04 Setembro 2013
"O aumento do número de veículos em São Paulo durante os últimos anos, não acompanhado devidamente pela expansão do sistema viário, tem sido de tal vulto a ponto de tornar, ano a ano, mais sérios os problemas de congestionamentos, acidentes de trânsito e poluição do ar". "Observa-se nos corredores do centro o aumento na utilização do transporte individual e a capacidade das vias radiais mais importantes encontra-se saturada." Chegou a hora de substituir carros por transporte coletivo.
A reportagem é de Marli Olmos, publicada no jornal Valor, 03-09-2013.
Não, isso não é um apanhado de conclusões recentes. As observações acima estão nos boletins técnicos que a Companhia de Engenharia de Trânsito (CET), de São Paulo, começou a elaborar em 1977 para atender ao racionamento de combustível. A crise do petróleo estimulou a busca de ideias para restringir a circulação de veículos na maior cidade do país. Uma batalha que, desde então, não teve mais fim.
Exceto pelos modelos de carros, mais antigos, as fotografias do trânsito paulistano na segunda metade da década de 70 lembram o quadro atual. Fileiras de Fuscas e Kombis às vezes entremeados por Corceis, Opalas e Veraneios já dividiam espaço com as faixas do ônibus.
Uma coleção de estudos da CET, disponível no site da empresa, apontava formas de evitar o desastre urbano que se vê hoje nas ruas paulistanas. Esse elenco de ideias oferece detalhes de estratégias como a "Ação centro" (1978), o "Sistema de controle de tráfego" (1978), "Um estudo sobre problemas de estacionamento de veículos" (1979) e até "Operação Especial - Visita do Papa João Paulo II" (1981). Em 1997 foi implantada a "Operação Horário de Pico", que ganhou o apelido de rodízio, e três décadas mais tarde, quando o trânsito de caminhões sufocava a cidade, surgiu a "Zona de Máxima Restrição de Circulação" (2011).
Em 36 anos, a atual frota no município de São Paulo cresceu mais de cinco vezes. Hoje são 5,6 milhões de automóveis e comerciais leves. Com as motocicletas, o número chega a 6,8 milhões. Segundo os boletins da CET, 993 mil veículos rodavam pela cidade em 1977, dois anos depois da criação da Zona Azul, um sistema para limitar o tempo de estacionamento em vias públicas. Na época havia 1,2 mil ônibus; hoje são 15 mil.
A necessidade de reduzir o número de automóveis já era tratada como questão "emergencial". Os estudiosos sugeriam até "um esquema de marketing adequado à mudança de mentalidade que se deverá processar em termos de transporte pessoal".
O aumento da oferta de transporte coletivo não era, porém, a única solução apontada na época. Medidas para evitar a viagem sobre rodas também foram colocadas em discussão. "Em alguns casos a melhor solução talvez seja 'não ir'", destacava-se já no primeiro boletim técnico da CET.
De que forma poderia o cidadão resolver as tarefas do dia deixando o carro na garagem? Por que não usar o telefone, por exemplo? Segundo o estudo da época, 60% das viagens feitas em carro particular tinham "motivos outros que o trabalho e a escola". Um simples telefonema reduziria gasto com combustível e ainda livraria a pessoa de ir até determinado ponto para ouvir um "falta tal documento", a "seção só abre à tarde", "está lotado", "não é aqui" ou "está em falta".
No entanto, detalha um dos boletins, a credibilidade da informação telefônica era baixa na época: "Confia-se mais na presença física". O estudo sugeria que empresas e órgãos públicos passassem a estimular a consulta telefônica e, mais importante, se aparelhassem adequadamente para isso. O mesmo servia para o correio. Por que não recorrer a facilidades existentes, como aerograma, reembolso postal e envio de valores?
Mas não era apenas em instrumentos do passado que as propostas desses boletins se sustentavam. Surgiram ideias idênticas às que se discutem hoje, como carona programada, escalonamento de horário de trabalho e bloqueio da circulação de automóveis com menos de três ocupantes, como ocorre hoje em algumas regiões dos Estados Unidos.
E se hoje muitos se perguntam se o transporte coletivo conseguirá competir com o individual em conforto e regularidade, na década de 70 imaginou-se que ônibus executivos resolveriam o problema. O terceiro boletim da CET discorre sobre a compra de ônibus diferenciados: com poltrona de tecido especial e reclinável, música ambiente, janelas com vidro "fumê", além de cortinas, e bagageiro especial para pastas e pacotes. Com tarifa mais alta, essas linhas deveriam ser impecáveis na regularidade, segurança e manutenção. "Essas particularidades são necessárias para garantir a atratividade do sistema cujo usuário potencial é exigente, requer tratamento mais selecionado e tem renda acima da média".
Os tempos são outros e, claro, conforto e segurança deixaram de ser privilégio dos mais abastados. Mas o enigma da mobilidade, que começou há mais de três décadas, ainda não foi desvendado.
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Memórias de um trânsito muito atual - Instituto Humanitas Unisinos - IHU