"O Evangelho de Lucas é introduzido pelo autor com uma abordagem que segue o estilo das obras históricas e biográficas greco-romanas, destacando sua intenção de oferecer um relato metódico e preciso dos eventos relacionados a Jesus, visando confirmar a solidez dos ensinamentos cristãos para Teófilo (Lc 1,1-4). Lucas apresenta a vida e os ensinamentos de Jesus e demonstra a formação e desenvolvimento das primeiras comunidades cristãs, revelando um percurso que vai da periferia para o centro, contrastando com o modelo de poder romano que se irradiava do centro para as margens."
A reflexão é de Gisele Canário. Ela possui graduação em teologia pelo Instituto São Paulo de Estudos Superiores e é mestra em teologia com ênfase em exegese bíblica (Antigo Testamento) pelo Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Atualmente é assessora no Centro Bíblico Verbo, onde atua na confecção de materiais para estudos bíblicos, formação em comunidades eclesiais e cursos bíblicos online. É analista de pastoral na rede Marista de colégios. Ela também desenvolve materiais didáticos para cursos de Teologia – UNIASSELVI e participa do grupo de pesquisa “Tradução e Interpretação do Antigo Testamento” (TIAT).
Primeira Leitura: Dt 4,1-2.6-8
Salmo: 14,2-3a.3cd-4ab.5
Segunda Leitura: Tg 1,17-18.21b-22.27
Evangelho: Mc 7,1-8.14-15.21-23
Estamos no 3º domingo do Tempo Comum e as leituras desse domingo nos convidam a aprofundarmos a reflexão sobre a unidade e o caminhar da Igreja. Esse caminhar segue a dinâmica da escuta da Palavra de Deus, da diversidade dos dons espirituais e do projeto de Jesus. Essa reflexão por meio das leituras que nos são apresentadas nesse domingo são importantes porque nos ajudam a entender como podemos viver o projeto de Jesus.
1. Primeira Leitura: Ne 8,2-4a.5-6.8-10 – A Lei e a Reconstrução do Templo em Neemias
Lemos em Neemias 8,2-4a.5-6.8-10 um trecho que ocorre após o retorno do exílio da Babilônia e retrata um momento crucial de restauração para o povo de Israel e de reconstrução do Templo de Jerusalém. O templo representava o centro da vida religiosa e o lugar onde Deus fazia morada. Por isso, era tão importante para a renovação da identidade israelita. Esdras realiza a leitura pública da Lei, um evento simbólico que reforça a centralidade da Torá e a renovação da aliança com Deus. Essa leitura em comunidade tinha como objetivo restabelecer a pureza da fé e proteger a identidade do povo contra influências externas e internas, ao mesmo tempo em que fomentava uma ideia de unidade e compromisso com a lei divina.
Em meio a conflitos internos e tensões com os povos vizinhos, a reafirmação da Lei e a centralidade do templo ajudaram a consolidar ainda mais a identidade religiosa de Israel e a garantir a coesão da comunidade durante todo esse processo de reconstrução. É sempre importante considerarmos que esse texto de Esdras justifica a reconstrução do templo de Jerusalém como sendo vontade de Deus. Cabe a nós contextualizarmos esses termos para fazermos uma leitura de acordo com o que os autores da época realmente queriam dizer ao narrar um texto como o que lemos em Neemias 8.
2. Segunda Leitura: 1Cor 12,12-30 – Os Dons e suas cumplicidades
Na segunda leitura Paulo utiliza a metáfora do corpo para enfatizar a importância da unidade na diversidade dentro da comunidade. Aqui, Paulo chama a atenção da comunidade para o fato de que cada membro tem um papel único e essencial no corpo de Cristo. É importante entendermos que a comunidade de Corinto enfrentava divisões e conflitos devido à falta de entendimento sobre a interdependência dos dons espirituais. Paulo, então, escreve para corrigir essa fragmentação e buscar restabelecer a unidade. Ele enfatiza que todos os dons são dados pelo Espírito Santo para o bem comum e que nenhum é superior ao outro; todos são necessários para o pleno funcionamento do corpo de Cristo.
Paulo enfatiza que todos os dons são dados pelo Espírito Santo para o bem comum e que nenhum é superior ao outro; todos são necessários para o pleno funcionamento do corpo de Cristo..(Gisele Canário)
Para nós, essa mensagem se aplica ao nos chamar a valorizar e utilizar nossos dons sempre em prol do bem comum, reconhecendo que todos temos algo muito valioso a oferecer para o bem da Igreja, nossa casa comum.
3. Evangelho (Lc 1,1-4; 4,14-21) – A Profecia é Pura Cura: A Revelação do Projeto Libertador de Jesus em Lucas
O Evangelho de Lucas é introduzido pelo autor com uma abordagem que segue o estilo das obras históricas e biográficas greco-romanas, destacando sua intenção de oferecer um relato metódico e preciso dos eventos relacionados a Jesus, visando confirmar a solidez dos ensinamentos cristãos para Teófilo (Lc 1,1-4). Lucas apresenta a vida e os ensinamentos de Jesus e demonstra a formação e desenvolvimento das primeiras comunidades cristãs, revelando um percurso que vai da periferia para o centro, contrastando com o modelo de poder romano que se irradiava do centro para as margens.
No início do ministério público de Jesus em Nazaré (Lc 4,14-21), após seu batismo e tentação, Ele lê na sinagoga um trecho de Isaías, proclamando que a profecia se cumpriu nele e delineando seu projeto de libertação e cura. Este momento é fundamental, pois Jesus redefine a expectativa messiânica, não como um libertador político, mas como aquele que oferece transformação espiritual e social de forma extremamente abrangente.
Não é à toa que a mensagem de Jesus continua desafiando nossas percepções modernas de poder e libertação, convocando todos nós, seguidores do seu projeto, a um compromisso com a justiça e a inclusão, especialmente para os marginalizados e oprimidos, e enfatizando que o Reino de Deus começa nas áreas mais negligenciadas e se expande para transformar toda a sociedade.
Não devemos esquecer que o convite de Jesus é inclusivo e transformador. Ele nos chama a reconhecer a graça de Deus em nossas vidas e a nos comprometermos com seu projeto de boas novas e libertação. Assim como o povo de Israel foi chamado a renovar sua aliança, também somos convocados a renovar nosso compromisso com a Palavra de Deus. Podemos transformar nossas vidas e comunidades ao nos dedicarmos a essa renovação constante. Da mesma forma, Paulo ensinou e convidou sua comunidade a valorizar a diversidade dos dons no corpo de Cristo. Devemos usar nossos dons para promover a unidade e o bem comum em nossas comunidades, valorizando a contribuição única de cada pessoa.
Sabemos que o mundo de hoje vive em um tempo em que o amor cristão, baseado na autodoação e no serviço aos outros, muitas vezes é ofuscado por uma cultura de individualismo e autossatisfação, ou até mesmo por uma interpretação distorcida do projeto de Jesus. Reportemo-nos a Nazaré e lembremo-nos de que Jesus viveu e continua a nos ensinar o verdadeiro amor e comprometimento com Deus e com o próximo. Essa base é essencial para vivermos plenamente nossa fé.
Que as leituras de hoje nos ajudem a redescobrir nossa vocação para a unidade e o serviço, usando nossos dons para o bem maior e proclamando as boas novas de libertação e justiça em todas as esferas de nossas vidas.