01 Abril 2011
"A principal tese do teólogo norte-americano Matthew Fox é que a `bênção original` no centro da mensagem do cristianismo foi ofuscada pela prevalência de uma teologia particular do pecado original, cujo principal autor é Santo Agostinho de Hipona."
A opinião é de Massimo Faggioli, doutor em história da religião e professor de história do cristianismo no departamento de teologia da University of St. Thomas, em Minneapolis-St. Paul, nos EUA. O artigo foi publicado na revista Europa, 31-03-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O cristianismo, assim como o conhecemos, é fiel às suas origens, à mensagem de Jesus? A pergunta, a mais arriscada para qualquer pessoa que se interesse pelo cristianismo, está no centro do livro de Matthew Fox, In principio era la gioia [No princípio era a alegria] (Ed. Fazi, 2011, 423 páginas), publicado originalmente nos Estados Unidos em 1983 com o título Original Blessing [Bênção original].
O livro, que levou o autor à expulsão dos dominicanos em 1993 (junto com um grande sucesso editorial), foi traduzido só agora ao italiano e abre uma nova coleção de textos teológicos, intitulada significativamente Campo dei Fiori, publicada pela Fazi Editores e organizada por Vito Mancuso e Elido Fazi.
Mancuso introduz o livro de Fox com um longo texto que apresenta não só o livro, mas também toda a coleção e o projeto editorial que prevê a publicação de textos de teologia, espiritualidade e história do cristianismo. O projeto se baseia em uma constatação dificilmente contestável: "A oposição sistemática entre liberdade e pertencimento à Igreja Católica foi se dilatando e gerou a muito difundida ideia de uma oposição sistemática entre liberdade e experiência espiritual" (p. xxx).
Se Mancuso pretende iniciar um diálogo com o catolicismo institucional, as premissas postas por esse livro da coleção são combativas: no prefácio, Mancuso sugere uma analogia entre o destino de Matthew Fox e o dos teólogos hereges e dissidentes condenados à morte pela Igreja romana, dentre os quais Arnaldo de Bréscia e Giordano Bruno. A sorte reservou a Fox uma saída da Igreja de Roma bem mais cômoda em comparação ao fogo no Campo de Fiori.
Mas In principio era la gioia se presta bem para essa interessante operação cultural e editorial da efitora Fazi, da qual logo veremos outros volumes (entre os quais a recente história dos Papas de John O’Malley e uma interpretação cristã do budismo de Paul Knitter). A principal tese de Fox, agora ex-católico que se define "padre pós-denominações", é que a "bênção original" no centro da mensagem do cristianismo foi ofuscada pela prevalência de uma teologia particular do pecado original, cujo principal autor é Santo Agostinho de Hipona.
Na opinião de Fox, o original otimismo da revelação judaico-cristã sobre a humanidade e sobre a criação foi removido pelo "esquema queda-redenção" centrado no pecado original: esse deslizamento fez do cristianismo uma religião não só pessimista, mas também patriarcal e violenta. A teologia de Fox tenta despedaçar o esquema "queda-redenção" para romper o fundamental dualismo alma-corpo, sagrado-profano, Deus-mundo – um dualismo herança da experiência maniqueia do jovem Agostinho.
Fox propõe uma viagem espiritual de quatro etapas: a via positiva (em contato com a energia criativa de Deus), a via negativa (redescobrir o sofrimento por meio da natureza), a via criativa (para nos tornarmos novamente criadores do mundo junto com Deus) e a via transformativa (para voltar ao momento inicial graças a uma inspiração de justiça pelo cosmos).
Hoje, quando um dos principais acusadores do livro (o então cardeal Ratzinger) tornou-se Papa de Roma, In principio era la gioia se apresenta como uma espécie de testemunha póstuma da tentativa de fundar, em uma síntese pós-agostiniana, as almas teológicas do catolicismo pós-conciliar: em outras palavras, a tentativa de elaborar uma teologia liberacionista em sentido amplo, que misture ecumenismo, teologia feminista, espiritualidade ecológica, misticismo e busca de um campo teológico inter-religioso bem além do "monoteísmo abraâmico", judaísmo-cristianismo-islã.
Nesse sentido, o livro de Fox se apresenta, mais do que como uma proposta original de espiritualidade alternativa ao catolicismo institucional, como um mapa das fontes e das direções possíveis em que a teologia católica foi estimulada (frequentemente com maior sucesso de Fox) depois do Concílio Vaticano II.
São evidentes as fraquezas teológicas da proposta de Fox. Um dos elementos prevalentes do livro é o de uma oferta de "teologia terapêutica", típica da paisagem religiosa norte-americana contemporânea, fenômeno do qual o catolicismo dos EUA permaneceu em grande parte (e por sorte) imune. Às vezes, parece que lemos em Fox essa proposta teológica para católicos suburbanizados, cultos e pós-confessionais, que havia feito o sucesso de Thomas Merton nos anos 50 e 60: com a diferença de que Merton escrevia como neocatólico, enquanto aqui Fox fala como ex-católico.
A segunda fraqueza tem a ver com a exigência de reduzir a taxa de agostinismo da teologia cristã e católica em particular: exigência compreensível, especialmente se considerarmos os legados mais problemáticos do bispo de Hipona (teologia da guerra justa, concepção da sexualidade). Mas entre eliminar a ênfase sobre a libertação do pecado original e eliminar do horizonte da teologia cristã a ideia de libertação tout court o limite é tênue: a ideia de "libertação" é uma das ideias teológicas mais poderosas da revelação judaico-cristã (do Êxodo em diante, chegando às teologias políticas).
Além disso, Fox parece ignorar a passagem de paradigma dos séculos XIX e XX da teologia como metafísica à teologia como "história da revelação" e, substancialmente, parece declarar decaídos os grandes mestres da teologia católica do século XX.
Por fim, Fox se baseia em fontes bíblicas (especialmente dos livros sapienciais) e em fontes místicas medievais, além de uma vasta série de fontes teológicas sui generis (poesia, literatura, psicologia), deixando substancialmente de lado a teologia patrística latina e grega dos primeiros séculos do cristianismo. Não está claro quanta teologia dos Padres da Igreja Fox pretende arquivar (além de Agostinho), se é verdade que o ressourcement teológico foi uma das pedras-angulares da reconstrução da teologia católica no século XX, depois da estação árida da teologia neoescolástica. Declarar acabado o ressourcement equivale a declarar acabada a teologia do Vaticano II: uma declaração que todos os catolicismos inimigos de Fox ficariam felizes em assinar embaixo.
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Um cristianismo sem Agostinho? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU