11 Outubro 2013
Alguns fatos recentes revelam a autêntica teologia da libertação que todos na Igreja hoje reconhecem como legítima.
A opinião é do teólogo italiano Carlo Molari, sacerdote e ex-professor das universidades Urbaniana e Gregoriana de Roma, em artigo publicado na revista Rocca, n. 19, 01-10-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto
Eis o texto.
Há alguns meses floresceu o interesse público pela teologia da libertação. Nos dias 7 a 11 de outubro de 2012, em São Leopoldo, na universidade dos padres jesuítas no Brasil, ocorreu um Congresso Continental de Teologia. Estavam presentes os principais teólogos latino-americanos. Faltava apenas Gustavo Gutiérrez, que se encontrava nos Estados Unidos para uma série de palestras na Universidade Notre Dame de Washington. Mas ele discursou, saudado por um caloroso aplauso, em uma vídeo-conferência sobre o perene valor da teologia que tem como eixo central a opção preferencial pelos pobres: "Hoje a melhor resposta que podemos dar é a solidariedade com os pobres".
Na mesma ocasião, Leonardo Boff desenvolveu o aspecto ecológico (a "pobreza crucificada da Mãe Terra"), enquanto outros retomaram o tema do diálogo inter-religioso.
No mesmo mês, na Itália, foi apresentada uma nova edição do livro Dialogo della Liberazione, de Arturo Paoli, pertencente à comunidade de Spello dos Irmãozinhos do Evangelho, mas residente, de fato, em San Martino di Vignale, onde fundou o Centro Charles de Foucauld nas colinas com vista a Lucca, sua diocese de origem. A edição original da obra, que o padre Arturo Paoli escreveu na Argentina entre os lenhadores da floresta de Fortin Olmos, em 1969, foi publicada no mesmo ano pela editora Morcelliana, da Bréscia: o livro teve sete edições e foi traduzido em quatro línguas (espanhol, português, inglês, francês). A nova edição contém, além do prefácio histórico de Sergio Soave, dois testemunhos preciosos: o do uruguaio Julio Saquero, ex-irmãozinho que viveu com Paoli na Argentina entre os anos 1960 e 1970, e o de Miguel Ángel Sevilla, "Miquicho", o interlocutor argentino de Arturo Paoli no Dialogo.
Nas últimas semanas, por fim, os principais jornais italianos relataram a notícia de uma ampla resenha escrita no L'Osservatore Romano pelo diretor das Edizioni Messaggero de Pádua sobre a tradução italiana de um livro que reúne três longos artigos do padre dominicano Gustavo Gutiérrez e quatro capítulos do atual prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal Gerhard Ludwig Müller.
O livro é intitulado: Dalla parte dei Poveri. Teologia della liberazione, teologia della Chiesa (Edizioni Messaggero-Emi, Pádua-Bolonha, 2013). O livro foi publicado na Alemanha em 2004, por iniciativa do cardeal Müller, quando ele ainda era simples bispo de Regensburg. Ele se voltou para o seu amigo teólogo Gustavo Gutiérrez, residente em Lima, para lhe propor a coleção de alguns dos seus escritos sobre a teologia da libertação, que apareceram em revistas latino-americanas nos anos 1994 a 1996, e para acrescentar quatro estudos do próprio prelado.
De fato, em ambos os lados foram ilustradas as teses principais da teologia de Gustavo Gutiérrez, sacerdote da diocese de Lima, que desde 2001 entrou para a Ordem Dominicana.
A pobreza
O tema principal da reflexão de Gustavo Gutiérrez é o sentido da pobreza evangélica, "um problema complexo e poliédrico" (p. 60). De fato, há uma pobreza real ou material injusta e contrária à vontade de Deus, há uma pobreza espiritual, escolhida livremente para mostrar o valor ilusório das coisas e a centralidade de Deus ("infância espiritual") e há uma escolha solidária de proximidade aos pobres para ajudá-los a sair da sua condição de marginalização e de insignificância.
"Medellín captou com autoridade essa distinção (Medellín, Pobreza n. 4), que adquiriu assim um enorme valor" (p. 118). A reflexão crítica sobre a experiência dessa solidariedade vivida na fé constitui, justamente, a teologia da libertação resumida na fórmula "opção preferencial pelos pobres".
A fórmula "nascida da experiência e da prática das comunidades cristãs latino-americanas, se expressou inicialmente em Medellin e foi acolhida explicitamente em Puebla" (p. 13). O padre Gutiérrez sublinha que "tal abordagem faz parte hoje (...) do magistério universal da Igreja" (p. 13) e, de fato, já foi antecipada por João XXIII no discurso de 11 de setembro de 1962, quando ele desejava que o Concílio Vaticano II apresentasse "a Igreja de todos e, principalmente, a Igreja dos pobres".
O padre Gutiérrez nota que essa mensagem foi "ouvida e aprofundada ainda mais na América Latina e no Caribe" (p. 55), de modo que a reflexão desenvolvida a partir de então constitui hoje "o que há de mais essencial na contribuição da vida da Igreja na América Latina e da teologia da libertação à Igreja universal" (p. 58).
Ele está convencido de que "a teologia da libertação nasceu do desafio que representa para a fé a enorme e desumana pobreza existente na América Latina e no Caribe. Por isso, os seus primeiros esboços foram uma reflexão sobre o significado bíblico dos diferentes tipos de pobreza e uma avaliação, à luz da fé, do compromisso de evangelização dos cristãos e de toda a Igreja com os pobres" (pp. 134s., capítulo 5, Dove dormiranno i poveri?, pp 111-174).
A pobreza material não é apenas a falta dos bens necessários a uma existência digna dos filhos de Deus, mas é também a condição pela qual um sujeito "é o insignificante, aquele que é considerado uma não pessoa, alguém a quem não é reconhecida a plenitude dos direitos como ser humano" (p. 60).
Outra perspectiva é a descoberta do "pobre como 'o outro' de uma sociedade que se constrói às margens ou contra os seus direitos mais elementares, alheia à sua vida e aos seus valores. Assim, a história escrita a partir desse 'outro' (partindo, por exemplo, da mulher) se transforma em uma história outra. No entanto, reler a história poderia parecer um exercício puramente intelectual, se não entendermos que também significa refazê-la" (pp. 60-61).
"Esse universo em evolução, que em grande parte subverte e transforma os valores das culturas tradicionais, condiciona a experiência vivida da fé e o anúncio do Reino; é, portanto, um ponto de partida histórico para uma reflexão teológica" (p. 63).
Por isso, "é necessário vencer a obstinação de ver na pobreza no mundo atual somente um problema social, o que significaria ignorar o que esse doloroso sinal dos tempos pode nos dizer" (p. 59). Reconhecê-lo é a principal tarefa do teólogo como discípulo de teologia de Jesus. "A teologia como reflexão sobre a práxis (...) constitui justamente o coração do discipulado. As suas duas grandes e interligadas dimensões, a oração e o compromisso histórico, formam aquilo que no Evangelho de Mateus se chama de fazer 'a vontade do Pai' em oposição a um simples dizer 'Senhor, Senhor' (7, 21)" (pp 68-69).
Os teólogos devem conhecer bem e ter em mente "o terreno comum a partir do qual partem e no qual escorrem as nossas linguagens e as nossas reflexões: o dos insignificantes, o da sua libertação integral e o da boa notícia de Jesus dirigida preferencialmente a todos eles" (p. 63). A essa complexa situação correspondem "três níveis no conceito de libertação": libertação social, política, econômica, cultural; libertação da pessoa com relação aos seus diversos aspectos; libertação do pecado (...) É aquilo que, na Teologia da Libertação, é chamado de libertação total em Cristo. Puebla adverte que "a unidade indissolúvel desses três planos" implica que "o mistério da morte e ressurreição de Jesus Cristo é deve ser vivido nos três planos (...) sem tornar exclusivo nenhum deles" (Puebla n . 326) (pp. 10 -11).
Segundo Gutiérrez, "a pergunta fontal – 'como dizer ao pobre, ao último da sociedade que Deus o ama?' – demonstrou a sua própria fecundidade na ação pastoral da Igreja e no caminho teológico empreendido para responder a ele" (p. 9). Ela implica o conhecimento rigoroso da realidade e das causas da pobreza injusta. Esses dados tornam mais eficaz a nossa opção pastoral, possibilitam uma reflexão teológica aprofundada e também despertam a "espiritualidade, isto é, o seguimento de Jesus Cristo que é 'o caminho, a verdade e a vida' (Jo 14, 6 )" (p. 17).
"No próprio coração da opção preferencial pelos pobres, há um elemento espiritual da experiência do amor gratuito de Deus. A rejeição da injustiça e da opressão que ela implica está ancorada na nossa fé no Deus da vida" (p. 69).
A preocupação do cardeal Gerhard Ludwig Müller é diferente, mas complementar. Ele pretende mostrar que a teologia da libertação é verdadeira teologia e que, se ela recorre às ciências sociais, é apenas para melhor responder às próprias exigências de esclarecer "o novo, o original ponto de partida da teologia da libertação" (p.77).
"A sua pergunta de fundo é orientada teologicamente e soa assim: como se pode falar de Deus, de Cristo, do Espírito Santo, da Igreja, dos sacramentos, da graça e da vida eterna diante da pobreza, da exploração e da opressão dos seres humanos no terceiro mundo e tendo em conta o fato de que nós considerarmos o homem como um ser criado à imagem de Deus, para o qual Cristo morreu, para que ele experimente Deus como salvação e vida em todos os âmbitos da sua existência?" (p. 79).
Essa é a autêntica teologia da libertação que todos na Igreja hoje reconhecem como legítima.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
As brasas vivas da teologia da libertação. Artigo de Carlo Molari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU