28 Outubro 2013
As Memórias de Küng são verdadeiramente interessantes, porque a história da sua atividade, embora bem caracterizada sob o perfil pessoal, é sempre apresentada no contexto da história do próprio tempo, na história da cultura, da teologia e da Igreja.
A análise é do teólogo italiano Rosino Gibellini, doutor em teologia pela Universidade Gregoriana de Roma e em filosofia pela Universidade Católica de Milão. O artigo foi publicado no blog da Editora Queriniana, 25-10-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Na Buchmesse [Feira do Livro] de Frankfurt 2013, chegou a primeira cópia do terceiro livro conclusivo das Memórias de Hans Küng, que foi apresentado em outubro em Munique, Tübingen e na cidade natal do teólogo e escritor suíço, Lucerna.
O primeiro volume, Erkämpfte Freiheit, "Liberdade conquistada", vai de 1928 a 1968, ainda no fervor do Concílio Vaticano II; o segundo volume, Umstrittene Wahrheit, "Verdade contestada", percorre os anos 1968-1980 e reconstrói com objetividade, como foi reconhecido, o seu caso canônico e teológico com as autoridades romanas, que se conclui – experiência difícil que ele iria superar com o seu valor teológico reconhecido internacionalmente – com a remoção da missio canonica da Faculdade de Teologia Católica de Tübingen.
Küng continuou a sua docência no Instituto de Pesquisa Ecumênica da Universidade de Tübingen, onde ele teve como seus colegas Bloch, Ratzinger, Moltmann, mas passou, na sua atividade acadêmica e de escritor, da fase eclesiológica à fase do diálogo intercultural e inter-religioso.
O terceiro volume de cerca de 750 páginas traz como título Erlebte Menschlichkeit, "Humanidade vivida" e recolhe a sua história das últimas três décadas, de 1980 a julho de 2013, como marca a data da Introdução, composta há 85 anos, onde ele escreve: "Mas no fim eu vejo as minhas últimas três décadas em uma luz totalmente positiva. Eu experimentei muita humanidade no sentido mais verdadeiro da palavra e tive que me comprometer contra todas as formas de desumanidade por um plus de humanidade: pela unidade das Igrejas cristãs, pela paz das religiões, pela comunidade das nações". E acrescenta: "Porém, à humanidade também pertence a mortalidade". O pensamento da morte atravessa essas páginas até o comovente Epílogo do livro e das Memórias, em que o autor faz algumas confidências aos seus leitores sobre as suas atuais dificuldades de saúde.
As Memórias de Küng são verdadeiramente interessantes, porque a história da sua atividade, embora bem caracterizada sob o perfil pessoal, é sempre apresentada no contexto da história do próprio tempo, na história da cultura, da teologia e da Igreja. Sempre bem informado e, creio eu, geralmente bem orientado na avaliação. Nessas três décadas, Küng esteve presente e ativo, além de como professor, como conselheiro na ONU, na Unesco e no Parlamento das Religiões. Ele tem uma visão ecumênica, internacional, planetária. É um intérprete cristão da globalização.
Küng também é um escritor comprovado e divide pedagogicamente o múltiplo material das últimas três décadas em 12 seções: 1. Chegada em novas margens (depois do processo romano); 2. Uma nova visão (para além da eclesiologia); 3. Explorações em novas terras (as culturas e as religiões); 4. A minha década americana (com a docência em Chicago e os contatos e colaborações no vasto e movimentado canteiro de obras teológico norte-americano); 5. O meu mundo do Islã; 6. O meu mundo do judaísmo; 7. O mundo dos Oceânicos, Africanos e Índios; 8. O meu mundo das Religiões da Índia; 9. O meu mundo das Religiões da China; 10. O projeto Weltethos: um Ethos para a humanidade; 11. O problema permanente da reforma das Igrejas; 12. Na noite da vida.
Nessas sequências, que tendem ao projeto da "Ética Global", que representa a herança do grande teólogo cristão (e católico), chamam a atenção as páginas dedicadas ao seu colega Joseph Ratzinger, que Küng encontrou como Papa Bento XVI em Castel Gandolfo em um amigável dia de 2005, aqui descrita pela primeira vez nos seus conteúdos e na sua atmosfera humana. Küng seguiu e comenta sobre os passos do pontificado do Papa Bento XVI.
Não falta a carta do Papa Francisco (26-05-2013), reproduzida no texto original em espanhol e em tradução alemã, enviada em resposta a uma carta sua:
"Caro Dr. Hans Küng,
Recebi a sua carta do dia 13 deste mês e um artigo com dois livros que lerei com gosto. Agradeço-lhe a sua amizade.
Fico à sua disposição. Por favor, reze por mim, eu preciso muito.
Jesus o abençoe e a Santa Virgem o ajude.
Fraternalmente,
Francisco" (pp. 674-675).
O Epílogo, comovente e confidencial, está sob o sinal de 2Tm 4, 6: "Chegou o momento de deixar esta vida". E aqui, aos seus leitores e leitoras, ele faz uma confidência de estar afetado, há dois anos, além de por outras doenças, de uma forma de Parkinson, que lhe compromete a visão e o limita na sua atividade. Ele se confia a Deus com abandono (Gelassenheit) e confiança, renunciando a outros escritos (salvo breves textos, na medida do possível), apreciando a música, a natureza e o conversar, cuidando-se (com uma dezena de comprimidos por dia e com os exercícios de fisioterapia para resistir ao mal incurável).
A última página de uma vida tão ativa e produtiva é marcada por uma oração intensa, que ele define como "O meu último Amém", e que reproduzimos em uma tradução nossa.
"A nossa vida é breve, a nossa vida é longa
e com grande admiração estou diante de uma vida
que teve as suas reviravoltas inesperadas, e também a linearidade de um caminho:
uma vida de mais de 31 mil dias, bonitos e escuros,
iridescente, que me trouxe muitas experiências,
para o bem assim como para o mal,
uma vida diante da qual eu posso dizer: foi bom assim.
Eu recebi incomensuravelmente mais do que pude dar,
todas as minhas boas intuições e as minhas boas ideias,
as minhas boas decisões e ações
me foram dadas, possibilitadas pela graça.
E mesmo onde eu decidi erroneamente e agi mal,
Tu me guiaste de modo invisível.
Peço-Te perdão por tudo onde eu errei.
Agradeço-Te, inaferrável, oniabrangente e todo dominante,
princípio original, sustento original e sentido original do nosso ser,
que nós chamamos de Deus,
Tu, o grande mistério indizível da nossa vida,
Tu, o infinito em toda finitude,
Tu, o inexprimível em todo discurso nosso.
Eu te agradeço por esta vida com todas as suas escuridões e estranhezas.
Eu te agradeço por todas as experiências, as claras e as obscuras.
Eu te agradeço por tudo o que foi exitoso,
e por tudo o que no fim tu transformaste em bem.
Eu te agradeço porque a minha vida pôde se tornar uma vida exitosa,
não só para mim, mas também para aqueles
que puderam participar desta vida.
O plano sobre o qual corre a nossa vida
com todas as suas errâncias e reviravoltas só Tu o conheces.
Não podemos reconhecer desde o princípio essa Tua intenção conosco.
Não podemos ver, como Moisés e os Profetas,
o Teu rosto neste mundo.
Mas, assim como Moisés na cavidade da rocha
pôde ver às suas costas o Deus que passava,
assim também nós, retrospectivamente,
podemos reconhecer e experimentar
a Tua mão, ó Senhor, na nossa vida;
reconhecer e experimentar que Tu nos sustentaste e nos guiaste
e que o que nós mesmos decidimos e fizemos
sempre de novo foi por Ti reconduzido ao bem.
Ponho o meu futuro, com abandono e confiança, nas Tuas mãos.
Poderia ser de muitos anos ou de poucas semanas.
Alegro-me por cada novo dia que eu recebo como dom
e confio a Ti, cheio de confiança, sem preocupação e angústia,
tudo o que me espera.
Tu estás no início do início, e ao centro do centro
assim como no fim do fim, e no fim dos fins.
Agradeço-Te, meu Deus,
porque és misericordioso,
e a tua bondade dura para sempre.
Amém. Assim seja" (pp. 702-703).
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As memórias de Hans Küng. Artigo de Rosino Gibellini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU