06 Março 2008
Há uma crescente polarização política entre o governo espanhol do PSOE e a Igreja católica. A Conferência Episcopal Espanhola acaba de eleger para seu presidente do cardeal Rouco, arcebispo de Madrid, um dos líderes eclesiásticos que assume posições políticas claras de confronto com o atual governo espanhol, que pode ser reeleito no próximo domingo. Rouco derrotou o ex-presidente da Conferência, bispo de Bilbao, mais dialogante e menos intransigente. A novidade é que na história da Conferência Episcopal Espanhola, o presidente em exercicio é reeleito para um segundo mandato consecutivo. Por dois votos. Rouco derrotou Blásquez, bispo de Bilbao e atual presidente. O mesmo embate, num contexto diferente, se dá na Itália. Este embate é tema do artigo de Giancarlo Zizola, jornalista italiano, veterano vaticanista, publicada pela Agência ADISTA, 04-03-2008.
Eis o artigo.
O retorno com força da Igreja no cenário eleitoral, tanto na Espanha como na Itália, tornou menos ritualista o tradicional recebimento da celebração dos Pactos Lateranenses de 19 de fevereiro no Palazzo Borromeo, sede da Embaixada da Itália junto à Santa Sé, um porto franco entre as duas margens do Tibre, útil ao seu diálogo, principalmente em momentos de tensão como o atual. Não se pode negar que a Igreja católica vá assumindo um papel mais explícito do que no passado na confusa política italiana. De fato, seu poder de interdição concorreu para bloquear projetos de lei que qualificavam o programa de governo. Bravos, por exemplo, sobre os casais de fato e sobre o testamento biológico. Dia após dia foi se consolidando a sensação de uma retomada em mão clerical da liberdade política dos católicos, interceptando sua autonomia.
O ativismo do cardeal Ruini em superaquecer os temas explosivos da bioética e favorecer a formulação de um partido dos católicos no centro deu a impressão de funcionar como estratégia mais geral de reconquista neoguelfa [restauração do partido político medieval dos guelfos, ndt] perante as instituições democráticas, até o ponto de circunscrever a soberania do parlamento na legislação sobre matérias sensíveis, definidas a priori como “não negociáveis”. O povo do Family day foi reconvocado a descer à praça em 134 cidades italianas nos primeiros dias de março, uma mobilização permanente programada até 15 de maio, jornada internacional da família. O escopo desta agitação é o de exercer toda pressão possível sobre os candidatos por uma política fiscal mais favorável à família.
Na cúpula vaticana, o cardeal vigário de Roma aparece entre os mais convencidos defensores da conveniência de contrapor-se ao temido desaparecimento do cristianismo jogando na fornalha midiática e no tumulto do político a imagem de uma Igreja de praça. Não importa se este paradigma de catolicismo demonstrativo revele, pelo simples fato de sua exibição, sua debilidade interior. Tende-se a remover a admoestação cara a Rosmini, recentemente beatificado, segundo o qual a sobreposição do poder religioso e do poder político desnatura a Igreja e enfraquece sua missão: “quando ela se faz árbitro da sorte humana, somente então ela é impotente – dizia o filósofo carnavalesco -, aquele é o tempo de sua decadência”.
O que colheu muitos de surpresa nestas iniciativas indiscretas foi o fato que a Igreja, ou uma parte eminente dela, embora sabendo que dispunha de uma radicada e autorizada presença associativa no tecido da sociedade civil, com a rede das paróquias e sujeitos fortes como Cielle, Sant’Egidio, o voluntariado difuso, a Ação Católica, os Movimentos pela Vida, etc., não tenha resistido à tentação neo-constantiniana de procurar-se um ulterior e específico influxo político-cultural, na forma espúria de uma parceria do poder político, quase de um novo braço secular, como se aspirasse conquistar o mundo ou munir-se de um excedente de proteções temporais.
A suscitar perplexidade também em setores do episcopado italiano foi a previsão de que uma busca tão exorbitante de espaços privilegiados para os interesses confessionais corra o risco de prejudicar em definitivo o papel político – que ninguém contesta – da Igreja, a eficácia de suas orientações pastorais, espirituais e também sociais, até eliminar até as mais empenhativas posições do magistério conciliar e pontifício em matéria de liberdade política dos cristãos e de missão espiritual da Igreja.
No entanto, parece difícil afirmar que a tendência ao expansionismo político de setores da hierarquia eclesiástica seja a única e definitiva opção estratégica da política vaticana para que ela se imponha univocamente, sem encontrar objeções na cúpula, e sim alternativas de linha. Também no Vaticano se adverte o risco de que as invasões hierárquicas de campo possam ser precursores de contragolpes sobre as futuras relações entre instituições laicas e religiosas. Um editorial da revista dos jesuítas Civiltà Cattolica sobre o incidente da Sapienza indicou “o perigo de erguer paliçadas de uma parte e da outra, e até mesmo confrontar-se livre e criticamente”, e reconheceu, por admoestação também dos integralistas católicos e não só dos “fundamentalistas leigos”, que “o caminho a percorrer não é o das paliçadas, que sempre são abatidas”.
Bastou depois um simples advérbio, numa nota do Osservatore Romano, dedicada ao aniversário da Concordata, para romper o véu sobre a ansiedade e as trepidações suscitadas também nos Palácios do Vaticano por iniciativas consideradas intempestivas, se não imprudentes, de setores zelotas do mundo católico. Ao confirmar o princípio da distinção entre campo religioso e espiritual e campo civil, o jornal vaticano sublinhava aos 11 de fevereiro que a soberania do Estado não se estende ao terreno religioso, acrescentando um só advérbio: “E vice-versa”. Uma advertência evidentemente dirigida aos atores de um avanço de sinal integralista da esfera religiosa sobre a esfera política. Uma interpretação fundada também na advertência contextual do Osservatore, no sentido de manter distintas, nas valorações políticas e na mídia, a responsabilidade da Santa Sé daquela da Conferência episcopal italiana: um distanciamento sob alguns aspectos anormal, provavelmente tendente a frear outras exorbitâncias hierárquicas no cenário político.
Evidentemente não bastara a diretiva formal do cardeal Bertone na carta ao novo chefe da Cei, cardeal Ba-gnasco, de dedicar-se às tarefas espirituais, pastorais e formativas próprias da Igreja, deixando à Secretaria de Estado do Vaticano a gestão das relações com o Estado e com os partidos. Uma linha nem sempre nem por todos respeitada, se o Secretário de Estado, que firmara aquela missiva, tivera que lamentar publicamente a “surdez” de alguns colegas de púrpura. Mas, uma opção que tem cobertura mais autorizada: também sem retornar à carta Octagesima adveniens de Paulo VI, bastaria recordar a recomendação de João Paulo II à convenção eclesial de Palermo em 1995: “A Igreja não deve pretender envolver-se com alguma escolha de alinhamento político ou de partido, como de resto não exprime preferência por uma ou por outra solução institucional ou constitucional que seja respeitosa da autêntica democracia”.
A partida está iniciada, o reino de Bento XVI está nos habituando às oscilações do sólio e às correções de rota. Parece que uma de suas dificuldades seja a de salvaguardar suas preocupações por uma retomada ética, na sociedade moderna, dos usos instrumentais dos poderes morais, hábeis para transformar os valores em votos, com o risco de que a própria primogenitura da Igreja seja fascinada e corroída nas derivas mundanas que enfraqueceriam a credibilidade de sua mensagem espiritual e tornariam suspeita sua contribuição ao diálogo entre as culturas, para a formação de uma autêntica consciência ética do país.
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A Igreja e as tentações da política. Artigo de Giancarlo Zizola - Instituto Humanitas Unisinos - IHU