a cada momento: "O amor nunca está 'concluído' e completado" (cf. Enc. Deus caritas est, 17). O olhar para o "lado transpassado pela lança", no qual refulge a ilimitada vontade de salvação de Deus, portanto, não pode ser considerado uma forma passageira de culto ou de devoção: a adoração do amor de Deus, que encontrou no símbolo do "coração perfurado" a sua expressão histórico-devocional, continua sendo indispensável para uma relação viva com Deus (cf. Enc. Haurietis aquas, 62).
Com o desejo de que o cinquentenário sirva para estimular em muitos corações uma resposta cada vez mais fervorosa ao amor do Coração de Cristo, concedo ao senhor, Reverendíssimo Padre, e a todos os religiosos da Companhia de Jesus, sempre muito ativos na promoção dessa devoção fundamental, uma especial Bênção Apostólica.
Do Vaticano, 15 de maio de 2006
BENEDICTUS PP. XVI
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Papa Francisco indica a devoção ao Sagrado Coração de Jesus aos padres. O que Bento XVI pensava a respeito - Instituto Humanitas Unisinos - IHU