28 Outubro 2012
Para muitos, Martini foi o ponto de referência para o caminho de fé ou para escolhas autênticas de humanidade. Todos aqueles que se aproximaram dele encontraram nele um interlocutor atento e discreto.
A análise é do teólogo italiano Carlo Molari, sacerdote e ex-professor das universidades Urbaniana e Gregoriana de Roma, em artigo publicado na revista Rocca, n. 19, 01-10-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto
Eis o texto.
A morte do cardeal Carlo Maria Martini teve uma ampla ressonância no mundo católico. A rede está atravessada por inúmeros testemunhos espontâneos de participação comovida. Para muitos, de fato, Martini foi o ponto de referência para o caminho de fé ou para escolhas autênticas de humanidade. Todos aqueles que se aproximaram dele encontraram nele um interlocutor atento e discreto. Ele também o foi para as Brigadas Vermelhas que, no dia 13 de junho de 1984, fizeram-lhe entregar as armas ainda em sua posse, como sinal do fim da luta armada e com o pedido de que fosse intermediário de um diálogo de pacificação com o Estado. (...)
As suas qualidades humanas derivavam da frequentação assídua com a Escritura, que foi a constante de toda a sua vida, mesmo antes de se tornar biblista, especializado em crítica textual do Novo Testamento. Recém-formado,em 1966, ele havia sido chamado a fazer parte do comitê internacional que estava revendo a mais conhecida e difundida edição crítica do Novo Testamento grego (Nestlé-Alland, Stuttgard), que chegou atualmente à 27ª edição (1999).
A um leitor do jornal Corriere della Sera que mostrava desconfiança sobre a possibilidade de uma exata reconstrução do texto original do Novo Testamento, o cardeal pôde lembrar aquela experiência: "Os exegetas, sobretudo aqueles que trabalham sobre o texto grego, como eu também fiz por muitos anos, concordam sobre o fato de que existe algum arquétipo para todo texto do Novo Testamento. Esse é aquele exemplar que foi recopiado pelos amanuenses no início do cristianismo e em que cada palavra se refere ao original. Isto é demonstrado pela conformidade dos manuscritos entre si. Na comissão para a edição crítica do texto grego (composta por cinco estudiosos de fama mundial, dentre os quais eu era o único católico), sempre nos admirávamos com essa concordância substancial entre os muitos manuscritos".
Ele havia sido aluno do Instituto Bíblico no biênio de 1954-1956 e concluiu com a licença com louvor. No biênio posterior, ele completou os estudos teológicos na Pontifícia Universidade Gregoriana com a tese O problema histórico da Ressurreição nos estudos recentes, publicada depois na Analecta Gregoriana (n. 104, 1959).
Depois de ter lecionado desde 1958 no teologado dos jesuítas em Chieri, em 1962 retornou ao Pontifício Instituto Bíblico, onde iniciara o ano de preparação para o doutorado em ciências bíblicas e, ao mesmo tempo, havia começado a ensinar Crítica Textual. Em 1965, defendera a tese de doutorado em Sagrada Escritura publicada no ano seguinte. Desde então, sempre havia ensinado ciências bíblicas até a eleição episcopal em 1979.
A leitura assídua da Escritura o tornava capaz de falar dela de um modo simples e eficaz. Como bispo, havia logo aberto a Escola da Palavra, para ajudar os fiéis a se aproximarem da Escritura segundo o método da lectio divina. Muitíssimos jovens também frequentaram-na e nela descobriram o gosto pela oração. No 20º aniversário do Concílio na Cidadela (1985), ele havia falado aos jovens no congresso anual sobre o tema "Em escuta religiosa da Palavra de Deus e proclamando-a com firme confiança". Reflexão concreta que permanece como indicação válida até hoje.
Na última entrevista, entre os primeiros conselhos para superar o atual cansaço da Igreja ocidental, ele indicou o culto da "Palavra de Deus". Disse: "O Concílio Vaticano II restituiu a Bíblia aos católicos. (...) Somente quem percebe no seu coração essa Palavra pode fazer parte daqueles que ajudarão a renovação da Igreja e saberão responder às perguntas pessoais com uma escolha justa. A Palavra de Deus é simples e busca como companheiro um coração que escute (...). Nem o clero nem o Direito eclesial podem substituir a interioridade do ser humano. Todas as regras externas, as leis, os dogmas nos foram dados para esclarecer a voz interior e para o discernimento dos espíritos".
Homem do Concílio
Toda a sua atividade de biblista e de pastor desenvolveu-se sob o signo do Vaticano II. Ele não havia participado diretamente do Concílio e havia acompanhado as primeiras etapas com muita apreensão por razões que é oportuno recordar.
Naquele período, o Instituto Bíblico havia sido objeto de críticas por parte de biblistas tradicionalistas, razão pela qual nenhum dos seus professores foi nomeado "perito" conciliar. Em 1960, Francesco Spadafora (1913-1997), professor da Lateranense, e Antonino Romeo (1902-1979), oficial da Cúria Romana, haviam criticado duramente o método e o ensinamento do Instituto Bíblico na revista Divinitas. Em particular, haviam denunciado estudos de dois professores do Instituto Bíblico, o Pe. Stanislas Lyonnet (1902-1986), e o Pe. Max Zerwick (1899-1975), contra os quais, em 1961, também interviera o cardeal Ernesto Ruffini com um duro artigo no L'Osservatore Romano. Os dois professores, por ordem do Santo Ofício, foram suspensos do ensino.
Nessa circunstância, Martini, que havia começado a ensinar no teologado de Chieri, foi chamado novamente a Roma, onde, em um clima de suspeitas e de críticas, começou o seu ensino, atento aos primeiros passos do Concílio.
Depois, quando recordava esses anos, percebia-se no mesmo tom de voz a tensão vivida no Instituto na primeira fase dos trabalhos conciliares e a alegria das suas conclusões. Em uma resposta a um leitor do Corriere della Sera (março de 2011), ele recordava aqueles dias com emoção: "Lembro-me do entusiasmo com que se acompanham os acontecimentos conciliares. Sentia-se como a Igreja havia reencontrado uma linguagem simples e convincente, que falava ao coração do ser humano contemporâneo. Eu estava, então, na comunidade do Pontifício Instituto Bíblico. Esperava-se com ansiedade pela orientação que seria dada pelos Padres Conciliares com relação à exegese da Escritura: ou confiança no método histórico-crítico (que nós aceitávamos, mesmo levando em conta os outros métodos de exegese) ou distância do método histórico-crítico como perigoso para a fé. O Concílio, com o documento Dei Verbum, respondeu plenamente às nossas expectativas. Foi um dos efeitos positivos desse Concílio".
Diálogo e Ecumenismo
Bastava se aproximar apenas uma vez dele para captar a atenção que ele dava às palavras e ao pensamento do interlocutor. Um leigo que estivera perto dele várias vezes atesta: "Assim como na relação com Deus, ele também era rigoroso na relação com o ser humano. Capacidade e inclinação à escuta, à compreensão, ao diálogo. Mesmo diante das instâncias mais urgentes apresentadas pela vida moderna, a sua compreensão, os termos do diálogo não se voltavam ao terreno da cômoda mediação, mas tentavam entender as razões de cada uma das posições para tentar o caminho de possíveis soluções".
Atitude de humildade e de respeito, que ele esperava que se tornassem característica de toda a Igreja. Ele escreveu em um diálogo com o professor Ignazio Marino: "Eis, portanto, o exemplo e a responsabilidade da Igreja: demonstrar disponibilidade, desinteresse, humildade e fazer-se modelo do rebanho, mantendo sempre presente, hoje mais do que nunca, o respeito pela pessoa, pela sua autonomia e pela sua inteligência" (Credere e conoscere, Einaudi, 2012). Era o seu estilo de vida.
A experiência da Cátedra dos Não Crentes, que teve ressonância particular no mundo da cultura e envolveu muitas pessoas, nascia dessa atitude interior.
Convicto propulsor do ecumenismo entre as várias Igrejas e confissões cristãs por parte católica, ele solicitou entre os primeiros na Itália a fundação do Conselho Mundial das Igrejas Cristãs. Ao mesmo tempo, promoveu com continuidade e coragem o diálogo com o judaísmo.
Intervindo em um encontro "Religiões pela Paz no Espírito de Assis", depois de descrever os elementos constitutivos de um diálogo inter-religioso, ele resumia: "Parece-me que a atitude que eu descrevi não considera tanto os sistemas religiosos como tais (diálogo entre as religiões), nem a profissão externa ou a representação oficial das religiões (diálogo entre homens de religião), mas sim as profundidades do coração de cada um, na tentativa de descobrir os muitos elementos comuns que temos juntos, para além do vocabulário, dos sistemas teóricos e das teologias diferentes...". A sua memória é uma bênção.
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Carlo Maria Martini, homem de Palavra. Artigo de Carlo Molari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU