17 Fevereiro 2011
"A bicicletada pelos "Caminhos de Sepé Tiaraju" é o tema do artigo de Antonio Cechin que publicamos a seguir.
Antonio Cechin é irmão marista, miltante dos movimentos sociais, autor do livro Empoderamento Popular. Uma pedagogia de libertação. Porto Alegre: Estef, 2010.
Eis o artigo.
No dia primeiro próximo-passado do corrente mês de fevereiro zarpou de Porto Alegre, rumo à cidade de Rio Pardo, um comboio composto de um ônibus transportando 40 ciclistas. As bicicletas seguiam atrás, na caçamba de um caminhão-jamanta, que também transportava uma centena de colchonetes e toda uma matalotagem composta de água potável, comida variada para sete dias de pedalação, panelas, fogão de campanha, câmara-fria portátil, aparelho de som, mil mudas de araucária, kits de primeiros socorros em caso de algum ferimento de percurso, etc.
A despedida da capital deu-se às 14 horas no Galpão de Reciclagem dos "Profetas da Ecologia", rua Voluntários da Pátria nº 4201, junto aos trilhos do trensurb, lado oposto da igreja Nossa Senhora dos Navegantes, centro da Devoção trazida pelos Casais Açorianos.
Como nada acontece por mero acaso, povo açoriano e povo guarani tem uma incompatibilidade de origem. Os ilhéus portugueses do arquipélago dos Açores, são considerados os fundadores de Porto Alegre, cujo nome inicial era "Porto Alegre dos Casais Açorianos". Pelo império português, eles vinham endereçados para os Sete Povos das Missões que, pelo Tratado de Madrid, entre Espanha e Portugal, as sete cidades tinham que ser trocadas pela Colônia do Sacramento, uma fortaleza lusa bem defronte a Buenos Aires, ou seja no lado oposto do Estuário do rio da Prata. O Povo Guarani que ocupava suas terras há vários milênios, praticamente só com a roupa do corpo, tinha ordem de se bandear para o outro lado do Uruguai, deixando às mãos dos portugueses suas lindas e progressistas cidades com seus maravilhosos templos, suas oficinas, suas grandes plantações e suas milhões de cabeças de gado.
É natural que as famílias açorianas partissem preconceituosas de seu arquipélago nativo, em relação aos índios Guarani, tidos como selvagens à época, e que seriam defenestrados por insubordinação aos reis europeus, através de uma guerra sangrenta, a fim de dar lugar a imigrantes. Por isso mesmo é que os ilhéus, em sua viagem inicial, em vez de subirem até os Sete Povos do Rio Grande, através da Lagoa dos Patos e depois Jacuí acima, foram se extraviando pelas terras ao longo de todo o trajeto do litoral sul, desde Santa Catarina passando por São Pedro do Rio Grande do Sul, depois Porto Alegre, alcançando mesmo, por último, Rio Pardo, onde o exército português tinha uma fortaleza denominada Tranqueira.
A bicicletada pelos "Caminhos de Sepé Tiaraju" inicia portanto em lugar historicamente conflituoso: Açorianos versus Missioneiros. Assunto este que mereceria um bom debate tendo em vista que, na próprias universidades deste Estado, há gente que continua a afirmar até hoje, que nosso chão é de cultura prioritariamente açoriana, desvalorizando por inteiro nosso Paraíso Terrestre Missioneiro.
A pedalação deste ano de 2011, por estradas interiores, num percurso total de 300 quilômetros, é a quarta edição. Para entender melhor essa "ferramenta" de luta popular, é preciso remontar à própria história do herói guarani dentro das Missões Jesuíticas e ao tratamento que foi dado até os dias de hoje pelos rio-grandenses ao Povo Missioneiro, desde as origens até os dias de hoje.
Não podemos esquecer outro detalhe importante para a compreensão da profundidade do evento de que estamos falando. No dia 1º de janeiro de 2011 tivemos no Rio Grande do Sul a tomada de posse, no governo estadual, do novo governador Tarso Genro. Em seu discurso inicial, Tarso fez uma referência especial ao nosso grande escritor Erico Verissimo, já falecido. Segundo o novo mandante do RS, Erico Verissimo através da obra "O tempo e o Vento" inseriu o povo do Rio Grande na Geografia universal dos povos, dando-nos características culturais bem definidas.
Com efeito, no segundo capítulo do primeiro volume da obra "O Continente", Verissimo exalta com o título de "A Fonte", ou seja como evento fundante do Rio Grande, a saga missioneira com seu mais belo florão Sepé Tiaraju. Nossa história, segundo ele, tem nas Missões o nosso Paraíso Terrestre inicial, à semelhança da origem do mundo na narração bíblica do Gênesis.
Em 1756, na guerra guaranítica, os exércitos imperialistas e colonialistas de Espanha e Portugal não contentes com a chacina de Sepé e seus 1500 companheiros, mataram também o Paraíso Terrestre Missioneiro, construído pelo povo Guarani com base em suaa utopia cultural transformada em projeto social e econômico: "A busca incansável da Terra Sem Males". Os colonialistas transformaram a guaranítica "Terra Sem Males" em terra de todos os males de tipo capitalista europeu..
Duzentos anos depois da tragédia guaranítica, em 1956, quando se queria celebrar o bicentenário da morte de São Sepé Tiaraju e de seus 1.500 companheiros mártires, os intelectuais do Instituto Histórico e Geográfico do RS, fidelíssimos à versão "tradicional" da origem açoriana do RS, em verdadeiro concubinato com o poder executivo de então que estava em mãos do governador Ildo Meneghetti, ao negar um monumento e até mesmo o título de herói popular ao comandante Sepé, mataram pela segunda vez o nosso Paraíso Terrestre.
Porém na década de 1970, o povo cristão das primeiras Comunidades Eclesiais de Base da Igreja da Libertação, unido aos Índios, Quilombolas e Movimentos Populares conseguiu iniciar uma reversão histórica para a situação constrangedora que vivíamos até então, com a negação e mesmo morte de nosso Paraíso Terrestre inicial. Partiram numa caminhada sem retorno no encalço do Paraíso Terrestre Missioneiro dos nossos inícios, tendo em vista sua restauração.
Eis que no ano de 2006, bicentenário do martírio dos heróis Sepé e mil e quinhentos companheiros, a maré montante dos militantes populares conseguiu unanimidade da Assembléia Legislativa e a chancela do então governador do Estado no sentido de aprovar um projeto de lei em que Sepé é proclamado herói guarani, missioneiro, rio-grandense. Um par de anos depois, pela Lei n° 12.032 de 21 de setembro de 2009, a Câmara dos Deputados do Brasil inscreve o nome de Tiaraju no Livro dos Heróis da Pátria. Nesse mesmo ano de 2009, novamente nossa Assembléia Legislativa proclama o dia 7 de fevereiro, festa de São Sepé Tiaraju, como o Dia da Consciência Indígena.
Sete dias levou o Criador, segundo a Bíblia, para criar o Paraíso Terrestre onde tudo era bom.
Sete dias de pedalação também foram necessários para a quarta bicicletada cumprir as metas que se propôs;
1). – Trocar experiências com quilombolas, indígenas, pequenos agricultores, artesãos, catadores e ciclistas, ao longo dos "Caminhos de Sepé".
2). – Discutir problemáticas ambientais da região, propondo a criação e o fortalecimento de GEBs (Grupos Ecológicos de Base).
3). – Organizar vivências de novas realidades, refletindo o diferencial de vida urbana e rural.
4). – Dar a conhecer a história do povo Guarani, sua luta pela "Terra Sem Males", amadurecida depois com o auxílio dos Jesuítas em "Paraíso Terrestre Missioneiro".
Resumindo tudo, podemos dizer que a bicicletada foi criada para levar através dos Caminhos de Sepé a sensacional Boa Notícia de que a "restauração do Paraíso Terrestre sonhado e realizado pelo povo missioneiro" está sendo reconstruído pelas forças vivas das CEBs e dos Movimentos Populares..
No local exato em que Sepé esteve prisioneiro do exército português, comandado pelo general Gomes Freire de Andrade, foi iniciada a maratona sobre duas rodas. Hoje este local, por ser o mais alto da cidade de Rio Pardo, foi transformado em sede dos reservatórios de água da CORSAN. Também não é por mero acaso, que esteja ali, nos dias de hoje, A Fonte de água potável que abastece toda a cidade. Do simbólico nome de Tranqueira, a fortaleza lusa que manteve prisioneiro Sepé porque ela trancava o Povo Guarani em seu direito de ir e vir nas terras que eram suas, "doadas que foram por Deus e seu Arcanjo São Miguel" eis que o local passa a ser "A Fonte" de água viva para toda a população, título tão bem lembrado por Érico Veríssimo. É bom lembrar que Sepé embora prisioneiro, demonstrando extraordinária criatividade, conseguiu se evadir pelas próprias forças e voltou são e salvo para junto dos seus continuar lutando.
Percorridos os 300 quilômetros que medeiam entre Rio Pardo e a cidade de São Gabriel, atravessando nada menos que sete municípios (de novo a presença do 7, o número perfeito) chegam finalmente, à tardinha do dia 6 de fevereiro, na cidade de São Gabriel. Foram recebidos por duzentos índios entre Guarani e Kaingang, que já estavam reunidos durante três dias para o planejamento de suas lutas. Bicicleteiros e índios acolhiam-se mutuamente aos gritos de "Um Novo Mundo é possível se a gente quiser!", tornando assim presente o Fórum Social Mundial que, nos mesmos dias se realizava em Dacar, cidade africana. Vivas ao padroeiro Sepé eram dados sem cessar.
Parece fora de propósito falar em Paraíso Terrestre Missioneiro comparando-o em tudo ao Gênesis Bíblico. A similitude da corrida no encalço do Paraíso Guarani foi tamanha que nem mesmo faltou a Serpente tentadora de Eva. Durante os seis primeiros dias da quarta bicicletada às voltas com a tarefa restauradora do Jardim do Éden, parece história da carochinha mas aconteceu. As forças repressoras em linha direta com os repressores históricos, matadores de índios, de lanceiros negros e hoje, de militantes do Movimento dos Sem Terra, como aconteceu na Fazenda Southal quando assassinaram o pequeno agricultor de nome Elton, infiltraram entre os bibicleteiros, uma cobra mandada pela sociedade mais reacionária de São Gabriel, região considerada o coração do latifúndio. Tratava-se de um motoqueiro que o tempo todo procurava fazer desistir especialmente os adolescentes e jovens que corajosamente acompanhavam morro acima e colina abaixo, até o limite das próprias forças, o pelotão compacto dos que pedalavam.
Sociedade a mais reacionária em São Gabriel?... O coração do latifúndio?... O pesquisador Tau Golin em seu livro "A Guerra Guaranítica", fala do General Gomes Freire de Andrade em reunião com seus oficiais, na frente de batalha, combinando antecipadamente o butim de guerra, isto é, o tamanho das sesmarias que daria a cada um, uma vez concluída a batalha final. Nada pois de estranhar que um único fazendeiro de São Gabriel – o Southal – fosse hoje, dono de uma extensão de 13 mil hectares de terra.
Dia 7 de fevereiro – sempre o algarismo perfeito segundo a Bíblia – foi comemorada a data sagrada guarani, da morte do grande Sepé e da maior hecatombe acontecida em nosso Estado com a completa destruição de um povo inteiro e de sua rica experiência denominada "o grande triunfo da humanidade" por intelectuais da Revolução Francesa e na narrativa de Erico Verissimo "O Paraíso Terrestre fundante" do Rio Grande do Sul. Às 9 horas da manhã, ato solene na coxilha do Caiboaté com índios e bicicleteiros. Ao meio dia, em pleno centro da cidade, na Sanga da Bica, nova solenidade aonde tombou Sepé.
Não faltou quem lembrasse que a aparente derrota do povo guarani no Caiboaté já está vingada pela "Terra da Conquista do Caiboaté" nome que foi dado pelo MST á última ocupação realizada nesta mesma cidade de São Gabriel conhecida como o coração do latifúndio. A famigerada fazenda Southal, conquistada pelo movimento e rebatizada com o nome sugestivo a lembrar a odisséia Guarani, consagrada até pelo poeta épico José Basílio da Gama na epopéia brasileira intitulada "O Uraguaia". Tertuliano diria com mais propriedade que nós: "O sangue dos mártires militantes é semente de novos cristãos e de novos militantes.
Para encerrar e "para não dizer que não falei de flores": os bicicleteiros montados em suas modestas bicicletas, consideradas o transporte mais sadio e ecológico no mundo, funcionaram como alternativa perfeita aos piquetes que andam por aí, montados em ginetes a fim de se exibirem como os centauros dos pampas.
Arrolhando este texto, me vem à lembrança os versos do canto Sepé Tiaraju (Letra de Rodrigo Bauer e Música de Jorge Guedes) inúmeras vezes rodado em disco, na bicicletada:
Lança à mão, lunar na fronte num sinal da natureza,
Guardião destas canhadas, nosso lar TUPÃBAÊ...
As estrelas do Cruzeiro me reforçam a certeza
Que o Rio Grande é Missioneiro, defendido por Sepé!
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Uma centena de bicicleteiros no encalço do Paraíso terrestre defendido por São Sepé Tiaraju e seus 1.500 companheiros mártires - Instituto Humanitas Unisinos - IHU