24 Fevereiro 2016
“Os países submetidos a uma dívida pública impagável (parte dela ilegítima), ou escolhem ou são obrigados a mimetizar - nos seus respectivos territórios - as formas de produzir, o estilo de vida, a cultura consumista suntuária das classes médias altas dos “líderes” da economia mundial, sem resgatar a maioria das famílias da exclusão ou da pobreza. As medidas “polêmicas” do presidente Macri, na Argentina, abrem um período de “exceção”, naquele país, cujos resultados também podem ser devastadores, em termos sociais e políticos”, escreve Tarso Genro, ex-governador do Rio Grande do Sul, em artigo publicado por Sul21, 22-02-2016.
Segundo ele “o que poderá barrar a exceção é um novo contrato social, ainda que temporalmente acordado, através de um novo processo constituinte. Fora disso, tudo indica que caminharemos para uma situação propícia a uma guerra civil, ainda que não declarada”.
Eis o artigo.
Sergio Paulo Rouanet, insuspeito de ser um “radical”, escreveu que “uma atitude reverente com a letra do patrimônio iluminista é a melhor maneira de trair o seu espírito”. Ninguém foi mais irreverente com este patrimônio no Século XX, no campo da Teoria do Direito, do que o filósofo da “exceção”, Carl Schmitt. Só que a sua irreverência cortejou, não o alargamento das liberdades e dos pressupostos de igualdade, originários das “luzes”. Sua poderosa inteligência voltou-se para destruir os fundamentos humanistas do iluminismo democrático, que se projetaram, de algum modo, nas grandes mudanças que começaram com a Revolução Francesa.
A filosofia de Schmitt acabou por justificar Hitler e os fascismos, que lhe antecederam e sucederam. Debater em profundidade a “exceção”, na ordem global do capital financeiro, hoje -como um elemento político imprescindível para uma saída conservadora da crise do Estado e da representação- é uma irreverência democrática que ainda não cometemos. Nós, da esquerda e do campo democrático, que nos unimos na defesa do Estado Social de Direito, como diz Zigmunt Baumann, considerando o “justo” e a “justiça”, como processo sempre em aberto, não como moldura fixa e acabada de um desejo. Com este artigo, quero contribuir para este debate.
O conceito básico de Schmitt, do qual ele parte para justificar a supremacia do Estado sobre a lei, é que, no conceito de “normalidade” está implícita a própria ideia de “exceção”. E que, por isso, a decisão de “exceção” - a ser tomada pelo soberano em defesa da permanência do Estado - é o que dá significado e funcionalidade à própria ordem jurídica. Assim, “regra” e “exceção”, se convertem permanentemente uma na outra. Onde está o autoritarismo embrutecedor de Schmitt? É verdadeiro que a “exceção”, furtiva ou abertamente, percorre qualquer ordem jurídica, porque as leis não podem prever tudo, para regular a ação administrativa e política dos agentes públicos, mas o pensamento de Schmitt dá uma tal primazia às decisões fora de qualquer previsão constitucional, que o próprio sentido do jurídico e da legitimidade da ordem, ficam amparados apenas pela força.
Nesta hipótese, o Estado sufoca e elimina o direito e afirma a ditadura, em qualquer regime econômico ou sistema político. Os valores cristalizados no texto constitucional - os seus fundamentos e princípios - que inspiraram o poder constituinte do povo, passam a não ter nenhuma importância, o que lhe permitiu dizer de forma clara, que “o Führer” protege o direito. Falta Kant (valores), Kelsen (sentido de hierarquia nas normas) e Bloch (humanismo democrático), em Schmitt. Para a “exceção”, cortejada por Schmitt, a inviolabilidade dos direitos, de uma parte, e o princípio da igualdade formal, de outra, fundamentos do Estado Democrático de Direito, não tem nenhuma importância para dar legitimidade à ordem jurídica.
A necessidade do apelo à “exceção” aumenta com a gravidade das crises. E com a asfixia do estreito caminho (“sem saída?), a que nos levou o capitalismo financeiro, turbinado pelas novas tecnologias e pelo consumo predatório. Ela, a “exceção”, no contexto de crise, começa como uma pequena célula, torna-se semente e se transforma numa erva daninha do tecido democrático. Ela pode viabilizar, pela força, políticas de Estado processuais, que ofendem os direitos fundamentais e que não poderiam ser implementadas num ambiente de normalidade, no qual a “exceção” não tem maior significado político.
A obsolescência programada e a criação necessidades artificiais, para as classes médias altas, são programas econômicos naturalmente de “exceção”, dentro da normalidade do funcionamento da ordem jurídica do capitalismo. Mas eles compõem o cenário de “normalidade”, daquilo que os economistas chamam de novo “padrão de acumulação”. A “exceção”, tornada política de Estado, porém, capilariza-se independentemente de uma maior consciência ou convencimento dos seus operadores burocráticos: ela é o “direito natural” defensivo, numa determinada época, do Estado que está sendo chamado a esgotar, pelas reformas exigidas pelo capital financeiro, as suas funções públicas originárias.
Ao invés de desenvolver modos de produzir riqueza social e desconcentrá-la, os ajustes, nas crises, induzem à concentração de renda e a desigualdade, impingidos por uma dupla força: a força política da burocracia superior do Estado e a força da mídia partidarizada, que não formam um bloco homogêneo, politicamente, mas compõem um pacto implícito de hegemonia. Não é novidade para ninguém, que a Terra não dispõe de recursos que permitam que países como Brasil, a Índia, o Paquistão, a África do Sul e a China, tenham o “modo de vida” e consumo dos Estados Unidos, do Canadá, da Europa Ocidental e da Inglaterra. Apenas um exemplo, também lembrado por Baumann: a Tanzânia -um dos países mais pobres do mundo- gera, anualmente, 2,2 bilhões de dólares, para 25 milhões de habitantes; a Goldman Sachs, uma empresa financeira, gera uma renda de 2.6 bilhões de dólares, para 161 acionistas.
Mesmo assim, os países submetidos a uma dívida pública impagável (parte dela ilegítima), ou escolhem ou são obrigados a mimetizar - nos seus respectivos territórios - as formas de produzir, o estilo de vida, a cultura consumista suntuária das classes médias altas dos “líderes” da economia mundial, sem resgatar a maioria das famílias da exclusão ou da pobreza. As medidas “polêmicas” do presidente Macri, na Argentina, abrem um período de “exceção”, naquele país, cujos resultados também podem ser devastadores, em termos sociais e políticos.
No relatório do “Estado da União Europeia”, publicado pela Fundação Ebert e pela Fundação Alternativas (2013, 219 pgs.) está clara a forma pela qual o ajuste europeu pretende vencer a crise: “os bancos só utilizam (os recursos dos fundos europeus) para sanear os seus balanços e não para dar liquidez creditícia às empresas”. Esta simples informação tem um significado enorme, pois ela é a síntese dos ajustes que são promovidos, em escala mundial, nos países estrangulados pela dívida pública. Troquem “bancos”, por “Estados devedores” e a equação ficará completa: o ajuste é fim um si mesmo. Ele não reforma o Estado para torná-lo mais público, nem reorganiza os processos de produção para melhorar emprego e renda. Na melhor das hipóteses, retoma o crescimento, com menos empregos e mais desigualdades.
Não se trata de uma questão europeia ou latino-americana, pois isso foi exatamente o que ocorreu nos Estados Unidos, depois da crise do “sub-prime”. Após a “estatização” (para socorro), até de empresas automobilísticas e após o repasse de bilhões de dólares – para reerguer um sistema bancário que tinha enganado o povo, o fisco e o governo - o déficit público americano tornou novamente “saudável” os bancos e as agências de risco, com a conta repassada para o mundo.
No plano político, tanto no âmbito doméstico como nas relações internacionais, o resultado foi um só: subemprego, desemprego, insegurança e aumento da “exceção”. A crise financeira mundial, que reflete em todos os países, é uma crise duríssima dos Estados devedores e não dos proprietários da dívida, já que, naqueles, ela bate precisamente no limite da sobrevivência das famílias pobres e dos que precisam de socorro do Estado, para não serem tragados pela miséria.
Os economistas liberais acostumaram a sociedade a pensar que a única alternativa é essa. É possível ouvir esta mesma cantilena, tanto de grandes empresários, como de pequenos, tanto de pequenos comerciantes, como de pessoas da classe média não abonada. Seria bom que estas pessoas ouvissem um pouco o q tem, ou tiveram a dizer, economistas que também defendem o sistema capitalista, mas que entendem que estes ajustes são a própria ruína do capitalismo: Stiglitz, Thomas Piketty, James Tobin, Joan Robinson (a inimiga de todas as ortodoxias), são nomes de grandes economistas – vivos ou falecidos - que repudiaram estas formas de ajuste, que só podem ser bancadas com autoritarismo e “exceção”.
A democracia só sobrevive se ela se torna, como disse Pasolini a respeito de um poema da sua autoria, “uma fonte de luz que possa vir a ter um valor retroativo”. O significado da frase de Pasolini - trazendo o tema da democracia para a sua crise atual - seria buscar paradigmas, para verificar se esta crise é original ou se ela tem traços universais, experiências históricas análogas, capazes de nos dar um rumo para enfrentar o abismo.
Falo nestes termos porque penso que dos resultados dos ajustes atuais e dos seus reflexos, no espaço político -jurídico, teremos formas novas de controle social, novas interpretações sobre o alcance dos direitos individuais, aumento do autoritarismo via “exceção”, cujo resultado pode até comprometer a concepção do moderno Estado Social de Direito, que é o que mantém as pessoas agrupadas em torno da Constituição, no sistema democrático capitalista.
Por mais árido que seja, penso que a questão do Estado de Direito e da “exceção”, hoje, devem ser temas fundamentais na pauta política do país. Em momentos de normalidade, nos quais a instituições funcionam num padrão de estabilidade razoável – com problemas e soluções previsíveis - a política é discutida com aquelas categorias específicas do ritual democrático: maioria e minoria, alcance das normas positivas para a proteção dos direitos políticos dos indivíduos e dos partidos, pequenos desequilíbrios no balanceamento dos poderes, influências do poder econômico. Em momentos de crise, a “exceção” invade o terreno próprio da política e de todo o edifício democrático.
A situação que atravessa o país não é igual, quero insistir, a que ocorreu na época da crise da República de Weimar. Mas é análoga, guardadas as características nacionais e a própria diferença de origem das classes ricas de cada país, confrontadas com o sistema de direito que cada uma delas construiu – no Brasil e na Alemanha - nos respectivos períodos de formação dos seus Estados “modernos”. A Alemanha com a república de Weimar, o Brasil com a Revolução de 30.
Em ambas as crises, porém, podemos apontar duas semelhanças significativas: a destruição da esfera da política, como esfera de comunicação entre partes adversas; e o surgimento da “exceção”, com tendência a se tornar ” regra”, para isolar da sociedade uma facção, que, de forma manipulatória, pode ser apontada como responsável pela crise. Neste contexto, “a exceção”, tornada direito, começa a fragilizar a política e os direitos individuais e coletivos da cidadania, começam a se tornar mais vulneráveis. A medida do “direito igual”, passa a ser substituída por uma outra medida: a medida do “direito mais conveniente”, para manter o Estado funcionando sem comprometer os fundamentos materiais que o constituíram.
Walter Benjamim, falando sobre a arquitetura e a cultura da cidade moderna, disse que “todas as coisas submetidas a um processo incontido de mistura e contaminação, perdem o que é a sua expressão essencial, de modo que o ambíguo ocupa (…) o lugar do autêntico”. A formulação de Benjamim pode servir muito bem para uma reflexão sobre a conversão do “direito em exceção”, e da “exceção em direito”, no âmbito da crise do Estado moderno, tal qual ele funciona hoje. Esta “contaminação” do direito democrático pela ”exceção” ocorre porque a situação de crise abre lacunas, cuja regulação não foi nem poderia ser prevista pelo direito da Constituição, que só podem ser preenchidas por “decisões políticas”, num espaço decisório que está fora das leis.
Exemplo desta situação, não prevista de maneira formal e direta, é o conflito entre a “força normativa da constituição” e a “força normativa do capital financeiro”. Este necessita moldar o funcionamento do Estado para garantir, em primeiro lugar, os direitos dos credores da dívida pública, secundarizada a dívida do Estado com os credores dos direitos sociais e fundamentais. É um impasse não escolhido, individualmente, por ninguém, que se alimenta de lacunas tão significativas na ordem constitucional, como o são as regras constitucionais escritas.
O exemplo não é de difícil compreensão: entre violar o “direito de propriedade” (dos “proprietários” da dívida pública, por exemplo), para tentar superar a crise, ou violar o “direito a um salário justo” (dos “proprietários da força de trabalho”, por exemplo) para superá-la, o que será escolhido, para ser vulnerabilizado pela “exceção”, será a violação dos direitos dos donos da força de trabalho. Não porque os governantes optem, livremente, por esta solução, mas porque as garantias do direito ao salário justo é o elo mais fraco e mais abstrato, que tem uma proteção menos eficaz do sistema jurídico, do que o direito de propriedade.
É que a Constituição prevê direitos só formalmente iguais, mas a força material destes direitos é criada fora da Constituição e anteriormente à Constituição. Logo, se a crise econômica e financeira desestrutura o edifício de direitos e a crise não pode ser superada sem que algo, neste edifício, seja sacrificado, o sacrifício já está resolvido pelas relações reais de poder, que todas as Constituições refletem. Não é difícil saber, por isso, contra quem a “exceção” vai se voltar, “naturalmente”: é o “direito natural” da força do capital financeiro que indica a solução.
A partir de setembro de 1935, quando as chamadas Leis de Nuremberg revogaram os direitos de cidadania dos judeus e legalizaram o “antissemitismo biológico e racial dos nazistas”, todas as “exceções”, que já vinham sendo toleradas pelo Estado – mesmo antes da ascensão definitiva de Hitler ao poder - se condensaram como “regras”, com pretensão jurídica. Carl Schmitt, o teórico da “exceção”, as defendeu galhardamente. Na verdade, cada um dos atos de “exceção”, tolerados pela sociedade antes da ditadura de Hitler – acolhidos por juristas como Schmitt – tinham sua singularidade justificada, predominantemente, pela política. E o foram, até serem ordenados num sistema de poder coerente, para fazer o Estado subsistir, como disse Ernest Bloch (no seu “Direito Natural e Dignidade Humana”), com o direito retrocedendo a um segundo plano: “como o estado de exceção é sempre distinto da anarquia e do caos, subsiste, em sentido jurídico uma ordem, ainda que não uma ordem jurídica”.
O Ministério Público pede a condenação de Haddad e Tatto por ciclovia; o processo do Senador Aécio Neves é arquivado sem qualquer investigação; o STF altera a regra do cumprimento das penas não transitadas em julgado; o juiz Moro consolida uma jurisdição nacional, fora de qualquer abrigo legal; as pessoas são mantidas presas, sem qualquer condenação, para fazerem delações premiadas (reféns do Estado de Direito); vazamentos indiscriminados contra o Presidente Lula, já fazem parte do ritual de parte do MP e parte da Polícia Federal; o Tribunal Superior Eleitoral se avoca a possibilidade de interromper o mandato presidencial; a mídia partidarizada transforma os processos e as investigações numa rotina de espetáculos degradantes, tanto para a Justiça como para os investigados. A segurança jurídica foi pelo ralo e o combate à corrupção, que deveria ser universal, torna-se um particularismo da “exceção” dentro do ajuste, que se não for feito agora, será feito depois.
Se fosse uma mera conspiração, como foi a “República do Galeão”, seria fácil de ser combatida, mas é mais dramático. É possível verificar que distintos atores, de formações ideológicas e simpatias políticas divergentes - inclusive com enfoques diferenciados sobre o alcance do Estado de Direito - mudam de “lado”, conforme o tema, ora confortando a “exceção”, ora se rebelando contra ela. Trata-se de um modo já “misto”, não autêntico, de funcionamento do Estado de Direito, no que se refere ao alcance da “exceção”. Mas é uma forma arriscada de partidarização do funcionamento do Estado, no qual a “exceção” vai, paulatinamente, se tornando regra, com o apoio da maior parte da sociedade, que recebe uma carga inédita diária e brutal de informações manipuladas. O que poderá barrar a exceção é um novo contrato social, ainda que temporalmente acordado, através de um novo processo constituinte. Fora disso, tudo indica que caminharemos para uma situação propícia a uma guerra civil, ainda que não declarada.
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De novo Weimar: exceção e fascismo como ordem na crise - Instituto Humanitas Unisinos - IHU