26 Outubro 2011
Partindo do pressuposto de que o Islã, na obra teológica de Joseph Ratzinger, encontra pouco espaço concretamente, surpreende o enorme significado que os encontros com os muçulmanos e os discursos a eles dirigidos assumem no pontificado de Bento XVI. Do ponto de vista substancial, o Papa Ratzinger não só promove contatos com o mundo islâmico instaurados com o Concílio Vaticano II e levados adiante de modo maciçamente ativo do seu antecessor: ele faz muito mais... Ele está convencido de que aqueles que acreditam em Deus devem fazer uma contribuição especial à constituição da sociedade.
A reportagem é de Guido Horst, publicada no sítio Vatican Insider, 20-10-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Um exemplo: recentemente, em Berlim, na Nunciatura Apostólica, ele recebeu expoentes do Conselho Central dos Muçulmanos da Alemanha. Na ocasião, definiu o encontro que ocorrerá no dia 27 de outubro em Assis (a um quarto de século do encontro promovido por João Paulo II entre as comunidades religiosas na mesma cidade) como uma "jornada de reflexão, diálogo e oração pela paz e justiça no mundo".
Com isso, ele pretende, como sempre ressaltou, "que nós, homens de fé e religião, façamos a nossa contribuição especial para a construção de um mundo melhor". Essa frase anula e mina qualquer preconceito: de um lado, porque esse "nós" significa todos os crentes, independentemente da sua confissão ou religião; portanto, um "nós" que supera as fronteiras da sua Igreja, assim como as da Umma muçulmana dos seus interlocutores. De outro, porque o papa desloca o eixo das antíteses, colocando-o entre os crentes, de um lado, e os não crentes ou descrentes de outro, e estabelece que os crentes dão uma "contribuição especial" para a definição das coisas e do mundo.
Contra o "dogma da secularização"
No entanto, desse modo, o papa prejudica a tendência dominante que, a partir do Iluminismo, concebeu a religião como um assunto privado, uma questão restrita ao coração ou a uma escolha pessoal ditada pela moral individual. O papa contradiz o "dogma da secularização" da Europa, para o qual o progresso terreno está invariavelmente conectado à secularização da sociedade. E ele derramou essa contradição no contexto da fé islâmica, que muitos contemporâneos consideram como antiprogressista e retrógrada. De fato, Bento XVI convidou aflitamente os muçulmanos em Berlim a continuar "vivendo abertamente a dimensão religiosa da sua própria vida", mesmo sabendo muito bem que esse convite ou sugestão na Europa às vezes é "interpretado como uma provocação".
E não acaba por aó: nisso, ele manifestou o total apoio da Igreja aos muçulmanos: "A Igreja Católica se compromete firmemente para que seja tributado o devido reconhecimento à dimensão pública do pertencimento religioso".
E não se trata de uma estratégia interessada, mas sim de uma convicção verdadeira e enraizada: o fato de o papa se inclinar em favor da liberdade religiosa não é um truque para obter, junto às sociedades de maioria muçulmana, mais direitos para os cristãos, muitas vezes penalizadas em nível jurídico, político e social. Para a doutrina católica, a liberdade religiosa não é uma escolha que cabe ao Estado, mas sim um direito humano inalienável que, como tal, cabe integralmente aos muçulmanos que vivem na Europa e que não pode ser limitada ou prejudicada apelando-se ao espírito secular das sociedades europeias e nem à discriminação que, às vezes, nos Estados de matriz muçulmana, se consome a cargo daqueles que pertencem a outras profissões religiosas.
Portanto, se a dimensão pública, visível e audível da fé remonta à liberdade religiosa, então isso também se aplica para a liberdade de culto e de consciência dos cristãos no Oriente, assim como para a liberdade de culto e de consciência dos muçulmanos na Europa, e também vale para as Igrejas e o toque dos sinos em Amã, Damasco e no Cairo, assim como para as mesquitas e o canto dos muezim em Berlim, Paris ou Roma.
Mas até aqui algum livre pensador ancorado nos direitos humanos simplesmente por convicções ditadas pela lei natural ou algum agnóstico também poderiam convir. Mas o papa vai para além dessa fase, quando, no seu encontro berlinense com o Islã, observa que cristãos e muçulmanos, com a sua fecunda cooperação, podem contribuir com a construção da sociedade, porque eles, "sendo homens de religião (...) podem dar um testemunho em muitos setores cruciais da vida social". E aqui o papa, em Berlim, mencionou como exemplo, "a proteção da família fundada no matrimônio (...), o respeito pela vida em todas as fases do seu curso natural" além da "promoção de uma justiça social mais ampla".
Obviamente, o papa sabe muito bem que a compreensão muçulmana do matrimônio e da família, da imprescindibilidade do direito à vida desde a concepção até a morte natural, e também da justiça social não coincidem com o ensino católico. As semelhanças e as divergências entre a teoria e a prática islâmicas e católicas com relação a essas três temáticas remetem de forma impressionante às palavras do Beato Raimondo Lullo, que definiu o Islã como uma "heresia cristã".
Mas se o papa menciona precisamente esses temas para convidar os muçulmanos a um testemunho comum, que por sua própria natureza só pode ser público, ele o faz por duas razões: ele vê e aprecia muito a ampla base de pontos comuns existente entre as duas religiões e também vê claramente a contraposição com a sociedade secularizada que, na sua compreensão do matrimônio e da família, da proteção da vida e dos direitos humanos, da justiça social, se afastou anos-luz já daquele consenso cristão que uma vez vigia na Europa.
A razão como dom de Deus
Bento XVI, em 2009, no seu discurso na mesquita Al-Hussein bin-Talal, em Amã, ilustrou, a partir da sua reflexão sobre o racionalismo cristão, o que os cristãos e os muçulmanos podem testemunhar em uma realidade mundial que está se afastando de Deus: "E, como crentes no único Deus, sabemos que a razão humana é, em si mesma, dom de Deus e se eleva a um plano mais alto quando é iluminada pela luz da verdade de Deus. Na realidade, quando a razão humana consente humildemente em ser purificada pela fé, ela não é em nada enfraquecida; ao contrário, é reforçada na resistência à presunção de ir além dos seus próprios limites.
Desse modo, a razão humana é revigorada no compromisso de buscar o seu nobre propósito de servir a humanidade (...). Portanto, a adesão genuína à religião – longe de restringir as nossas mentes – amplia os horizontes da compreensão humana. Isso protege a sociedade civil dos excessos de um ego ingovernável, que tende a absolutizar o finito e a eclipsar o infinito; isso faz com que a liberdade seja exercida em sinergia com a verdade e enriqueça a cultura com o conhecimento daquilo que se refere a tudo o que é verdadeiro, bom e belo".
Enquanto alguns estão convencidos da inevitabilidade de um "choque de civilizações" entre o Ocidente, iluminado, e o mundo islâmico, em sua opinião muito pouco iluminado, o papa entrevê a ruptura entre as fés monoteístas, de um lado, e as ideologias mutáveis e sincréticas nas mil facetas que assumem de vez em quando, os ateísmos e os paganismos, de outro. Bento XVI em seu discurso em Regensburg, em 2006, grandemente deturpado, havia advertido: "Uma razão que, diante do divino, é surda e repele a religião para o âmbito das subculturas, é incapaz de se inserir no diálogo das culturas".
Vice-versa, é precisamente em virtude da capacidade de ouvir o divino que se torna possível o diálogo intercultural, como o papa explicou em Ancara no mesmo ano: "Os cristãos e os muçulmanos, seguindo suas respectivas religiões, chamam a atenção para a verdade do caráter sagrado e da dignidade da pessoa. Essa é a base do nosso respeito e estima recíprocos, essa é a base para a colaboração ao serviço da paz entre as nações e povos, o desejo mais caro de todos os crentes e de todas as pessoas de boa vontade". Portanto, é claro: não é o fato de calar ou relativizar o caráter cristão que abrem o diálogo da Igreja com os muçulmanos, mas sim a profissão franca e sincera daquilo em que se acredita. Não a secularização do Islã, mas sim a recristianização da Europa é que pode evitar o "choque de civilizações".
Embora o Islã, na obra teológica de Joseph Ratzinger, não tenha constituído uma pedra angular, a abordagem do Papa Bento XVI com os muçulmanos se baseia na sua teológica da comunalidade fundamental entre as três grandes religiões monoteístas. Em uma contribuição ao diálogo inter-religioso publicado em 1997 na Communio, Ratzinger lembrava que "o imperativo central "Ouve, ó Israel, o teu Deus é um Deus vivo", de fato, também continua sendo constitutivo para o cristianismo e o Islã". Desse modo, ele fazia surgir a diferença entre as "religiões teístas" e a "corrente mística", entre a fé em Deus culminante na adoração e o "esvaziamento da consciência que se esquece do seu próprio eu e se deixa dissolver no infinito", e, consequentemente, em referência à Europa de hoje, entre a fé em Deus concreta dos judeus, dos cristãos e dos muçulmanos, de um lado, e as espiritualidades esotéricas, evanescentes, muitas vezes sobrepostas e desajeitadamente remendadas entre si, de outro.
O objetivo último: a Verdade, o Logos
Seguindo o papa até aqui, torna-se claro então que os crentes cristãos e os crentes muçulmanos têm uma ampla base comum que lhes permite dar um testemunho tangível da imensidão do Senhor em uma época que se tornou muitas vezes surda à realidade de Deus. Nesse ponto, fica claro que existe uma colaboração sobre as questões éticas e sociais entre as duas comunidades que podem contribuir para a construção de um mundo mais devoto e humano. E, de fato, isso não é pouco.
No entanto, de várias partes, se insiste perguntando se o diálogo entre cristãos e muçulmanos se limita ao testemunho comum de um só Deus e à cooperação na realização de um mundo melhor. A pergunta também é articulada de outras formas: o diálogo entre o cristianismo e o Islã, lá onde pode ser levado adiante livremente, sem condições prévias, se detém perante a questão da Verdade, ou pelo menos onde as duas religiões evidenciam não só os pontos em comum, mas também as divergência?
No exemplo citado acima de 1997, Joseph Ratzinger, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, refutou veementemente essa hipótese: "O encontro entre as religiões não pode ocorrer na renúncia à Verdade, mas só é possível mediante o seu aprofundamento". O "mero pragmatismo" e, portanto, também o compromisso comum, em nada modesto, com a paz e com a justiça, por si sós, não unem, argumentou o cardeal Ratzinger. O diálogo visa, em última análise, a encontrar a Verdade: "O diálogo inter-religioso pode se tornar cada vez mais escuta comum do único Logos de Deus, que nos doa a paz, apesar das nossas divergências, das nossas contradições e até das nossas divisões", postulou Joseph Ratzinger em 1997. E não há nenhuma razão para considerar que, hoje, Bento XVI pense de outra forma.
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"Nós, homens de fé": o diálogo inter-religioso católico-islâmico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU