12 Novembro 2013
Um dos maiores pensadores da atualidade, Michael Löwy esteve no Brasil para divulgar seu novo livro, “O Capitalismo como Religião” (Boitempo Editorial). Para o filósofo, um traço comum entre os protestos de junho no Brasil, a Primavera Árabe e as manifestações dos últimos anos na Europa é a transformação do desespero em raiva, da raiva em cólera e da cólera em indignação.
A entrevista é publicada por Opera Mundi, 10-11-2013.
Em entrevista a Opera Mundi, Löwy discute o conceito de revolução e qual a melhor forma de aplicá-lo na fase atual do capitalismo. “O primeiro ato da revolução seria parar o trem suicida da civilização da capitalista”, que nos levará a um desastre ambiental sem precedentes.
Na nova obra, o filósofo, ícone da Escola de Frankfurt, reúne textos de Walter Benjamin (1892-1940). “É evidente que Benjamin está em busca de uma saída do capitalismo.”
Eis a entrevista.
O ensaio que dá titulo ao seu novo livro é “Capitalismo como religião global”. Quais os princípios religiosos do capitalismo?
O livro “Capitalismo como religião global” é resultado de uma seleção de cinco ensaios escritos por Walter Benjamim, os quais têm como elemento comum uma crítica da civilização capitalista. O primeiro ensaio é muito instigante e por isso dá título à obra. Ele é um texto curto, de poucas páginas, escrito em 1921 e muito difícil de ser interpretado, até porque não foi escrito para ser publicado.
Nesse ensaio, Benjamim avança com a ideia de que o capitalismo funcionaria como uma religião cultual. Onde o mais importante não é a teologia, a espiritualidade, e sim o ritual do culto. Para ele, todo o comportamento dos capitalistas é esse ritual religioso do culto. Culto a quê? Ele não desenvolve, mas dá alguns exemplos: o dinheiro, o ouro, o ‘mamon’. Há uma adoração, o culto religioso do dinheiro, como uma divindade. Ele vê no comportamento capitalista essa adoração religiosa ao dinheiro.
Depois ele diz que a religião capitalista é sem trégua e piedade. Isso quer dizer que é um culto permanente: dia e noite, sol e chuva, primavera e verão, ele nunca para. Sem piedade porque não admite compaixão, capitalismo piedoso não existe, não funciona.
No coração dessa religião capitalista, haveria um conceito que, traduzido do alemão, significa, ao mesmo tempo, dívida e culpa. Benjamin disse que é uma ambivalência diabólica nesse termo, eu acho isso muito atual. Por exemplo, hoje, na Europa, os países quê estão endividados são tratados como países culpados. Portugal, Itália, Grécia e Espanha são chamados pela sigla PIGS (em inglês: porcos). Moralmente eles seriam inferiores porque são sujos, preguiçosos, esbanjadores e culpados. Eles deveriam ser sacrificados por essa culpa, pagando a dívida. Um discurso puramente religioso. Essa ideia de Benjamin, de relação de culpa e dívida, é incrivelmente atual.
Por último, Benjamin disse que a religião capitalista leva a humanidade ao desespero, ela transforma o desespero em condição religiosa universal, o que também é uma ideia muito interessante e tem muito haver com o nosso tempo, porque a crise econômica atual aumentou o desemprego, as pessoas perderam suas casas, algumas chegaram ao ponto de cometer suicídio. Então estamos vendo, também, de maneira muito flagrante, esse caráter desesperador da religião capitalista.
Para Benjamin seria possível uma vida fora dessa religião?
Esse texto é muito pessimista, mas não é resignado. Benjamin não aceita a religião capitalista, o desespero, como uma fatalidade. Ele se coloca a pergunta: como sair, como romper com essa religião? A partir disso, o ensaio enumera várias hipóteses e segue afastando as que ele acha que não funcionariam. A primeira a ser descartada é a que aponta o cristianismo como alternativa, pois, para ele, o cristianismo está comprometido com o capitalismo. Outra alternativa analisada são os monges, os quais pretendem escapar do capitalismo, indo viver no monastério, Benjamin diz que isso é uma ilusão, pois não é uma verdadeira saída e, ademais, ignora o restante da humanidade. A ideia de reformar o capitalismo também é descartada, visto que o capitalismo é um sistema que não admite reforma.
Como ainda não era marxista, ele também rejeita Marx. - Benjamin só se torna marxista em 1923, após ler “História e consciência de classe”, de Antonio Gramsci - Por fim, cita favoravelmente um autor anarquista chamado Gustav Landauer, o qual defende a ideia de que se sairá do capitalismo indo criar espécie de assentamentos rurais, vivendo no campo, por meio de uma vida cooperativista. O interessante é que esse mesmo Landauer fez parte dos conselhos operários que, em 1919, tomaram o poder na Baviera, e preparou uma reforma da educação, mas acabou assassinado, com o fim da revolução que durou três semanas. Não fica claro, portanto, se a referência a Landauer tem haver com a proposta dos assentamentos ou essa ideia revolucionária.
É evidente que Benjamin está em busca de uma saída do capitalismo. Aí está a diferença dele com Max Weber, que aparece muito nesse ensaio. Ele vai além de Weber, que diz que a origem do capitalismo está na religião protestante. Benjamin diz que o próprio capitalismo é uma religião. Embora Weber tenha uma crítica ao capitalismo, ele é resignado, não vê saídas, essa é uma importante diferença entre os dois autores.
Qual o sentido da metáfora feita por Benjamin ao dizer que a revolução seria uma “puxada de freio” no trem da história?
Ele escreve isso em 1940, nas Teses sobre o Conselho da História. Embora, já fosse marxista, essa frase contém uma crítica a Marx, que dizia que as revoluções seriam a locomotiva da história. Para Benjamin, as coisas seriam um pouco diferente. Talvez as revoluções fossem a humanidade puxando os freios de emergência para o trem. Essa é uma ideia muito atual e também muito original porque, na época de Benjamin, o trem da civilização da humanidade estava indo para uma catástrofe que era a Segunda Guerra Mundial, Auschwitz e Hiroshima. Ele dizia que devíamos para esse trem e não conseguimos.
Hoje em dia o perigo é outro, o trema da civilização capitalista está indo, a uma rapidez crescente, para um abismo que se chama catástrofe ecológica. O aquecimento global e as mudanças climáticas são uma ameaça sem precedentes na história da humanidade, colocando em xeque nossa própria sobrevivência. Esse trem avança a uma velocidade crescente e o único jeito de pará-lo é uma revolução, é puxar os freios. Esse é o desafio da nossa época.
Então a revolução não seria a mudança, e sim um processo que impede uma catastrófica tragédia?
O primeiro ato da revolução seria parar o trem suicida da civilização da capitalista. A partir daí, você pensa como continuar, ou você muda o trem de direção, muda do trem para um cavalo. Enfim, são várias propostas, mas a primeira é parar essa corrida suicida para o abismo, acho essa ideia muito justa.
Uma ideia de Benjamin bastante lembrada é do alerta para os “perigos” do progresso e do avanço tecnológico...
O sentido comum do pensamento na época de Benjamin e, até hoje é assim, tanto na direita como na esquerda, é que a tecnologia é fator de progresso. Ele não nega totalmente essa ideia. Em certos aspectos, concorda com ela, mas rejeita categoricamente a ideia de que a tecnologia, por si mesmo, já está nos levando ao bem, à democracia, à liberdade. A tecnologia seria uma faca de muitos gumes, ela pode tanto estar a serviço da libertação, como a serviço da opressão, pois tem potencial profundamente mortífero. No ensaio de onde saiu essa declaração, “As armas de amanhã”, ele chama a atenção para a utilização das armas químicas modernas e de gases tóxicos nas futuras guerras. Não seriam eliminados só os soldados, mas toda a população civil. Acho que ele teve uma intuição muito forte e pessimista, decretando que a tecnologia poderia nos levar ao desastre. Mas mesmo sendo o mais pessimista de todos os pensadores, não poderia prever, por exemplo, a guerra atômica. Ele parou nos gases, os quais haviam sido utilizados na primeira guerra mundial. Benjamin não poderia imaginar que haveria uma arma um milhão de vezes pior do que os gases, mas teve essa intuição da tecnologia a serviço da guerra, foi um dos poucos, o que ressalta a importância desse texto.
Sobre as revoltas dos jovens na Europa, o senhor deu declarações identificando nesses movimentos um profundo sentimento de cólera. As chamadas “jornadas de junho” colocam o Brasil nesse mesmo cenário?
Vamos partir outra vez de Benjamin, que dizia que a religião capitalista leva a humanidade para a casa do desespero. Em certas circunstâncias, o desespero se transforma em raiva. Aliás, Benjamin disse, em “Teses sobre o conselho de história”, que sem raiva não há luta de classes. Então o desespero se transforma em raiva, a qual se transforma em cólera, e a cólera em indignação, que é um sentimento mais avançado. Penso que é isso que temos assistido nos últimos anos em escala internacional, desde a praça Tahir, no Egito, à praça Syntagma, na Grécia, até as jornadas de junho, no Brasil. São processos muito diferentes, mas que têm em comum essa juventude indignada. É um fenômeno muito interessante. É muito importante sair do desespero e passar a indignação.
Quem previu isso foi um pensador francês chamado Stéphane Hessel, amigo na juventude de Benjamin. Um dos heróis da resistência da França e um dos autores da Declaração Internacional dos Direitos Humanos. Em 2010, publicou uma brochurinha chamada “Indignai-vos!”, um apelo à juventude e às pessoas em geral, a se indignarem com a injustiça, com o absurdo do mundo em que vivemos etc. Esse livro teve um sucesso enorme, traduzido em diversas línguas e vendendo milhões de exemplares. Daí esses movimento ter usado esse título “indignados”. Ele capturou o “zeigets”, o espírito da época.
Algumas das características comuns desses novos movimentos é a reivindicação da democracia direta, com novas formas de se fazer política. Esses ideais dialogam com o marxismo?
Bem, depende. O marxismo é uma galáxia, com muitos sistemas, muito planetas. Dentro dessa galáxia há correntes mais tradicionais, mais autoritárias, mais centralistas e ortodoxas, que esse discurso da horizontalidade, de democracia direta, das assembleias, não passa muito bem. Mas há outras vertentes dentro do marxismo, que são mais abertas a essa sensibilidade, que eu diria, libertária, dentro do anarquismo, dos movimentos libertários, é que se tem insistido mais nisso, na horizontalidade, democracia direta. Esses setores do marxismo têm mais afinidade e diálogo com esses movimentos, com essa nova cultura política. Aí há um encontro, o qual não impede que haja divergências, polêmicas, mas há um espaço de diálogo. Agora o encontro desses movimentos com o pensamento marxista se dá, também, em cima da crítica anti-sistêmica, a crítica do neoliberalismo, do capitalismo.
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Protesto da juventude é desespero transformado em indignação, diz Michael Löwy - Instituto Humanitas Unisinos - IHU