15 Janeiro 2012
A aventura dos imigrantes ilegais haitianos começa numa praia deserta da Ilha de Gonâve, chamada Betortue (ou "bela tartaruga", em creole). Aqui há uma pista de terra, da qual decolam os jatos particulares que fazem o trajeto até o Peru ou a Bolívia. Da praia em frente zarpam os barcos noturnos que fazem a travessia do Caribe, em direção a Porto Rico, Cuba e Flórida.
A reportagem é de Lourival Sant'anna e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 15-01-2012.
A entrada ilegal no Brasil custa em torno de US$ 3.500. O preço inclui o voo até o Peru e depois a ajuda dos "coiotes" encarregados de garantir a entrada no Estado do Amazonas, que faz fronteira com o país. Esquema semelhante envolve a entrada no Acre, que faz fronteira com a Bolívia. Ao contrário do Brasil, os dois vizinhos não exigem visto de haitianos, por enquanto. O Peru pass ará a exigi-lo em breve.
Em geral, o governo brasileiro segue a regra da reciprocidade. Mas, embora o Haiti não exija visto dos brasileiros, a Embaixada do Brasil em Porto Príncipe pede comprovante de renda e atestado de bons antecedentes e de saúde aos turistas, e carta-convite para vistos de trabalho, estudos e participação em eventos. A embaixada emite de 15 a 20 vistos por mês. Há cerca de 6 mil imigrantes ilegais haitianos no Amazonas e no Acre.
Um barco grande, movido a vela e a motor, comporta até 300. Os cantés, como são chamados os "boat people" do Haiti, pagam de 1.000gourdes (US$ 25), no caso de Porto Rico, até 5.000 gourdes (US$ 125), para a Flórida, conta Delva Florvilus, de 56 anos, dono de um desses barcos. Sua frequência é muito variável. Há semanas em que vão vários e noutras, nenhum. Eles saem numa noite, e na noite seguinte estão em Môle Saint Nicolas, outra ilha haitiana. De lá, é mais um dia de viagem até Porto Rico, dois até Cuba e, dependendo do vento, de três a cinco dias até Miami. A travessia é feita também em pequenas lanchas com motores de popa em que cabem 18 pessoas, semelhantes às "voadeiras" do norte do Brasil, chamadas no Haiti de "chalous". Elas são mais rápidas que os barcos grandes e custam mais caro.
Muitas vezes, depois de investirem todo o seu patrimônio na viagem, os haitianos não chegam ao destino. Há duas semanas, 128 foram repatriados depois que a Guarda Costeira americana interceptou um barco. Em dezembro, 38 cantés morreram num naufrágio em Cuba. Os 90 sobreviventes foram repatriados.
Os emigrantes saem de todas as partes do Haiti. A principal rota é a partir de Porto Príncipe. Da capital pode-se chegar a Gonâve de duas maneiras. Do Wharf Jeremie, como é chamado o cais da cidade, os barcos cobram de 60 a 100 gourdes (US$ 1,50 a 2,50). A viagem até a ilha dura uma noite. Perto dali, do Terminal de Port-de-Paix, no oeste de Porto Príncipe, saem micro-ônibus às 4 horas da madrugada. Eles cobram 500 gourdes (US$ 12,50) até a Praia de Carriès, a 40 km da capital, de onde partem os barcos para Gonâve. De ônibus custa 225 gourdes (US$ 5,62), mas demora mais.
Carriès, também chamada ironicamente de "a praia de Jean-Claude Duvalier", porque era frequentada por Baby Doc, que governou de 1971 a 1986, tem um cais, e dele saem tanto voadeiras quanto lanchas grandes de passageiros. As grandes cobram 250 gourdes (US$ 6,25) e levam uma hora até a ilha; as voadeiras vão em 45 minutos, e custam 300 gourdes (US$ 7,50).
Apesar de toda essa movimentação na pacata ilha, nunca ninguém foi preso em Gonâve organizando essas viagens clandestinas, disse um agente na delegacia de polícia da cidade. Com 70% de desemprego e o ritmo lento da reconstrução depois do terremoto, a emigração é um sonho que, paradoxalmente, só os que estão em melhor situação podem realizar. Um barqueiro de Gonâve de 22 anos, que pediu anonimato, disse que gostaria de ir para o Brasil: "Ganho 5 mil gourdes (US$ 125). No fim do mês, não tenho nada. Só não vou porque não posso pagar a viagem".
Cotas a haitianos
O governo brasileiro anunciou na semana passada que passará a emitir 1,2 mil vistos por ano para haitianos. Em 2011, entre 3 mil e 4 mil haitianos entraram ilegalmente no Brasil pelo norte do País.
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Gonâve, a origem do êxodo haitiano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU