29 Abril 2016
Com base na narrativa evangélica, e em particular do relato do diálogo entre Pilatos e Jesus segundo o Evangelho de João, Jesus foi capaz de conduzir Pilatos, vertiginosamente, ao limiar de um mundo novo.
A análise é do historiador italiano Sergio Luzzatto, professor da Universidade de Turim. O artigo foi publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 24-04-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Há cerca de 30 anos, a relação entre história e memória se tornou central na reflexão dos historiadores mais avisados. E ainda mais que, nesse meio tempo, uma variedade de dinâmicas ideológicas, epistemológicas, estilísticas contribuiu para tornar a distinção entre história e memória relativamente pouco clara – ou deliberadamente opaca – aos olhos dos não adeptos aos trabalhos.
Hoje, é sobre uma estudada confusão entre história e memória que se sustenta toda uma produção de livros ou de filmes ambientados no passado e irredutíveis às distinções tradicionais, realidade ou invenção, ficção ou não ficção, ensaio ou romance.
Historiador de absoluto nível, Aldo Schiavone não é suspeito de ignorar a distinção entre história e memória. Ao contrário, ele tem tanta clareza sobre ela a ponto de explicitá-la já no (sub)título do seu livro Ponzio Pilato. Un enigma tra storia e memoria [Pôncio Pilatos. Um enigma entre história e memória].
A história, aqui, é a história do Império Romano: o caso do governador da Judeia no tempo da pregação e da crucificação de um judeu de Nazaré chamado Jesus. E a memória é a memória da boa nova: o relato dos eventos como foi transmitido pelas primeiras fontes cristãs, começando pelos Evangelhos. Enquanto o enigma do subtítulo é o relacionado com o comportamento do prefeito Pilatos. O comportamento de quem – proverbialmente – se lava as mãos, deixando para outros (os sacerdotes do Sinédrio, o povo de Jerusalém) a responsabilidade de decidir o destino de Jesus? Ou o comportamento de quem sofre – no seu coração – o fascínio do Mestre e que, deixando que se cumpra a tragédia do Gólgota, pretende contribuir, paradoxalmente, com a história da salvação?
O primeiro mérito do livro de Schiavone consiste na forma como está escrito. Sem qualquer arreio acadêmico, nem a menor concessão ao jargão especialístico. Movendo-se dentro de uma literatura infindável, Schiavone entrega um relato tão palpitante na forma, quanto transparente na substância: o seu Pôncio Pilatos pode ser percorrido e entendido também pelo menos versado dos leitores generalistas. Até mesmo as mais intrincadas questões textuais e interpretativas que, há mais de um século, cansam os especialistas são quase milagrosamente explicadas, sem, por isso, ficarem banalizadas.
O âmbito em que Schiavone coloca mais da sua capacidade, onde mais soma às reconstruções atuais, é a da relação entre Pilatos e Jesus como um fragmento entre muitos no quadro geral do governo romano das províncias durante a era de Tibério.
Restituída à historicidade do seu contexto, a crise ocorrida em Jerusalém por volta do ano 30 – a necessidade política com que o quinto prefeito da Judeia romana se encontrou de gerir o conflito entre um jovem e carismático profeta da Galileia e as mais altas autoridades do Templo de Jerusalém – pode parecer um episódio comum, quase ordinário, dentro das disputas de poder, das lógicas de compromisso, das exigências de consenso que eram supervisionadas pela administração imperial no Oriente.
Nos anos imediatamente anteriores à crise do ano 30, o prefeito Pilatos tinha sido levado às vezes a avançar, às vezes a ceder, em torno de questões como o direito dos soldados romanos de penetrar em Jerusalém com insígnias imperiais, ou o direito das autoridades romanas de recorrer ao tesouro do Templo para a construção de um novo aqueduto.
É banal, portanto, ao seu modo, a crise do ano 30. Mas também epocal, evidentemente. E epocal – segundo Schiavone – não tanto pelas fatídicas consequências judiciais de sabe-se lá qual "processo contra Jesus", mas pela extraordinária aceleração cultural que Jesus mesmo teria conseguido transmitir à história do Ocidente através do seu encontro com Pilatos.
Com base na narrativa evangélica, e em particular do relato do diálogo entre Pilatos e Jesus segundo o Evangelho de João, Schiavone defende, de fato, que Jesus foi capaz de conduzir Pilatos, vertiginosamente, ao limiar de um mundo novo.
"O meu reino – explica Jesus a Pilatos – não é deste mundo." O reino cristão não era mais o das antigas Escrituras, onde o poder de Deus se refletia sem mediações no poder mundano, e a ofuscante luz do Reino coincidia com a terrível majestade do Deus dos exércitos.
"Deem a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus": a vertigem do limiar ao qual Jesus acompanha Pilatos é o da separação entre os dois reinos, em que o Deus dos exércitos é substituído, por meio do sacrifício do Filho desejado pelo próprio Pai, um Deus de amor.
Os historiadores do cristianismo antigo poderão encontrar, na reconstrução de Schiavone, algumas coisas que não fazem sentido. E não só pela sua escolha de empregar como únicas fontes protocristãs os Evangelhos sinóticos a despeito dos chamados apócrifos, ou pela escolha de considerar o Evangelho de João como mais imediatamente útil do que o de Mateus, Marcos e Lucas na restituição da "realidade" da Palestina do século I.
O problema decorre, principalmente, da maneira em que Schiavone reconhece ou rejeita – de vez em quando – o valor de testemunho histórico dos próprios Evangelhos. Ou seja, sem definir com rigor os critérios filológicos ou historiográficos que o orientam em um caso como em outro. E o problema decorre ainda mais da maneira pela qual Schiavone aceita considerar o Evangelho de João, para o diálogo entre Pilatos e Jesus, como um relato largamente fiel e substancialmente confiável. Quase como uma transcrição estenográfica.
Mas o livro de Schiavone não pede para ser julgado com base em parâmetros estritamente científicos. E o próprio modo pelo qual o autor pensa sobre o "enigma" entre história e memória é apresentado – já no prólogo – como um modo desequilibrado em relação ao prato da memória em vez do prato da história. Sensivelmente, o coração de Aldo Schiavone já bate mais forte pela potência (e pelo mistério) da rememoração cristã do que pela ciência da história judaico-romana.
Assim – e embora o autor defina como nada mais do que um "belo romance" o livro recente de Emmanuel Carrère sobre os conventículos dos primeiros cristãos, Il Regno [O Reino] – caberá ao leitor encerrar esse Pôncio Pilatos com a impressão de ter lido outro romance belo ou até muito belo.
Depois, o fato de que a história "também tenha acontecido – nos fatos e não só na memória, e, por acréscimo, nos termos em que a contamos – poderia ser, dentre todas coisas, a menos importante".
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Pilatos no limiar de um mundo novo. Artigo de Sergio Luzzatto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU