06 Janeiro 2016
"Da mesma forma, a segurança em questão hoje não se destina a impedir atos de terrorismo. Destina-se a estabelecer uma nova relação com os homens, que é a de um controle generalizado e ilimitado – daí a ênfase particular em dispositivos que permitem o controle completo de dados informáticos e de comunicação dos cidadãos, incluindo o direito de remoção integral do conteúdo de computadores", destaca Giorgio Agamben, filósofo italiano e professor, em artigo publicado por Outras Palavras, 04-01-2016. A tradução é de Pedro Lucas Dulci.
Eis o artigo.
O estado de emergência não é um escudo que protege a democracia. Pelo contrário, ele sempre acompanhou as ditaduras e até forneceu um quadro jurídico para as atrocidades da Alemanha nazista. A França deve resistir à política do medo.
Não será possível compreender o verdadeiro problema da prorrogação do estado de emergência nesse país – até o final de fevereiro – se ele não for examinado no contexto de uma transformação radical do modelo de Estado que se tornou familiar. É preciso, acima de tudo, desmentir as palavras das mulheres e homens políticos irresponsáveis, segundo as quais o estado de emergência seria um escudo para a democracia.
Os historiadores estão bem conscientes de que o oposto é verdadeiro. O estado de emergência é precisamente o dispositivo pelo qual os poderes totalitários instalaram-se na Europa. Nos anos que antecederam a tomada do poder por Hitler, os governantes social-democratas da República de Weimar tinham recorrido tantas vezes ao estado de emergência (estado de exceção, como é chamado na Alemanha), que se pode dizer que esse país já tinha cessado, antes de 1933, de ser uma democracia parlamentar.
Mas o primeiro ato de Hitler, após a sua nomeação, foi proclamar de novo o estado de emergência, que nunca foi revogado. Quando nos surpreendemos com os crimes que foram cometidos com impunidade pelos nazistas na Alemanha, nos esquecemos de que essas ações eram perfeitamente legais, pois as liberdades individuais haviam sido suspensas.
Não está claro por que tal cenário não se repetiria na França. É possível imaginar sem dificuldade um governo de extrema-direita servir-se, para seus propósitos, de um estado de emergência a que os governos socialistas tornaram agora os cidadãos acostumados. Em um país que vive em uma emergência prolongada, e em que as operações policiais vão substituir gradualmente o Judiciário, devemos esperar uma deterioração rápida e irreversível das instituições públicas.
Isto é especialmente verdadeiro já que o estado de emergência faz parte do processo que atualmente faz com que as democracias ocidentais involuam para algo chamado Estado de Segurança (“Security State”, como dizem os cientistas políticos americanos). A palavra “segurança” entrou totalmente no discurso político e, pode-se dizer sem medo de errar, que as “razões de segurança” tomaram o lugar do que foi chamado anteriormente o “raison d’Etat” [razão de ser do Estado]. Uma análise desta nova forma de governo, no entanto, ainda está ausente. Como o Estado de Segurança não é nem o Estado de Direito, nem aquilo que Michel Foucault chamou de “sociedades disciplinares”, ele requer alguns marcos para uma possível definição.
No modelo do inglês Thomas Hobbes, que influenciou tão profundamente nossa filosofia política, o contrato que transfere para os poderes soberanos pressupõe medo mútuo da guerra de todos contra todos: o Estado é precisamente o que tem que acabar com o medo. No Estado de Segurança, esse padrão se inverte: o Estado é permanentemente fundamentado no medo e deve, a todo o custo, manter-se assim, uma vez que desse medo ele deriva a sua função essencial e legitimidade.
Foucault já havia mostrado que quando a palavra “segurança” aparece pela primeira vez na França no discurso político, com os governos fisiocratas de antes da Revolução, não foi para evitar desastres e fomes — mas para deixar que eles acontecessem para, em seguida, governar em um sentido que pensavam ser rentável.
Nenhum senso jurídico
Da mesma forma, a segurança em questão hoje não se destina a impedir atos de terrorismo (que também é algo extremamente difícil, se não impossível, uma vez que as medidas de segurança são eficazes apenas após o fato e o terrorismo é, por definição, uma série de primeiros disparos). Destina-se a estabelecer uma nova relação com os homens, que é a de um controle generalizado e ilimitado – daí a ênfase particular em dispositivos que permitem o controle completo de dados informáticos e de comunicação dos cidadãos, incluindo o direito de remoção integral do conteúdo de computadores.
O risco que primeiramente enfrentamos é a tendência à criação de uma relação sistêmica entre o terrorismo e segurança do Estado. Se o Estado precisa legitimar o medo, é preciso, em última análise, produzir terror, ou, pelo menos, não impedir que ele ocorra. É por isso que muitos países adotam uma política externa que alimenta o terrorismo — o qual dizem combater em seu interior — e manter relações cordiais, ou até mesmo vender armas, a Estados conhecidos para financiar organizações terroristas.
Um segundo ponto a notar é a mudança do estatuto político dos cidadãos e do povo, que deveria ser o titular da soberania. No Estado de Segurança, há uma tendência irrepreensível ao que só pode ser chamado de uma despolitização progressiva dos cidadãos, cuja participação na política é reduzida às urnas. Esta tendência é particularmente preocupante e até havia sido teorizado por juristas nazistas, definindo o povo como elemento essencialmente apolítico, cujo Estado deve garantir a proteção e o crescimento.
No entanto, de acordo com os juristas, só há uma maneira de tornar político este elemento impolítico: pela igualdade de descendência e de raça, que irá distingui-lo do estrangeiro e do inimigo. Isto não significa confundir o Estado nazista com o Estado de Segurança contemporâneo: o que se precisa entender é que, ao se despolitizar os cidadãos, eles não poderão sair de sua passividade, uma vez que eles são mobilizados pelo medo contra um inimigo estrangeiro que não seja somente externo (como no caso dos judeus na Alemanha ou, agora, com os muçulmanos na França).
É neste contexto que devemos considerar o sinistro projeto de privação da nacionalidade de cidadãos binacionais, que relembra a lei fascista de 1926 sobre a desnacionalização dos “cidadãos indignos da cidadania italiana” e leis nazistas na desnacionalização dos judeus.
Um terceiro ponto, cuja importância não devemos subestimar, é a transformação radical dos critérios que estabelecem a verdade e a certeza na esfera pública. Registra-se, acima de tudo, a um observador atento às atas de crimes de terrorismo, a renúncia total do estabelecimento da certeza jurídica.
Enquanto compreende-se, em um Estado de direito, que um crime só pode ser comprovado por um inquérito judicial, sob o paradigma de segurança devemos nos contentar com o que dizem polícia e os meios de comunicação que dela dependem – ou seja, duas instâncias que sempre foram considerados pouco confiáveis. Daí as imprecisões incríveis e as contradições patentes nas reconstruções apressadas de eventos, que conscientemente iludem qualquer possibilidade de verificação e falsificação e que mais se parecem com fofocas do que com inquéritos. Isto significa que o Estado de Segurança tem um interesse em que os cidadãos – cuja proteção ele deve assegurar – permaneçam sem saber o que os ameaça, pois incerteza e medo andam juntos.
A mesma incerteza que se encontra no texto da lei de 20 de Novembro sobre o estado de emergência, que se refere a “qualquer pessoa em relação à qual haja razões sérias para considerar que o seu comportamento é uma ameaça à ordem pública e à segurança”. É bastante óbvio que a frase “razões sérias para considerar” não tem nenhum significado jurídico e, como refere-se à arbitrariedade de quem “considera”, pode ser aplicada a qualquer momento e contra qualquer um. No Estado de Segurança, essas formas indeterminadas, que foram sempre consideradas pelos advogados como contrárias ao princípio da segurança jurídica, tornam-se a norma.
Despolitização dos cidadãos
A mesma imprecisão e os mesmos equívocos retornam nas declarações de mulheres e homens políticos, segundo os quais a França estaria em guerra contra o terrorismo. A guerra contra o terrorismo é uma contradição em termos, porque o estado de guerra é definido precisamente pela capacidade de identificar com certeza o inimigo com o qual se deve lutar. Na perspectiva securitária, o inimigo deve – pelo contrário – permanecer vago, no interior, mas também no exterior, de modo que qualquer um possa ser identificado como tal.
A manutenção de um estado de medo generalizado, a despolitização dos cidadãos, a renúncia à efetividade da lei: essas três características do Estado de Segurança, que bastam para perturbar os espíritos. Porque isso significa, em primeiro lugar, que o Estado de Segurança para o qual estamos escorregando faz o oposto do que ele promete. A segurança significa falta de preocupação (sine cura) –, enquanto ele mantém o medo e o terror. O Estado de Segurança é, por outro lado, um Estado policial, porque pelo eclipse do Poder Judiciário, ele generaliza a margem discricionária do polícia, a qual, em um estado de emergência constante, torna-se cada vez mais soberana.
Por meio da despolitização gradual dos cidadãos, convertidos de alguma forma transforma em terroristas potenciais; o Estado de Segurança, finalmente lançou-se do campo conhecido da política, para se dirigir a uma zona incerta, onde o e público e privado se confundem, e onde é difícil definir as fronteiras entre eles.
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Agamben: o flerte do Ocidente com o totalitarismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU