03 Janeiro 2011
"Uma exortação apostólica como a Verbum Domini não pode (e não deve) ser convenientemente resumida. Mas as observações que seguem irão ajudar os leitores – esperamos – a ver e a apreciar alguns – não todos, certamente – temas e pontos fundamentais de destaque dentro do documento."
A análise é de Carl E. Olson, escritor norte-americano e editor da revista Ignatius Insight, da editora Ignatius Press, fundada pelo jesuíta Joseph Fessio. Olson é autor do best-seller Will Catholics Be `Left Behind`? (Ignatius Press, 2003). O artigo foi publicado no sítio da revista Ignatius Insight, 21-12-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Quando foi eleito Papa no dia 19 de abril de 2005, o cardeal Joseph Ratzinger era o homem mais velho a ser eleito papa em quase 300 anos e o primeiro alemão em 500 anos. De maior importância foi o fato – muitas vezes não conhecido ou analisado em profundidade – de que o Papa Bento XVI foi o primeiro teólogo bíblico a se sentar na Cátedra de São Pedro. No entanto, como observa o Dr. Scott Hahn no capítulo de abertura de Covenant and Communion: The Biblical Theology of Benedict XVI (Ed. Brazos, 2009), o pontificado de Bento XVI, "de uma forma talvez nunca vista desde o papado medieval de São Gregório Magno, já deixa a marca distintiva de uma teologia bíblica".
Enquanto o longo e prolífico pontificado do antecessor de Bento XVI e seu amigo próximo, João Paulo II, produziu um número notável de documentos importantes, dirigidos a muitas questões cruciais, nenhum desses documentos se centrou unicamente na Bíblia, na sua interpretação e no seu lugar na Igreja. Agora, no quinto ano de seu pontificado, Bento XVI escreveu um importante documento sobre a Sagrada Escritura. É a Exortação Apostólica Pós-Sinodal Verbum Domini, sobre a "Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja", que foi apresentada no dia 30 de setembro de 2010, festa de São Jerônimo, e tornado público no dia 11 de novembro.
A Gênese da Verbum Domini
Dr. Michael Barber, professor de Teologia, Escritura e Pensamento Católico na John Paul the Great Catholic University (San Diego), observou em seu blog, The Sacred Page, que o "foco claro [de Bento XVI] nas Escrituras se manifestou ao longo do seu papado". Ele ressalta que o Ano de São Paulo (2008) foi marcado por uma ênfase prolongada e consistente na Escritura, notavelmente no âmbito das muitas audiências que o Papa dedicou aos escritos e ao pensamento teológico do apóstolo Paulo. O best-seller do Santo Padre, Jesus de Nazaré: Do Batismo no Jordão à Transfiguração, tratou dos métodos de interpretação da Escritura e refletiu longamente sobre a vida e os ensinamentos de Jesus Cristo. (Mais dois volumes ainda estão para ser publicados, um sobre a Paixão e a Ressurreição de Cristo e outro sobre o seu nascimento e infância).
Em outubro de 2006, Bento XVI escolheu o tema "A Palavra de Deus na Vida e na Missão da Igreja" e, em abril de 2007, ele anunciou um sínodo no qual os bispos se reuniriam para discutir a natureza da Escritura e o seu papel na Igreja. Os Lineamenta (esboços de orientações) para o Sínodo dos Bispos de 2008, declarou que "a finalidade deste Sínodo é eminentemente pastoral: […] procura-se estender e reforçar a prática de encontro com a Palavra [de Deus]". É listado como objetivo: "contribuir para esclarecer certos aspectos fundamentais da verdade sobre a Revelação, tais como a Palavra de Deus, a Tradição, a Bíblia, o Magistério, que justificam e asseguram um válido e eficaz caminho de fé; acender a estima e o amor profundo pela Sagrada Escritura, fazendo com que `os fiéis tenham amplo acesso` a ela; renovar a escuta da Palavra de Deus, no momento litúrgico e catequético, nomeadamente com o exercício da Lectio Divina, devidamente adaptada às várias circunstâncias; oferecer ao mundo dos pobres uma Palavra de consolação e de esperança".
Também se menciona o objetivo de fomentar "promover um correto exercício hermenêutico da Escritura, dando uma boa orientação ao necessário processo de evangelização e de inculturação; entende encorajar o diálogo ecumênico, estreitamente vinculado à escuta da Palavra de Deus; quer favorecer o confronto e o diálogo judeu-cristão e, de uma maneira mais vasta, o diálogo inter-religioso e intercultural".
Com esses objetivos em mente, a XII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos se reuniu no Vaticano entre os dias 5 e 26 de outubro de 2008. Bento XVI escreveu na introdução que a Verbum Domini é a sua resposta ao "pedido que me fizeram os Padres de dar a conhecer a todo o Povo de Deus a riqueza surgida naquela reunião vaticana e as indicações emanadas do trabalho comum" (n. 1).
A estrutura da Verbum Domini
A Verbum Domini consiste em uma introdução (nn. 1-5), três seções principais (nn. 6-120), e uma breve conclusão (nn. 121-124). A primeira parte, Verbum Dei, ou "O Deus que fala" (nn. 6-49), investiga uma série de princípios e conceitos teológicos inter-relacionados, começando com a observação de que "a novidade da revelação bíblica consiste no fato de Deus Se dar a conhecer no diálogo, que deseja ter conosco" (n. 6). Os tópicos abordados incluem a natureza de Deus, a dimensão cósmica da sua palavra, a cristologia da palavra, Tradição, Escritura, a resposta do homem à Palavra de Deus, fé e razão, a Escritura como a alma da sagrada teologia, o estado dos estudos bíblicos e da interpretação, a unidade da Escritura, as falsas interpretações da Escritura, a Bíblia e o ecumenismo, e os santos e a interpretação da Escritura. Essa primeira seção sozinha é um documento importante por direito próprio.
A segunda parte é Verbum in Ecclesia, ou "A Palavra de Deus e a Igreja" (nn. 50-89). Seu foco principal é "a relação entre Cristo, Palavra do Pai, e a Igreja", que é "uma relação vital na qual cada fiel, pessoalmente, é chamado a entrar" (n. 51). Aqui, os ensinamentos teológicos da primeira seção são aplicados à vida e ao culto da Igreja. Temas importantes discutidos são a presença de Cristo na Igreja, a Palavra de Deus na liturgia, a Palavra de Deus e a Eucaristia, o lecionário, o ministério dos leitores nas celebrações litúrgicas, a importância das homilias, os sacramentos da reconciliação e da unção dos enfermos, a liturgia das horas, a importância do silêncio, a música litúrgica, a catequese, as vocações, o papel dos leigos, o casamento e a vida familiar, a lectio divina e a oração mariana.
A seção final é intitulada Verbum Mundo, ou "A Missão da Igreja" (nn. 90-120). Considerando que a segunda seção discutiu a Palavra de Deus na Igreja, esta seção se concentra no trabalho missionário da Igreja e sua proclamação da Palavra de Deus no mundo. "O Sínodo dos Bispos", escreve Bento XVI, "reafirmou com veemência a necessidade de revigorar na Igreja a consciência missionária, presente no Povo de Deus desde a sua origem" (n. 92). Os tópicos incluem a responsabilidade do batizado de proclamar a Palavra de Deus, a necessidade do alcance missionário, a nova evangelização, a natureza do testemunho cristão, o serviço cristão, o compromisso com a justiça, a reconciliação e a paz entre os povos, a caridade prática, os migrantes, os doentes, os pobres, a defesa da criação, o valor da cultura, da educação, da arte, da comunicação social, a inculturação, a tradução da Bíblia, o diálogo inter-religioso e a liberdade religiosa.
Marcos introdutórios e conclusivos
Embora a Introdução e a Conclusão da Verbum Domini sejam relativamente curtas, elas destacam algumas palavras e ideias essenciais que perpassam a sucessão apostólica e preparam o terreno, por assim dizer, para as três seções principais.
Uma dessas palavras é "encontro". No parágrafo de abertura, Bento XVI escreve que o Sínodo de 2008 "foi uma experiência profunda de encontro com Cristo, Verbo do Pai, que está presente onde dois ou três se encontram reunidos em seu nome (cf. Mt 18, 20)". E, no parágrafo seguinte: "Não existe prioridade maior do que esta: reabrir ao homem atual o acesso a Deus, a Deus que fala e nos comunica o seu amor para que tenhamos vida em abundância (cf. Jo 10, 10)". No último parágrafo, ele escreve: "Que cada um dos nossos dias seja plasmado pelo encontro renovado com Cristo, Verbo do Pai feito carne: Ele está no início e no fim de tudo, e n’Ele todas as coisas subsistem (cf. Cl 1, 17)". Um ponto consistente de destaque em toda a Verbum Domini é que o cristianismo é antes e acima de tudo um encontro transformador com Jesus Cristo, e que a leitura e a meditação da Palavra de Deus é uma forma essencial pela qual esse encontro acontece.
Em segundo lugar, o Prólogo ao Evangelho de João é um guia e um marco para todo o documento. A fim de que "a Bíblia não permaneça uma Palavra do passado, mas uma Palavra viva e atual", escreve Bento XVI, "pretendo apresentar e aprofundar os resultados do Sínodo, tomando por referência constante o Prólogo do Evangelho de João (Jo 1, 1-18), que nos dá a conhecer o fundamento da nossa vida: o Verbo, que desde o princípio está junto de Deus, fez-Se carne e veio habitar entre nós (cf. Jo 1, 14). Trata-se de um texto admirável, que dá uma síntese de toda a fé cristã" (n. 5).
Cada uma das três secções principais é introduzida com citações do capítulo de abertura do Quarto Evangelho: Jo 1, 1.14; 1, 18; e 1, 12. Estas, por sua vez, apontam para a íntima relação entre a Sagrada Escritura, a palavra escrita de Deus e Jesus Cristo, a Palavra de Deus. A Conclusão, então, leva esse círculo à conexão completa, afirmando: "O Prólogo do Evangelho de João nos leva a contemplar que todo o ser está sob o signo da Palavra. O Verbo sai do Pai e vem habitar entre os Seus e regressa ao seio do Pai para levar consigo toda a criação que n’Ele e para Ele fora criada" (n. 121).
Em uma nota estreitamente relacionada, a Introdução abre com uma citação de 1 Pedro: "A palavra do senhor permanece eternamente. E esta é a palavra do Evangelho que vos foi anunciada". A palavra de Deus nos foi anunciada, nos foi dada, é o dom de Deus ao homem. O verbo "proclamar" [anunciar] aparece várias vezes, destacando a iniciativa de Deus de se aproximar e se comunicar com a humanidade. Então, em conclusão, Bento XVI acentua a necessidade do homem de ouvir a palavra de Deus e de responder ao seu dom: "Por isso, o nosso deve ser cada vez mais o tempo de uma nova escuta da Palavra de Deus e de uma nova evangelização. (...) À imitação do grande Apóstolo das Nações, que ficou transformado depois de ter ouvido a voz do Senhor (cf. At 9, 1-30), escutemos também nós a Palavra divina que não cessa de nos interpelar pessoalmente aqui e agora" (n. 122).
Isso é retomado de forma muito bonita nas palavras finais da Verbum Domini, citando as palavras finais da Bíblia: "O Espírito e a Esposa dizem: `Vem`! E, aquele que ouve, diga: `Vem`! (…) O que dá testemunho destas coisas diz. `Sim, Eu venho em breve`! Amém. Vem, Senhor Jesus!» (Ap 22, 17.20)".
Doze temas-chave na Verbum Domini
Uma exortação apostólica como a Verbum Domini não pode (e não deve) ser convenientemente resumida. Mas as observações que seguem irão ajudar os leitores – esperamos – a ver e a apreciar alguns – não todos, certamente – temas e pontos fundamentais de destaque dentro do documento.
Chamados a participar da vida divina: É surpreendente que os parágrafos de abertura de cada seção principal contém uma referência ao convite de Deus ao homem para participar da vida divina. No coração dessa vida divina, observa Bento XVI, "há a comunhão, há o dom absoluto. (…) Deus dá-Se-nos a conhecer como mistério de amor infinito, no qual, desde toda a eternidade, o Pai exprime a sua Palavra no Espírito Santo. Por isso o Verbo, que desde o princípio está junto de Deus e é Deus, revela-nos o próprio Deus no diálogo de amor entre as Pessoas divinas e convida-nos a participar nele" (n. 6; cf n. 9.).
Essa verdade é apresentada ainda mais fortemente no início da segunda parte: "Aqueles que creem, ou seja, aqueles que vivem a obediência da fé `nasceram de Deus` (Jo 1, 13), são feitos participantes da vida divina: filhos no Filho (cf. Gl 4, 5-6; Rm 8, 14-17)" (n. 50). E na terceira seção: "O Verbo de Deus comunicou-nos a vida divina que transfigura a face da terra, fazendo novas todas as coisas (cf. Ap 21, 5)" (n. 91).
Diálogo divino: Deus iniciou um diálogo com o homem por causa do seu amor por ele. Como já vimos, é por isso que o Deus Trino é um Deus de "diálogo". Isto é, o Pai, o Filho e o Espírito Santo estão constantemente falando um com os outros em um amor perfeito e abnegado. "Nesta perspectiva, todo o homem aparece como o destinatário da Palavra, interpelado e chamado a entrar, por uma resposta livre, em tal diálogo de amor. Assim Deus torna cada um de nós capaz de escutar e responder à Palavra divina. O homem é criado na Palavra e vive nela; e não se pode compreender a si mesmo, se não se abre a este diálogo" (n. 22).
Encarnação e Cristologia: No centro desse diálogo divino está "o coração do mundo" (n. 83), o Verbo Encarnado, Jesus Cristo. "A Palavra divina exprime-se ao longo de toda a história da salvação e tem a sua plenitude no mistério da encarnação, morte e ressurreição do Filho de Deus" (n. 7). A fé cristã "não é uma `religião do Livro`: o cristianismo é a `religião da Palavra de Deus`, não de `uma palavra escrita e muda, mas do Verbo encarnado e vivo`" (par. 7). Bento XVI escreve sobre uma "Cristologia da Palavra" e reflete longamente sobre o significado da comunicação do Verbo eterno no tempo e no espaço: "A sua história, única e singular, é a palavra definitiva que Deus diz à humanidade" (n. 11).
Encontro e relação: A expressão "encontro" e "encontrar" aparecem mais de 40 vezes na Verbum Domini. Elas resumem, em muitos aspectos, o núcleo da explicação de Bento XVI sobre as relações entre Deus e o homem e do homem e a Palavra de Deus. Citando a sua encíclica de 2005, Deus caritas est, Bento XVI afirma que, "no início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo" (n. 11). E ainda: "Toda a história da salvação nos mostra progressivamente esta ligação íntima entre a Palavra de Deus e a fé que se realiza no encontro com Cristo. De fato, com Ele a fé toma a forma de encontro com uma Pessoa à qual se confia a própria vida" (n. 25).
Da mesma forma, a palavra "relação" aparece mais de sessenta vezes, muitas vezes para expressar de alguma forma a íntima comunhão dada por Deus através de Jesus Cristo e das Escrituras: "O mistério da Aliança exprime esta relação entre Deus que chama através da sua Palavra e o homem que responde, sabendo claramente que não se trata de um encontro entre dois contraentes iguais; aquilo que designamos por Antiga e Nova Aliança não é um ato de entendimento entre duas partes iguais, mas puro dom de Deus" (n. 22), e "A relação entre Cristo, Palavra do Pai, e a Igreja não pode ser compreendida em termos de um acontecimento simplesmente passado, mas trata-se de uma relação vital na qual cada fiel, pessoalmente, é chamado a entrar" (n. 51).
Unidade da história da salvação: O plano de salvação de Deus, explica Bento XVI, é um plano de unidade: da unidade do único Deus surge "a unidade do desígnio divino no Verbo encarnado..." (n. 13). A primeira criação, que ocorreu por meio da Palavra eterna, está intimamente relacionada à nova criação, estabelecida por meio do Verbo encarnado: "Recordando estes elementos essenciais da nossa fé, podemos contemplar a unidade profunda entre criação e nova criação e de toda a história da salvação em Cristo" (n. 13).
Unidade da Escritura: Há uma "unidade intrínseca" dentro da Bíblia: "Na escola da grande tradição da Igreja, aprendemos na passagem da letra ao espírito a identificar também a unidade de toda a Escritura, pois única é a Palavra de Deus que interpela a nossa vida, chamando-a constantemente à conversão. Continuam a ser para nós uma guia segura as expressões de Hugo de São Vítor: `Toda a Escritura divina constitui um único livro e este único livro é Cristo, fala de Cristo e encontra em Cristo a sua realização`" (n. 39). Bento XVI assinala que, embora a Bíblia seja composta por diversos livros escritos por diversos autores ao longo dos séculos, "a pessoa de Cristo que dá unidade a todas as `Escrituras` postas em relação com a única `Palavra`" (n. 39).
Aliança e comunhão: Esses dois conceitos estiveram no centro dos escritos teológicos de Bento desde os seus primeiros textos, como jovem sacerdote, sobre São Boaventura e Santo Agostinho. Entrar na aliança é entrar em comunhão. A aliança está enraizada na comunhão do Pai, do Filho e do Espírito Santo. A morte sacrificial de Cristo estabelece a aliança e a comunhão: "Neste grande mistério, Jesus manifesta-Se como a Palavra da Nova e Eterna Aliança: a liberdade de Deus e a liberdade do homem encontraram-se definitivamente na sua carne crucificada, num pacto indissolúvel, válido para sempre" (n. 12). Tendo entrado na aliança por meio do batismo, crescemos nela por meio da escuta e da obediência à palavra de Deus: "A escuta da Palavra de Deus introduz e incrementa a comunhão eclesial com todos os que caminham na fé" (n. 30), e "deve-se evitar o risco de uma abordagem individualista, tendo presente que a Palavra de Deus nos é dada precisamente para construir comunhão, para nos unir na Verdade no nosso caminho para Deus" (n. 86).
Fé: A necessidade e a natureza da fé são discutidas várias vezes ao longo da Verbum Domini: "A Deus que Se revela é devida `a obediência da fé` (Rm 16, 26; cf. Rm 1, 5; 2 Cor 10, 5-6); pela fé, o homem entrega-se total e livremente a Deus (…). É precisamente a pregação da Palavra divina que faz surgir a fé, pela qual aderimos de coração à verdade que nos foi revelada e entregamos todo o nosso ser a Cristo" (n. 25).
A fé exige tanto a escolha interna quanto a comunhão externa. Ela não é meramente uma questão de crença pessoal: "Cristo Jesus continua hoje presente, na história, no seu corpo que é a Igreja; por isso, o ato da nossa fé é um ato simultaneamente pessoal e eclesial" (n. 25). A Mãe de Deus é o exemplo culminante de um discípulo que respondeu perfeitamente na fé: "No nosso tempo, é preciso que os fiéis sejam ajudados a descobrir melhor a ligação entre Maria de Nazaré e a escuta crente da Palavra divina" (n. 27).
Interpretação das Escrituras: Um assunto óbvio e claramente identificado pelo Papa como um "grande tema" (n. 29). Sem fé, afirma veementemente, é impossível interpretar corretamente a Bíblia. "A ligação intrínseca entre Palavra e fé põe em evidência que a autêntica hermenêutica da Bíblia só pode ser feita na fé eclesial, que tem o seu paradigma no sim de Maria" (n. 29).
A Bíblia é o livro da Igreja, e por isso deve ser lida com o coração e a mente da Igreja: "A Bíblia é o livro da Igreja e, a partir da imanência dela na vida eclesial, brota também a sua verdadeira hermenêutica. (…) A Bíblia foi escrita pelo Povo de Deus e para o Povo de Deus, sob a inspiração do Espírito Santo. Somente com o `nós`, isto é, nesta comunhão com o Povo de Deus, podemos realmente entrar no núcleo da verdade que o próprio Deus nos quer dizer" (nn. 29, 30). Essa grande secção sobre a interpretação e a teologia bíblica (nn. 29-49) deveria ser estudada e aprofundada por muitos anos.
Os Santos: O parágrafo 48 da Verbum Domini diz: "A interpretação da Sagrada Escritura ficaria incompleta se não se ouvisse também quem viveu verdadeiramente a Palavra de Deus, ou seja, os Santos". Essa não é, obviamente, uma simples referência, já que toda a exortação apostólica é um exemplo de como recorrer à sabedoria dos santos, doutores e místicos. Bento XVI cita muitas vezes Santo Agostinho, São Jerônimo, São Boaventura, São Tomás de Aquino, São Gregório Magno e muitos outros. Destes, São Jerônimo recebe um destaque especial (n. 72).
"Lectio Divina": A "leitura orante da Sagrada Escritura" é incentivada, com "particular referência à lectio divina" (n. 86), que é a leitura "divina" ou "sagrada" da Bíblia. Essa abordagem da Escritura, afirma Bento XVI, é "verdadeiramente capaz não só de desvendar ao fiel o tesouro da Palavra de Deus, mas também de criar o encontro com Cristo, Palavra divina viva". Ele, então, revisa os passos básicos da "lectio divina" (n. 87).
Missão e testemunho: A terceira parte da Verbum Domini é um apelo claro e forte a que todos os cristãos sejam testemunhas da sua fé em Cristo. "A nós cabe a responsabilidade de transmitir aquilo que por nossa vez tínhamos, por graça, recebido" (n. 91) e "a missão da Igreja não pode ser considerada como realidade facultativa ou suplementar da vida eclesial" (n. 93). A fonte para isso é a palavra de Deus. Um exemplo atemporal é o apóstolo Paulo, que "ilustra, com a sua vida, o sentido da missão cristã e a sua originária universalidade" (n. 92). Essa seção contém uma das frases mais bonitas e poderosas de todo o texto: "Não se trata de anunciar uma palavra anestesiante, mas desinstaladora, que chama à conversão, que torna acessível o encontro com Ele, através do qual floresce uma humanidade nova" (n. 93).
O porte histórico e o contexto da Verbum Domini
A exortação apostólica pós-sinodal anterior de Bento XVI, Sacramentum caritatis (22 de fevereiro de 2007), sobre a "Eucaristia, fonte e ápice da vida e da missão da Igreja", foi um documento notavelmente maior, com cerca de 32 mil palavras e 256 notas de rodapé. A Verbum Domini é ainda maior, composta por cerca de 41 mil palavras e 382 notas de rodapé, tornando-a um documento reconhecidamente intimidativo para muitos leitores. Colocando isso em perspectiva, a encíclica do Papa João Paulo II sobre a Eucaristia, Ecclesia de Eucharistia (17 de abril de 2003), tinha cerca de 18 mil palavras e 104 notas de rodapé. A Dei Verbum, a constituição dogmática do Concílio Vaticano II sobre a revelação divina tem menos de 6 mil palavras e 41 notas de rodapé. A encíclica do Papa Pio XII sobre interpretação bíblica, Divino afflante Spiritu (30 de setembro de 1943), tinha menos de 11 mil palavras, com 48 notas de rodapé.
A recepção relativamente discreta da Verbum Domini não deve obscurecer a sua importância, tanto no pontificado de Bento XVI quanto no escopo mais amplo dos documentos papais e conciliares sobre as Escrituras. Fazia mais de meio século desde que um Papa emitiu um grande documento sobre os estudos bíblicos: a encíclica do Papa Pio XII, Divino Afflante Spiritu, apresentada no dia 30 de setembro de 1943. Esse documento comemorava a encíclica do Papa Leão XIII, Providentissimus Deus ("Sobre os Estudos Bíblicos"), publicada em 1893, que marcou o início de uma nova era na interpretação e no magistério bíblicos entre os católicos. Leão XIII também criou a Pontifícia Comissão Bíblica, em 1902.
O mais recente grande texto magisterial que aborda o ensino da Igreja sobre as Escrituras era a Dei Verbum, a constituição dogmática do Concílio Vaticano II sobre a revelação divina, emitida no dia 18 de novembro de 1965. É interessante notar que um jovem sacerdote e perito teológico da Baviera, o Pe. Joseph Ratzinger, esteve envolvido na elaboração desse documento, um dos mais importantes que surgiram do Concílio. Não surpreendentemente, esse documento fundamental é mencionado com destaque na Verbum Domini: "Pode-se afirmar que, a partir do pontificado do Papa Leão XIII, houve um crescendo de intervenções visando suscitar maior consciência da importância da Palavra de Deus e dos estudos bíblicos na vida da Igreja, que teve o seu ponto culminante no Concílio Vaticano II, de modo especial com a promulgação da Constituição dogmática sobre a Revelação divina Dei Verbum. Esta representa um marco miliário no caminho da Igreja. (…) É de conhecimento geral o grande impulso dado pela Constituição dogmática Dei Verbum à redescoberta da Palavra de Deus na vida da Igreja, à reflexão teológica sobre a Revelação divina e ao estudo da Sagrada Escritura" (n. 3).
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Uma "Sinfonia da Palavra". Um Breve Guia para a Exortação Apostólica Verbum Domini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU