14 Dezembro 2012
Em 1259, Boaventura se refugiou no Monte Verna: um lugar de quietude, mas também de milagres, uma opção de vida. Estudou e ensinou na Sorbonne, mas depois abandonou Paris para seguir a sua vocação. Polemizou com os filósofos aristotélicos e com os freis que liam o Evangelho em sentido utópico. "Todo o universo indica o infinito poder do Senhor".
A análise é do ensaísta e crítico literário italiano Pietro Citati, considerado um dos mais respeitados literatos contemporâneos, em artigo para o jornal Corriere della Sera, 08-12-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Boaventura nasceu em Civita di Bagnoregio, perto de Viterbo, em 1217: alguns anos antes de Tomás de Aquino, ao qual a sua existência estava estranhamente ligada. Estudou e ensinou na Universidade de Paris, para onde parecia que toda a grande cultura europeia havia se transferido.
Não foi um místico, como Francisco, e nem um filósofo – raça que ele execrava. Foi um grande teólogo da mística, como Ricardo de São Victor. Ele tinha uma mente robusta e harmoniosa, e ao mesmo tempo muito meticulosa: escrevia em um latim sonoro, que em parte ele havia adaptado do grego suntuoso de Dionísio Pseudo-Areopagita.
Mas a sua atividade de professor entrou em choque com a sua vocação de frei franciscano e em 1257 ele deixou a Universidade, onde se desdobravam ferozes polêmicas entre professores de inclinações religiosas e culturais diversas.
No mesmo ano, foi eleito ministro geral da Ordem dos Frades Menores. Permaneceu ministro por 17 e dificilíssimos anos: quase até a morte, que o colheu poucos meses depois de Tomás de Aquino. Como ministro geral, teve grandes dotes de guia e de organizador: a tal ponto de ser chamado, talvez inapropriadamente, de segundo fundador da Ordem. Tinha uma mente cauta e prudente. Devotíssimo da recordação de Francisco, viu-o como um novo João Batista, que profetizava e precedia a segunda vinda de Cristo.
Mas a Ordem estava dividida pelos contrastes: de um lado, defendia-se a tradição de Francisco e de Boaventura, e a aliança com a Igreja; de outro, imaginava-se uma clamorosa utopia. Boaventura permaneceu envolvido nessas tensões: Ubertino da Casale e Angelo Clareno o acusaram de trair a figura de Francisco. Naquele abril de 1257, ele enviou uma epístola duríssima a todos os ministros e aos protetores da Ordem. Denunciava como o esplendor da Ordem tinha se ofuscado: havia sido corrompida por fora, enquanto internamente se obscurecia "a centelha das consciências".
O belo livro publicado pela Fundação Lorenzo Valla, sob o título La perfezione cristiana [A perfeição cristã] (Mondadori) é o terceiro volume da coleção Letteratura Francescana, dirigida por Claudio Leonardi. Inclui o texto mais famoso de Boaventura, o Itinerário da mente em Deus, a Vida mística e alguns sermões. No próximo ano, será lançado o quarto volume: a vida ou, melhor, a Legenda de São Francisco, escrita entre 1260 e 1263, após um encargo por parte do capítulo geral dos Frades Menores. A Legenda Maior tornou-se a vida oficial de São Francisco, embora aquela, mais antiga, de Tomás de Celano brilhe com uma luz mais dramática e violenta. Boaventura quis indicar aos cristãos a possibilidade, aberta a todos, de se tornarem santos, como havia sido, de modo sublime, Francisco.
Boaventura escreveu muito. Entre 1254 e 1255, a Epistula de tribus quaestionibus, que aborda os temas da pobreza, do trabalho manual e dos estudos dos freis; em 1256, as Quaestiones de perfectione evangalica, dedicadas à humildade, à pobreza, à castidade e à obediência. Logo depois, dois tratados: O Comentário sobre as Sentenças de Pedro Lombardo e o Breviloquium de intelligentsia Scripturae et fidei christianae – uma pequena obra-prima.
Em 1269, em polêmica com Gerardo de Abbevilla, compôs a Apologia pauperum. Aos últimos anos pertencem três séries de conferências proferidas em Paris: as Collationes de decem praeceptis, as Collationes de septem donis Spiritus Sancti, as Collationes in Hexaëmeron, que foram interrompidas pela sua nomeação a cardeal. Nessas importantíssimas conferências, de um lado, Boaventura polemizou contra a filosofia aristotélica, que Averróis havia introduzido na cultura cristã; de outro, talvez sob influência de Joaquim de Fiore, pintou o grande tema da "renovação da Igreja", que floresceria no futuro próximo. São Francisco já era o sinal dos "últimos tempos".
* * *
Em 1259, 33 anos após a morte de Francisco, Boaventura se refugiou no Monte Verna, "um lugar de quietude onde desejava buscar a paz do Senhor". Lá, meditou sobre as experiências do Pseudo-Dionísio; e se apresentou à sua memória o milagre manifestado a Francisco ali sobre o Verna, quando viu o serafim com seis asas em forma de crucificado, que lhe imprimiu os estigmas, tornando visível sobre o seu corpo a paixão de Cristo.
Essa visão, que havia fascinado e abalado toda a Ordem franciscana, foi o modelo escondido da sua obra-prima, o Itinerário da mente em Deus. Não representou uma única e grandiosa visão. Mas sim um itinerário – uma escada, como diziam os místicos bizantinos – de degraus sucessivos, que devia representar a ascensão da alma do mundo até aquele ponto incognoscível e incompreensível que é Deus. Ele tinha uma profunda confiança que todas as pessoas pudessem repetir essa estrada: contanto que praticassem ao mesmo tempo o furor da oração e o puro fulgor da especulação.
A mente de Boaventura não tinha nada de ascética. Admirável, na primeira parte do Itinerário, é a contemplação do mundo que nós habitamos. Eis o primeiro degrau da grande escada: todas as coisas do universo, algumas corpóreas, outras espirituais, outras eternas; algumas fora de nós, outras dentro de nós. O reino de Deus se expande.
"A grandeza das coisas, considerando-se a imensidão do seu comprimento, largura e profundidade, e a excelência da sua capacidade de se estender em comprimento, em largura e em profundidade, como se espalha a luz; e considerando-se a eficácia da sua ação profunda, contínua e difusa, como age o fogo; indica claramente a imensidão do poder, da sabedoria e da bondade do Deus trino, que se encontra em todas as coisas, sem ser por elas circunscrito".
Aqui é a multiplicidade, a variedade, a ordem, a beleza das coisas: eis a simetria e a proporção; a percepção e o prazer. Eis a contínua passagem entre o microcosmo e o macrocosmo, e o macrocosmo e o microcosmo. Eis as incessantes meditações.
Boaventura não se contém. A sua exaltação pelo cosmos e Deus que cria o cosmos se renova de frase em frase. Com que entusiasmo ele fala da beleza da visão, da doçura do olfato e da audição, da salubridade do gosto e do tato. "Quem não se ilumina diante do esplendor das criaturas é cego; quem não se desperta aos gritos da criação é surdo; quem não louva a Deus por todos esses fatos é mudo; quem não reconhece o primeiro princípio de todos esses fatos é tolo. Abre os olhos, inclina as orelhas da alma, solta os teus lábios e dispõe o teu coração...".
Todas as criaturas deste mundo sensível são as sombras, as ressonâncias, as imagens, as marcas, as figuras, os reflexos do Deus soberano. "Esses são os sinais que Deus nos deu". E das coisas sensíveis, que nós podemos ver, devemos passar para as inteligíveis, que não podemos ver.
Boaventura não tem dúvidas. Ele possui a convicção muito tenaz de que as realidades invisíveis de Deus podem ser contempladas com o intelecto nas obras por ele realizadas. Aqueles que não querem entender isso, aqueles que não querem conhecer, bendizer e amar a Deus nas suas criaturas, são "inescusáveis", diz a primeira carta de Pedro.
Assim, descemos para nós mesmos, buscando os reflexos de Deus, perseguindo-os através de uma imagem, ou seja – dizia São Paulo – "como em um espelho, de maneira confusa". Nada é mais difícil do que conhecer especularmente Deus em nós mesmos: pela simples razão de que não nos conhecemos. Só Cristo pode nos permitir penetrar profundamente na nossa alma: "Eu sou a porta: se alguém entrar por mim, será salvo; entrará, e sairá, e achará pastagem".
Deus está acima: maravilhosamente, inexoravelmente acima. Os reflexos, as sombras e as marcas não lhe bastam; e não nos bastam. Conhecemos apenas o seu nome: Aquele que é. De resto, é inefável e incompreensível. Voltamos os olhos para a luz e temos a impressão de não ver nada; e não compreendemos que justamente essa escuridão é a maior luz que a nossa mente pode conhecer. Deus é puríssimo, absolutamente primeiro, ignora o não ser, não tem nada diferente de si mesmo, é completamente Uno.
O último degrau que alcançamos no Itinerário "é um estado místico e totalmente secreto, que ninguém conhece exceto quem o recebe, e ninguém o recebe exceto quem o deseja, e ninguém o deseja exceto quem é incendiado no fundo do coração pelo fogo do Espírito Santo, que Cristo enviou sobre a terra".
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Boaventura: chegar a Deus subindo os degraus da mística. Artigo de Pietro Citati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU