09 Janeiro 2012
"É significativo que não se tenha tocado nos porta-aviões, núcleo da superioridade americana", analisa Rubens Ricupero, ex-secretário geral da Unctad, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 09-01-2012.
Segundo ele, "o deslocamento do eixo econômico e político para a Ásia altera a natureza dos desafios estratégicos, que passam a ser marítimos". Para Ricupero, "a meta dessa "segunda Guerra Fria" não é provocar um conflito armado com a China, e sim organizar sua contenção dentro de um cordão sanitário formado pelos aliados declarados ou tácitos dos EUA".
Eis o artigo.
O corte no orçamento militar anunciado por Obama é mais expressão de reajuste nas prioridades estratégicas do que prova adicional da decadência do poder americano.
Depois de dez anos de desvio ocasionado pelos atentados de setembro de 2001, o esforço principal volta a apontar para o verdadeiro rival estratégico, a China.
Um século atrás, as guerras balcânicas antecipavam a Primeira Guerra Mundial, início do declínio da hegemonia europeia e de sua substituição pela dos EUA.
Sete anos antes, o barão do Rio Branco já adivinhara o deslocamento do eixo do poder de Londres para Washington, criando na capital americana a primeira de nossas embaixadas e para ela nomeando Joaquim Nabuco.
O século XX seria dominado por guerras no coração da Europa, mobilizando gigantescos Exércitos terrestres de milhões de combatentes.
O deslocamento do eixo econômico e político para a Ásia altera a natureza dos desafios estratégicos, que passam a ser marítimos.
O desengajamento do Iraque e do Afeganistão, juntamente com a transferência da prioridade do Oriente Médio para a Ásia do Leste, significam que o Exército suportará o peso primordial dos cortes.
É significativo que não se tenha tocado nos porta-aviões que constituem o núcleo da indiscutível superioridade americana.
A meta dessa "segunda Guerra Fria" não é provocar um conflito armado com a China, e sim organizar sua contenção dentro de um cordão sanitário formado pelos aliados declarados ou tácitos dos EUA.
Partindo ao norte do Japão e da Coreia do Sul, a barreira de contenção prossegue por Taiwan, Cingapura, Indonésia, Malásia, Tailândia, Vietnã (que teve curta guerra contra a China em 1979), Filipinas, Índia, Austrália e Nova Zelândia.
Trata-se de formidável arco de penínsulas, ilhas, arquipélagos, países que, na maioria, disputam com a China a soberania sobre ilhas e zonas marinhas de exploração petrolífera. Nessa, área estão os maiores portos do mundo, as grandes frotas mercantes de contêineres, uma economia costeira e um comércio em grande parte marítimo.
Pelo estreito de Málaca, que domina a entrada do mar do Sul da China, passa seis vezes mais petróleo que por Suez e 17 vezes mais que pelo canal do Panamá. Oitenta por cento das importações chinesas de petróleo trafegam por essa rota.
O interesse comum que une americanos e aliados é impedir que a China faça desse mar um lago interior, como os EUA fizeram com o Caribe no século 19. Para tanto, a Marinha em sentido lato, abrangendo a Força Aérea, é arma decisiva.
Desse ponto de vista, a superioridade americana é esmagadora. Sua Marinha desloca quase 2,9 milhões de toneladas ante pouco mais de 3 milhões do resto do mundo, inclusive as 280 mil toneladas da China!
Afonso de Albuquerque, o "Albuquerque terríbil" de Camões, já havia concebido plano para controlar o comércio asiático de especiarias mediante a dominação de quatro pontos cruciais: Goa, Málaca, Hormuz (entrada do golfo Pérsico) e Áden, no mar Vermelho. Chegou perto, fracassando apenas na última.
Meio milênio depois, mudam as armas e os países. A estratégia, porém, até que não mudou tanto.
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